sexta-feira, 1 de setembro de 2017

ALGO SELVAGEM

Henry Evaristo (1975-2010)


I

Só me disponho agora a relatar o que ocorreu na estrada do antigo presídio, durante a madrugada de 25 de dezembro de 1975, por que sinto subitamente uma incontida necessidade de aliviar, por pouco que seja, minha mente desta dúvida cruel que me assola há mais de 30 anos. 

Serei breve, muito breve, pois tudo aquilo ainda me assusta deveras e neste momento estou sozinho, é tarde da noite, e a escuridão grassa nos cantos ocultos do lado de fora.

Esta maldita noite eu passara em casa de meu tio materno, cuja filha, minha prima Paula, me era de muita estima e até ensaiávamos um romance meio incestuoso e certamente proibido pelos ditames de nossa família ultraconservadora.

Por volta das 23h30m saí da residência iluminada pelas diversas e festivas luzes e vozes do Natal e me dirigi para a estrada de acesso a meu próprio endereço que se situava numa localidade rural afastada 20 quilômetros do centro da cidade. Para me locomover fazia uso de uma antiga bicicleta guardada desde os tempos de menino. 

No caminho, além de velhas fazendas com construções estranhas mergulhadas nas altas horas escuras, ficavam o velho cemitério dos padres católicos e o antigo e abandonado presídio municipal.    

Observei, não sem grande estranheza, que justamente naquela data tão supostamente festiva todas as sedes de fazenda pelas quais passei se encontravam imersas nas mais pétreas trevas; e uma quietude angustiante passou a me oprimir a garganta. O único pensamento que me assaltou então era o de que ali estava a ocorrer algo muito errado.

E meu imaginário realmente deve ter trabalhado com afinco naquela noite para produzir os horrores que se avizinhavam, sem que eu deles sequer suspeitasse, apesar da estranheza que o ambiente me transmitia.  

De repente, ao longe, avistei diversos clarões refletindo-se nas matas ao redor da estrada. Eram como muitas luzes coloridas oscilando na escuridão; luzes de carros de polícia.   

Imediatamente parei a bicicleta e fiquei a perscrutar o horizonte logo adiante com bastante atenção para tentar visualizar melhor o que quer que fosse em meio às densas trevas que me circundavam. Não me custou entender que realmente se tratavam de luzes de sirenes silenciosas em meio a reflexos brancos e amarelados que por certo seriam focos de inúmeras lanternas cruzando o ar nervosamente.

Pensei então que se havia algo errado por ali melhor seria mesmo que a polícia estivesse presente. E foi este pensamento, em primeira instância reconfortante, que me fez dar movimento novamente a meu "veículo" e rumar em direção ao pior pesadelo de minha vida.


II

A lembrança que mais se insinua pelos meandros de minha velha razão vacilante é a da sensação de pânico que experimentei naquela terrível escuridão. O frio também ainda é bem nítido em minha memória; aquele maldito frio de dezembro em que uma garoa pegajosa desabava do céu furioso como uma saliva aziaga que se incrustava nas roupas, na pele, em tudo.  

Ah, como ainda me causam arrepios aqueles clarões na madrugada! E como me arrependo de não ter dado mais atenção aos sons que deles vinham reverberando pelas matas como sinais de perigo. E não digo sons de coisas maquinais, pois estas estavam silentes naquele momento; refiro-me, sim, aos lamentos humanos que brotavam e ecoavam do horizonte negro; e ainda a um terrível som de algo muito grave que retumbava como trovão pela noite. Mas a isso não dei importância, pois apenas o visual me hipnotizava. 

No entanto, ao me aproximar, depois que comecei a ver vultos de pessoas nervosas que corriam e se apertavam em torno de um círculo no meio da estrada deserta e escura, tudo o que vi ao longe perdeu toda a importância e os sons e as novas visões dali em diante é que dominaram e modificaram para sempre este velho relator.     

Estando eu mais próximo agora do grupo de pessoas, já podia ouvir melhor os sons desesperados e estupefatos que provinham de suas bocas entreabertas. Elas gritavam e se lamentavam no escuro para algo que parecia estar no chão, no meio do asfalto, ou em algum ponto da margem esquerda da estrada.   

Por entre pernas iluminadas pelos reflexos das luzes das sirenes de inúmeras viaturas estacionadas por todo o terreno, e pelas luzes de dezenas de lanternas faiscando e formando raios brancos em contraste com a poeira da noite, eu pude divisar um vulto escuro que se agachava e variava de posição conforme a multidão parecia se insinuar para ele. Algo que me pareceu estar tentando desesperadamente se esquivar da proximidade daquelas dúzias de homens e mulheres.

A primeira impressão, de um acidente de automóvel, não     mais podia resistir aos novos fatos que se descortinavam diante de meus olhos. Sem dúvida não havia carros avariados em parte alguma. Todos que ali existiam estavam de prontidão e, agora, eu podia avistar homens com armas em riste em direção ao chão; homens da polícia. Havia também vários civis com rifles, e até mesmo mulheres que por ali estavam apontando armas em direção a alguma coisa que se arrastava inquieta ao nível do solo. 

Ao meu lado um novo carro estacionou de repente quase atingindo a traseira de minha bicicleta e dele saltou uma mulher muito abalada e chorosa seguida de um homem alto e magro aparentando andar entre os 50 anos ou mais.

"Espere Hannah!" Gritou o homem passando bem ao meu lado. Por um instante nossos olhos se encontraram e os dele me transmitiram um terror tão real e palpável que todos os pelos de meus braços se eriçaram imediatamente. "Não é ela! Não é ela!" Repetia o homem. A mulher, já bem a diante, não mais se conteve e desatou a gritar quando, avançando furiosa sobre a multidão, avistou seja lá o que fosse jogado ao chão da estrada. 

Aqui tenho que parar um pouco. Meus nervos não permitem mais que continue pois me veio, agora com cores ainda mais nítidas, uma lembrança que o trauma se havia encarregado de apagar parcialmente de minha memória. A lembrança da multidão armada dando passagem para a mulher de meia idade, como se num movimento em câmera lenta, e seus gritos desesperados na madrugada escura e fria:

“Oh, meu Deus! Tirem esta coisa de cima de minha filha! Não a deixem cravar-lhe os dentes desse jeito! Por Deus, ajudem!”


III

Em 1995, ao visitar minha amada Paula na cidadezinha onde ela viveu por quase toda a sua vida, tive que cruzar pela primeira vez em vinte anos a região onde o horror da madrugada de Dezembro sucedeu. Parei no acostamento e fiquei a contemplar as duas árvores imensas que margeavam a estrada bem no ponto onde as cenas terríveis tiveram lugar. As tristes lembranças então tomaram conta mais uma vez de minha memória e não pude conter uma agitação incômoda no coração que se traduziu por uma centena de lágrimas em meus olhos.   

Ao longe pude ouvir o som de um trator de esteira que cultivava a terra de algum produtor rural e, desafiando o brilho escarlate do sol poente para olhar com mais atenção a diante, pude mesmo reconhecer as cores vermelhas e brancas de um veículo imenso que operava nas terras de uma fazenda.

Ouvi passos furtivos atrás de mim e me virei com o coração quase explodindo. A tensão verdadeira me fez erguer os punhos não sei se numa tentativa de ataque ou de defesa. Mas o homem que estava parado às minhas costas era apenas Zacarias Lavern, outro que ali estivera na madrugada fatídica.

"Eu sempre venho aqui... Durante o dia." Disse ele sem nem mesmo olhar em meus olhos, como se estivesse envergonhado por me encontrar; como se fosse, assim como eu, o guardião de um segredo abjeto. "Ajuda a suportar!" Disse por fim e se calou completamente.      

Ficamos calados a fitar o espaço entre as duas árvores do mesmo lado da estrada, num ponto em que o terreno após o acostamento já começava a se elevar em direção à cerca de proteção da fazenda dos Narva. Eu queria perguntar o que mais havia ocorrido naquela madrugada antes do amanhecer, mas Lavern, parecendo perceber minha intenção, me deu as costas e saiu caminhando pela estrada em direção à cidade. Seriam 15 quilômetros até chegar ao centro, se este fosse seu destino, e seus passos eram lentos e encurvados como os de um velho triste a carregar uma cruz de peso quase insuportável.

De algum lugar muito distante o som de uma briga de cães chegou a meus ouvidos. Eram gritos animalescos de dor e ódio que evocaram ainda mais angustias do passado. Juntos com o assobio triste do vento a se chocar contra os galhos balouçantes das árvores, aqueles brados agônicos foram se tornando cada vez mais assustadores para mim até que todo o meu corpo foi tomado por tremores incontidos. Sentei-me a beira da estrada e dei livre vazão à enxurrada de recordações que me assolavam.

Em minhas memórias vi novamente o rosto contorcido de dor da mulher que saltara do carro e as armas das pessoas apontadas para uma coisa que se arrastava no solo. Um homem triste e amedrontado passara por mim deixando atrás de si arrepios que me eriçaram os pelos. Uma sensação de medo indizível estava se apossando de tudo e de todos; e o frio só intensificava o mal estar.      

À minha frente a multidão continuava a assistir aturdida a agonia da mulher que, agora contida pelos braços do homem que a acompanhava, somente podia limitar-se a gritar enlouquecida.

Resolvi me aproximar mais. Não podia continuar sem procurar saber o que realmente estava acontecendo.

Entre os rostos assustados e repugnados que vi nas sombras que se esgueiravam disputando espaço com os lampejos de luz artificial pude reconhecer alguns moradores da região; pessoas que habitavam aquelas fazendas desertas pelas quais eu passara poucos quilômetros antes. E percebi que alguns homens armados e de semblantes graves saíam das matas enlameados e agitados como se estivessem envolvidos numa caçada febril.

Espero que entendam o que vou tentar narrar de agora em diante, e se não entenderem, não se preocupem! Ponham a culpa neste velho senil que escreve. Mas peço que não me considerem um mentiroso mesmo que pensem de mim as coisas mais extraordinárias. Não estou mentindo! Não estou delirando quando afirmo que, de repente, do meio do círculo formado pela multidão, veio o mesmo som de barítono que eu já ouvira antes. E desta vez pude entender do que se tratava. Não era, de forma nenhuma, um trovão! Era um grito! Um urro! Como o clamor de ódio de um leão feroz prestes a atacar.

Olhei a diante novamente, por entre as pernas das pessoas a minha frente, e a sombra continuava arremessando-se de um lado para o outro. A poeira da estrada pairava no ar em contraste com as luzes formando barras translúcidas e um vapor branco de respiração forte subia do nível do solo pairando sobre as cabeças das pessoas estupefatas. Muitos recuavam ante algum cheiro terrível que parecia vir de lá.

"Matem essa coisa! Em nome de Deus!" Ouvi a mulher histérica gritar bem ao meu lado ainda contida pelo homem aterrorizado e por algumas outras pessoas que a olhavam penalizadas.

A sombra no meio do circulo de pessoas rosnou novamente; um apavorante urro de ódio que me gelou o sangue nas veias.

Resolvi me aproximar ainda mais e então o circulo pareceu se abrir um pouco me permitindo ver além das pessoas.

Havia muito sangue no asfalto; grandes poças que se avolumavam rapidamente. Uma coisa corpulenta corria sobre o líquido espesso, de um lado para o outro, espalhando pegadas rubras por toda parte, no interior do circulo, como uma fera acuada; um terrível tigre assassino enjaulado e colérico. Mas algo na própria essência do ar da noite parecia indicar que não era mesmo um animal comum que ali estava e não estava só! Havia algo que ele arrastava consigo de um lado para o outro como um cão que carrega uma presa abatida entre os dentes.     

Ao menor sinal de movimento das pessoas, o vulto avançava como para atacar. Duas mulheres armadas de potentes rifles saíram da minha frente; estavam chorando copiosamente. Aproveitando a deixa para me aproximar definitivamente do interior do circulo me espremi contra as costas de alguns velhos caçadores locais famosos que ali estavam de olhos arregalados e tremendo.      

Vi uma coisa que nunca mais quero ver e que mudou toda a minha vida. O barulho lamentoso da multidão era assustador e eu mesmo senti sair de meus pulmões um grito incontido de pavor e repulsa enquanto calafrios violentos percorreram todo o meu corpo fazendo minhas pernas arquearem involuntariamente.

Havia uma criança jazendo no chão ensanguentado. Seu corpinho branco estava despido e seus cabelinhos loiros e encaracolados estavam encharcados de um sangue negro e espesso que brotava borbulhante de seu crânio esfacelado. Oh, meu senhor, nunca mais esquecerei a visão de seus olhos azuis arregalados mas sem vida; o olhar de terror e de súplica que, por certo, foi o último emitido antes do golpe que eliminou sua vida inocente. Não podia ter mais que dez anos aquela criança e uma de suas mãozinhas pálidas estava erguida como num último movimento para pedir ajuda; os dedinhos avermelhados, rígidos e espraiados, traziam minúsculas unhas quebradas.

Ao seu lado, sentado como um alucinado cão de guarda, estava um homem nu, de aparência feroz; anormal. Quase não podia ser reconhecido por muitos dos presentes devido a quantidade repugnante de sangue em seu rosto e aos pedaços de carne e ossos enredados em seus cabelos compridos. Seus olhos rodavam nas órbitas e deixavam à mostra a parte branca do globo ocular. De repente voltavam ao normal e exibiam uma coloração amarelada como a dos olhos das feras. Suas mãos, postas no chão com vigor, arranhavam o asfalto e deixavam nele profundas marcas de garras que eram afiadas e compridas como se nunca na vida as tivesse aparado.   

Soltando vapores brancos no escuro aquela criatura rosnou novamente e seu hálito fétido invadiu o ar frio da madrugada fazendo a multidão recuar outra vez. Ela estampava no semblante uma careta insana e zombeteira; uma espécie de sorriso maquiavélico de cuja boca uma substância avermelhada gotejava e escorria pelo queixo comprido; descia pelo peito arquejante e ia se espalhar no chão ao seu redor. Todo o seu corpo volumoso emanava um vigor sobrenatural como se a qualquer momento ele pudesse simplesmente saltar e estraçalhar todos ao seu redor.

Em meu horror, onde um torpor dominava todo o meu ser envolvendo-me num estado onde o desmaio parecia ser a próxima etapa, ouvi novamente a mulher gritar atrás de mim.

"Matem! Matem! Ele está devorando minha filha! A cabeça dela! A cabeça dela!"      

Alguém mais próximo de mim apoiou-se em meus ombros e gritou em direção ao centro do círculo:     

"Demônio! És um demônio!".

A coisa agachada rosnou mostrando os dentes que brilharam sob a luz das lanternas e sirenes. Oh, meu Deus! Eles não eram os de um homem! Eram presas afiadas! Presas de animal! E, quando a boca escura se abriu para gritar, todo o maxilar pareceu se alongar dando ao rosto furioso um formato afunilado como o dos cães. Deus me perdoe, mas durante o movimento da cabeça acho que vi suas orelhas assomarem do meio dos cabelos desgrenhados e elas eram finas e compridas na parte de cima.     

À medida que o tempo passava as pessoas e os ânimos se exacerbavam ainda mais. Alguns, com os nervos em frangalhos, caiam no chão com tremores e fraquezas nas pernas. Alguém gritou de longe: "Atire logo nesse bicho! Atire! Atire! A criança já está morta!” Mas outro respondeu que deveriam tentar pegar o cadáver primeiro. E tudo que se dizia com relação à coisa na estrada era respondido com berros violentos por ela.     

Em dado momento voltei-me para trás, pois a ausência dos gritos da mãe da menina finalmente me chamou a atenção. O carro em que viera estava de portas abertas e um pequeno grupo de pessoas estava lá ao lado do homem que a acompanhava. A mulher desmaiara.  

Uma súbita agitação na multidão me fez voltar à antiga posição. A criatura não estava mais onde estivera!    

Ouvi armas de todos os tipos sendo engatilhadas. Gritos de horror se espalharam novamente pela noite escura e vieram então os primeiros tiros seguidos por uma saraivada que jamais deixei de ouvir em todos estes anos.      

De início não soube para onde olhar além da estrada. O corpo da criança havia desaparecido. Foi o rastro deixado por seu sangue que me reorientou.

Entre as duas árvores enormes que ficavam na margem esquerda do asfalto, envolta por uma cortina de fumaça de pólvora, estava a coisa-homem parada, mais alta do que eu havia imaginado. Ela segurava com suas garras o corpo da menininha e o sacudia de um lado para o outro tentando arrancar pedaços com a boca e as grandes presas. As balas que a atingiam não a derrubavam. Os homens da polícia estavam atônitos e gritavam por reforço nos rádios das viaturas.

Meu estômago revirou no momento em que o monstro, com os dentes cravados ao pescoço da criança morta, abocanhou-o tão violentamente que conseguiu parti-lo com um som terrível de ossos e pele se rompendo. O sangue jorrou escuro sobre sua cara medonha e ele separou a cabeça do corpo como se faz com uma boneca de plástico.

Homens e mulheres, enlouquecidos de pavor, avançaram para a coisa disparando seus projéteis trêmulos; alguns outros que estava mais distantes, apossando-se de qualquer arma que encontrassem à mão, correram com fúria assassina em sua direção. Zacarias Lavern passou por mim com um revolver e seu olhar era o de um homem louco.

Os tiros ecoaram na noite. A cerca de madeira da fazenda mais próxima foi destruída pelo horror que seguira para os campos iluminados tenuemente por uma lua mortiça e encoberta. Atrás dela iam aqueles que habitavam a região e os cães faziam uma algazarra que aos poucos se ia tornando maior que os estampidos de armas de fogo e os berros da besta humana que a pouco estivera tão perto de mim.

Sozinho em meio a todo o sangue da pobre criança que banhava o asfalto, e aos soluços de choro das mulheres que ficaram a cuidar dos pais da menina, me abaixei próximo ao corpinho largado entre as árvores na margem da estrada mas não pude mais fitar seu semblante pois a coisa havia levado consigo a cabecinha branca de olhos azuis. 

Depois me ergui com dificuldades e fui até o carro dos pais. O homem estava em pé ao lado da mulher desmaiada no banco do motorista. Eu o olhei nos olhos e devo ter lhe devolvido o ar de espanto com que ele me olhara ao chegar porque, sem que eu dissesse nada, ele veio a mim e falou com uma voz oprimida e trêmula:

"Eu te conheço! Sempre te vejo passar por esta estrada. Saiba que aqui guardamos nossos segredos!"

Ele então lançou um olhar de profunda tristeza ao corpo de sua filha jazendo na estrada e continuou:

"Hoje, às sete da noite, este animal invadiu nossa fazenda. Matou os cães e devorou quase todos os porcos. Depois entrou pela janela do quarto de nossa menina e a arrastou para a mata. Fomos nós que chamamos todos os vizinhos para juntos adentrarmos estes pântanos encharcados a procura de nossa garotinha e da abominação que a levara.

Não é a primeira vez que ele aparece saído sabe-se lá de onde nesta terrível floresta que nos cerca. Todos por aqui já sabiam do perigo que nos rondava mas nunca se pensou que ele pudesse atacar as pessoas nas casas. No início ele se contentava em roer as carcaças dos cadáveres do velho cemitério dos padres e as dos criminosos enterrados nos fundos do prédio abandonado do velho presídio mas, depois, passou a rondar as fazendas querendo os nossos animais... E nossos filhos pequenos. Sabe-se lá quantos meninos e meninas ele devorou antes de nossa filhinha esta noite. Devíamos tê-lo caçado e matado antes que adquirisse gosto pela carne de crianças. Não o fizemos até hoje pois amamos todos que aqui vivem, e os respeitamos. Agora tivemos que caçá-lo de qualquer jeito. É o preço que pagamos por nossa consideração."

O homem transtornado voltou o olhar para a floresta próxima respirando com tamanha dificuldade e tremor nervoso que meu coração se encheu de pesares ainda maiores do que os que já sentia. Foi somente depois de alguns segundos de reflexão que ele, num tom de devastadora angústia, continuou:

"Só o que me reconforta é que minha menina não sobreviveu e por isso sei, tenho certeza, que ela nunca estará a correr estes campos de madrugada."

Dito isso ele se afastou e andou lentamente em direção ao corpo decapitado e exangue de sua filha onde se ajoelhou como a rezar e chorar.    

Olhei a escuridão em volta imaginando onde estariam as pessoas e a fera. O silêncio a tudo dominava e não se podia mais ouvir nenhum resquício da algazarra de outrora. Onde estariam? No fundo das matas e pântanos escuros que assolavam a região? Estariam com a besta sob a mira de suas armas ou estariam sob as garras da fera demoníaca que perseguiam?

Não quis mais saber! Montei em minha bicicleta e parti dali o mais rápido que pude.     

Mudei-me uma semana depois para o outro lado do país; o litoral. Não avisei ninguém de minha partida e nunca dei notícias de meu paradeiro nem mesmo para minha família que, transtornada, deu-me como morto após procurar-me até mesmo no exterior. Em nenhum momento me preocupei com eles e com sua segurança, confesso! E sei que minha vida está se abreviando também pela culpa que sinto. Foi por este motivo que voltei à região, vinte anos depois, superando o medo e o trauma para estar com minha prima cuja lembrança talvez tenha me livrado da total demência durante os anos de "exílio"; e para reencontrar, mesmo que brevemente, aqueles parentes que ainda viviam. 

Até hoje, passados trinta anos, jamais falei com ninguém a respeito do ocorrido na noite de 25 de Dezembro de 1975; nem mesmo com Paula, com quem me casei e que apenas suspeitou do horror que vivi. Porém, depois que minha esposa partiu deste mundo me deixando só com minhas tétricas recordações, busquei de todas as maneiras informar-me sobre as possibilidades da existência real de criaturas indizíveis através de livros e artigos de doutores estudiosos de todo o mundo. Nunca consegui chegar a uma definição plausível ou sequer aceitável sobre o que poderia ser a fera; apenas conjecturas terríveis e pavorosas suspeitas de que naquela noite eu e aquelas pessoas tivemos um terrível contato com algo que deveria habitar tão somente os pesadelos mais primitivos do homem.   

Por isso resolvi escrever toda a história antes que me alcance a morte que já não tarda: Para que aqueles que lerem estas páginas saibam do mal que se escondeu um dia nas estradas e campos escuros de uma região rural deste país e que, desde que eu nunca soube o que realmente lhe aconteceu, ou o fim que lhe deram, ainda pode perfeitamente estar a se esconder.


EVARISTO, Henry. Um salto na escuridão: Contos de Terror e Solidão. Rio Branco: Clube de Autores, 2009. p.51-70
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HENRY EVARISTO, acreano de Rio Branco, onde nasceu (1975) e faleceu (2010) é considerado “um dos mais respeitados escritores da moderna literatura fantástica brasileira”. Deixou um único livro escrito: UM SALTO NA ESCURIDÃO: contos de terror e solidão (Clube de Autores, 2009). Em 2016, Natália de Barros Nascimento defendeu, na Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), a dissertação    MEMÓRIAS OBSCURAS: o terror nos contos de Henry Evaristo”.

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