Henry Evaristo
(1975-2010)
I
Só me disponho
agora a relatar o que ocorreu na estrada do antigo presídio, durante a
madrugada de 25 de dezembro de 1975, por que sinto subitamente uma incontida
necessidade de aliviar, por pouco que seja, minha mente desta dúvida cruel que
me assola há mais de 30 anos.
Serei breve, muito
breve, pois tudo aquilo ainda me assusta deveras e neste momento estou sozinho,
é tarde da noite, e a escuridão grassa nos cantos ocultos do lado de fora.
Esta maldita noite
eu passara em casa de meu tio materno, cuja filha, minha prima Paula, me era de
muita estima e até ensaiávamos um romance meio incestuoso e certamente proibido
pelos ditames de nossa família ultraconservadora.
Por volta das
23h30m saí da residência iluminada pelas diversas e festivas luzes e vozes do
Natal e me dirigi para a estrada de acesso a meu próprio endereço que se
situava numa localidade rural afastada 20 quilômetros do centro da cidade. Para
me locomover fazia uso de uma antiga bicicleta guardada desde os tempos de
menino.
No caminho, além de
velhas fazendas com construções estranhas mergulhadas nas altas horas escuras,
ficavam o velho cemitério dos padres católicos e o antigo e abandonado presídio
municipal.
Observei, não sem
grande estranheza, que justamente naquela data tão supostamente festiva todas
as sedes de fazenda pelas quais passei se encontravam imersas nas mais pétreas
trevas; e uma quietude angustiante passou a me oprimir a garganta. O único
pensamento que me assaltou então era o de que ali estava a ocorrer algo muito
errado.
E meu imaginário
realmente deve ter trabalhado com afinco naquela noite para produzir os
horrores que se avizinhavam, sem que eu deles sequer suspeitasse, apesar da
estranheza que o ambiente me transmitia.
De repente, ao
longe, avistei diversos clarões refletindo-se nas matas ao redor da estrada.
Eram como muitas luzes coloridas oscilando na escuridão; luzes de carros de
polícia.
Imediatamente parei
a bicicleta e fiquei a perscrutar o horizonte logo adiante com bastante atenção
para tentar visualizar melhor o que quer que fosse em meio às densas trevas que
me circundavam. Não me custou entender que realmente se tratavam de luzes de
sirenes silenciosas em meio a reflexos brancos e amarelados que por certo
seriam focos de inúmeras lanternas cruzando o ar nervosamente.
Pensei então que se
havia algo errado por ali melhor seria mesmo que a polícia estivesse presente.
E foi este pensamento, em primeira instância reconfortante, que me fez dar
movimento novamente a meu "veículo" e rumar em direção ao pior
pesadelo de minha vida.
II
A lembrança que
mais se insinua pelos meandros de minha velha razão vacilante é a da sensação de
pânico que experimentei naquela terrível escuridão. O frio também ainda é bem
nítido em minha memória; aquele maldito frio de dezembro em que uma garoa
pegajosa desabava do céu furioso como uma saliva aziaga que se incrustava nas
roupas, na pele, em tudo.
Ah, como ainda me
causam arrepios aqueles clarões na madrugada! E como me arrependo de não ter
dado mais atenção aos sons que deles vinham reverberando pelas matas como
sinais de perigo. E não digo sons de coisas maquinais, pois estas estavam
silentes naquele momento; refiro-me, sim, aos lamentos humanos que brotavam e
ecoavam do horizonte negro; e ainda a um terrível som de algo muito grave que
retumbava como trovão pela noite. Mas a isso não dei importância, pois apenas o
visual me hipnotizava.
No entanto, ao me
aproximar, depois que comecei a ver vultos de pessoas nervosas que corriam e se
apertavam em torno de um círculo no meio da estrada deserta e escura, tudo o
que vi ao longe perdeu toda a importância e os sons e as novas visões dali em diante
é que dominaram e modificaram para sempre este velho relator.
Estando eu mais
próximo agora do grupo de pessoas, já podia ouvir melhor os sons desesperados e
estupefatos que provinham de suas bocas entreabertas. Elas gritavam e se
lamentavam no escuro para algo que parecia estar no chão, no meio do asfalto,
ou em algum ponto da margem esquerda da estrada.
Por entre pernas
iluminadas pelos reflexos das luzes das sirenes de inúmeras viaturas
estacionadas por todo o terreno, e pelas luzes de dezenas de lanternas
faiscando e formando raios brancos em contraste com a poeira da noite, eu pude
divisar um vulto escuro que se agachava e variava de posição conforme a
multidão parecia se insinuar para ele. Algo que me pareceu estar tentando
desesperadamente se esquivar da proximidade daquelas dúzias de homens e
mulheres.
A primeira
impressão, de um acidente de automóvel, não
mais podia resistir aos novos fatos que se descortinavam diante de meus
olhos. Sem dúvida não havia carros avariados em parte alguma. Todos que ali
existiam estavam de prontidão e, agora, eu podia avistar homens com armas em
riste em direção ao chão; homens da polícia. Havia também vários civis com
rifles, e até mesmo mulheres que por ali estavam apontando armas em direção a
alguma coisa que se arrastava inquieta ao nível do solo.
Ao meu lado um novo
carro estacionou de repente quase atingindo a traseira de minha bicicleta e
dele saltou uma mulher muito abalada e chorosa seguida de um homem alto e magro
aparentando andar entre os 50 anos ou mais.
"Espere
Hannah!" Gritou o homem passando bem ao meu lado. Por um instante nossos
olhos se encontraram e os dele me transmitiram um terror tão real e palpável
que todos os pelos de meus braços se eriçaram imediatamente. "Não é ela!
Não é ela!" Repetia o homem. A mulher, já bem a diante, não mais se
conteve e desatou a gritar quando, avançando furiosa sobre a multidão, avistou
seja lá o que fosse jogado ao chão da estrada.
Aqui tenho que
parar um pouco. Meus nervos não permitem mais que continue pois me veio, agora
com cores ainda mais nítidas, uma lembrança que o trauma se havia encarregado
de apagar parcialmente de minha memória. A lembrança da multidão armada dando
passagem para a mulher de meia idade, como se num movimento em câmera lenta, e
seus gritos desesperados na madrugada escura e fria:
“Oh, meu Deus!
Tirem esta coisa de cima de minha filha! Não a deixem cravar-lhe os dentes desse
jeito! Por Deus, ajudem!”
III
Em 1995, ao visitar
minha amada Paula na cidadezinha onde ela viveu por quase toda a sua vida, tive
que cruzar pela primeira vez em vinte anos a região onde o horror da madrugada
de Dezembro sucedeu. Parei no acostamento e fiquei a contemplar as duas árvores
imensas que margeavam a estrada bem no ponto onde as cenas terríveis tiveram
lugar. As tristes lembranças então tomaram conta mais uma vez de minha memória
e não pude conter uma agitação incômoda no coração que se traduziu por uma
centena de lágrimas em meus olhos.
Ao longe pude ouvir
o som de um trator de esteira que cultivava a terra de algum produtor rural e,
desafiando o brilho escarlate do sol poente para olhar com mais atenção a
diante, pude mesmo reconhecer as cores vermelhas e brancas de um veículo imenso
que operava nas terras de uma fazenda.
Ouvi passos
furtivos atrás de mim e me virei com o coração quase explodindo. A tensão
verdadeira me fez erguer os punhos não sei se numa tentativa de ataque ou de
defesa. Mas o homem que estava parado às minhas costas era apenas Zacarias
Lavern, outro que ali estivera na madrugada fatídica.
"Eu sempre
venho aqui... Durante o dia." Disse ele sem nem mesmo olhar em meus olhos,
como se estivesse envergonhado por me encontrar; como se fosse, assim como eu,
o guardião de um segredo abjeto. "Ajuda a suportar!" Disse por fim e
se calou completamente.
Ficamos calados a
fitar o espaço entre as duas árvores do mesmo lado da estrada, num ponto em que
o terreno após o acostamento já começava a se elevar em direção à cerca de
proteção da fazenda dos Narva. Eu queria perguntar o que mais havia ocorrido
naquela madrugada antes do amanhecer, mas Lavern, parecendo perceber minha
intenção, me deu as costas e saiu caminhando pela estrada em direção à cidade.
Seriam 15 quilômetros até chegar ao centro, se este fosse seu destino, e seus
passos eram lentos e encurvados como os de um velho triste a carregar uma cruz
de peso quase insuportável.
De algum lugar
muito distante o som de uma briga de cães chegou a meus ouvidos. Eram gritos
animalescos de dor e ódio que evocaram ainda mais angustias do passado. Juntos
com o assobio triste do vento a se chocar contra os galhos balouçantes das
árvores, aqueles brados agônicos foram se tornando cada vez mais assustadores
para mim até que todo o meu corpo foi tomado por tremores incontidos. Sentei-me
a beira da estrada e dei livre vazão à enxurrada de recordações que me
assolavam.
Em minhas memórias
vi novamente o rosto contorcido de dor da mulher que saltara do carro e as
armas das pessoas apontadas para uma coisa que se arrastava no solo. Um homem
triste e amedrontado passara por mim deixando atrás de si arrepios que me
eriçaram os pelos. Uma sensação de medo indizível estava se apossando de tudo e
de todos; e o frio só intensificava o mal estar.
À minha frente a
multidão continuava a assistir aturdida a agonia da mulher que, agora contida
pelos braços do homem que a acompanhava, somente podia limitar-se a gritar
enlouquecida.
Resolvi me
aproximar mais. Não podia continuar sem procurar saber o que realmente estava
acontecendo.
Entre os rostos
assustados e repugnados que vi nas sombras que se esgueiravam disputando espaço
com os lampejos de luz artificial pude reconhecer alguns moradores da região;
pessoas que habitavam aquelas fazendas desertas pelas quais eu passara poucos
quilômetros antes. E percebi que alguns homens armados e de semblantes graves
saíam das matas enlameados e agitados como se estivessem envolvidos numa caçada
febril.
Espero que entendam
o que vou tentar narrar de agora em diante, e se não entenderem, não se
preocupem! Ponham a culpa neste velho senil que escreve. Mas peço que não me
considerem um mentiroso mesmo que pensem de mim as coisas mais extraordinárias.
Não estou mentindo! Não estou delirando quando afirmo que, de repente, do meio
do círculo formado pela multidão, veio o mesmo som de barítono que eu já ouvira
antes. E desta vez pude entender do que se tratava. Não era, de forma nenhuma,
um trovão! Era um grito! Um urro! Como o clamor de ódio de um leão feroz
prestes a atacar.
Olhei a diante
novamente, por entre as pernas das pessoas a minha frente, e a sombra
continuava arremessando-se de um lado para o outro. A poeira da estrada pairava
no ar em contraste com as luzes formando barras translúcidas e um vapor branco
de respiração forte subia do nível do solo pairando sobre as cabeças das
pessoas estupefatas. Muitos recuavam ante algum cheiro terrível que parecia vir
de lá.
"Matem essa
coisa! Em nome de Deus!" Ouvi a mulher histérica gritar bem ao meu lado
ainda contida pelo homem aterrorizado e por algumas outras pessoas que a
olhavam penalizadas.
A sombra no meio do
circulo de pessoas rosnou novamente; um apavorante urro de ódio que me gelou o
sangue nas veias.
Resolvi me
aproximar ainda mais e então o circulo pareceu se abrir um pouco me permitindo
ver além das pessoas.
Havia muito sangue
no asfalto; grandes poças que se avolumavam rapidamente. Uma coisa corpulenta
corria sobre o líquido espesso, de um lado para o outro, espalhando pegadas
rubras por toda parte, no interior do circulo, como uma fera acuada; um
terrível tigre assassino enjaulado e colérico. Mas algo na própria essência do
ar da noite parecia indicar que não era mesmo um animal comum que ali estava e
não estava só! Havia algo que ele arrastava consigo de um lado para o outro
como um cão que carrega uma presa abatida entre os dentes.
Ao menor sinal de
movimento das pessoas, o vulto avançava como para atacar. Duas mulheres armadas
de potentes rifles saíram da minha frente; estavam chorando copiosamente.
Aproveitando a deixa para me aproximar definitivamente do interior do circulo
me espremi contra as costas de alguns velhos caçadores locais famosos que ali
estavam de olhos arregalados e tremendo.
Vi uma coisa que
nunca mais quero ver e que mudou toda a minha vida. O barulho lamentoso da
multidão era assustador e eu mesmo senti sair de meus pulmões um grito
incontido de pavor e repulsa enquanto calafrios violentos percorreram todo o
meu corpo fazendo minhas pernas arquearem involuntariamente.
Havia uma criança
jazendo no chão ensanguentado. Seu corpinho branco estava despido e seus
cabelinhos loiros e encaracolados estavam encharcados de um sangue negro e
espesso que brotava borbulhante de seu crânio esfacelado. Oh, meu senhor, nunca
mais esquecerei a visão de seus olhos azuis arregalados mas sem vida; o olhar
de terror e de súplica que, por certo, foi o último emitido antes do golpe que
eliminou sua vida inocente. Não podia ter mais que dez anos aquela criança e
uma de suas mãozinhas pálidas estava erguida como num último movimento para
pedir ajuda; os dedinhos avermelhados, rígidos e espraiados, traziam minúsculas
unhas quebradas.
Ao seu lado,
sentado como um alucinado cão de guarda, estava um homem nu, de aparência
feroz; anormal. Quase não podia ser reconhecido por muitos dos presentes devido
a quantidade repugnante de sangue em seu rosto e aos pedaços de carne e ossos
enredados em seus cabelos compridos. Seus olhos rodavam nas órbitas e deixavam
à mostra a parte branca do globo ocular. De repente voltavam ao normal e
exibiam uma coloração amarelada como a dos olhos das feras. Suas mãos, postas
no chão com vigor, arranhavam o asfalto e deixavam nele profundas marcas de
garras que eram afiadas e compridas como se nunca na vida as tivesse
aparado.
Soltando vapores
brancos no escuro aquela criatura rosnou novamente e seu hálito fétido invadiu
o ar frio da madrugada fazendo a multidão recuar outra vez. Ela estampava no
semblante uma careta insana e zombeteira; uma espécie de sorriso maquiavélico
de cuja boca uma substância avermelhada gotejava e escorria pelo queixo
comprido; descia pelo peito arquejante e ia se espalhar no chão ao seu redor.
Todo o seu corpo volumoso emanava um vigor sobrenatural como se a qualquer
momento ele pudesse simplesmente saltar e estraçalhar todos ao seu redor.
Em meu horror, onde
um torpor dominava todo o meu ser envolvendo-me num estado onde o desmaio
parecia ser a próxima etapa, ouvi novamente a mulher gritar atrás de mim.
"Matem! Matem!
Ele está devorando minha filha! A cabeça dela! A cabeça dela!"
Alguém mais próximo
de mim apoiou-se em meus ombros e gritou em direção ao centro do círculo:
"Demônio! És
um demônio!".
A coisa agachada
rosnou mostrando os dentes que brilharam sob a luz das lanternas e sirenes. Oh,
meu Deus! Eles não eram os de um homem! Eram presas afiadas! Presas de animal!
E, quando a boca escura se abriu para gritar, todo o maxilar pareceu se alongar
dando ao rosto furioso um formato afunilado como o dos cães. Deus me perdoe,
mas durante o movimento da cabeça acho que vi suas orelhas assomarem do meio
dos cabelos desgrenhados e elas eram finas e compridas na parte de cima.
À medida que o
tempo passava as pessoas e os ânimos se exacerbavam ainda mais. Alguns, com os
nervos em frangalhos, caiam no chão com tremores e fraquezas nas pernas. Alguém
gritou de longe: "Atire logo nesse bicho! Atire! Atire! A criança já está
morta!” Mas outro respondeu que deveriam tentar pegar o cadáver primeiro. E
tudo que se dizia com relação à coisa na estrada era respondido com berros
violentos por ela.
Em dado momento
voltei-me para trás, pois a ausência dos gritos da mãe da menina finalmente me
chamou a atenção. O carro em que viera estava de portas abertas e um pequeno
grupo de pessoas estava lá ao lado do homem que a acompanhava. A mulher
desmaiara.
Uma súbita agitação
na multidão me fez voltar à antiga posição. A criatura não estava mais onde
estivera!
Ouvi armas de todos
os tipos sendo engatilhadas. Gritos de horror se espalharam novamente pela
noite escura e vieram então os primeiros tiros seguidos por uma saraivada que
jamais deixei de ouvir em todos estes anos.
De início não soube
para onde olhar além da estrada. O corpo da criança havia desaparecido. Foi o
rastro deixado por seu sangue que me reorientou.
Entre as duas
árvores enormes que ficavam na margem esquerda do asfalto, envolta por uma
cortina de fumaça de pólvora, estava a coisa-homem parada, mais alta do que eu
havia imaginado. Ela segurava com suas garras o corpo da menininha e o sacudia
de um lado para o outro tentando arrancar pedaços com a boca e as grandes
presas. As balas que a atingiam não a derrubavam. Os homens da polícia estavam
atônitos e gritavam por reforço nos rádios das viaturas.
Meu estômago
revirou no momento em que o monstro, com os dentes cravados ao pescoço da
criança morta, abocanhou-o tão violentamente que conseguiu parti-lo com um som
terrível de ossos e pele se rompendo. O sangue jorrou escuro sobre sua cara
medonha e ele separou a cabeça do corpo como se faz com uma boneca de plástico.
Homens e mulheres,
enlouquecidos de pavor, avançaram para a coisa disparando seus projéteis
trêmulos; alguns outros que estava mais distantes, apossando-se de qualquer
arma que encontrassem à mão, correram com fúria assassina em sua direção.
Zacarias Lavern passou por mim com um revolver e seu olhar era o de um homem
louco.
Os tiros ecoaram na
noite. A cerca de madeira da fazenda mais próxima foi destruída pelo horror que
seguira para os campos iluminados tenuemente por uma lua mortiça e encoberta.
Atrás dela iam aqueles que habitavam a região e os cães faziam uma algazarra
que aos poucos se ia tornando maior que os estampidos de armas de fogo e os
berros da besta humana que a pouco estivera tão perto de mim.
Sozinho em meio a
todo o sangue da pobre criança que banhava o asfalto, e aos soluços de choro
das mulheres que ficaram a cuidar dos pais da menina, me abaixei próximo ao corpinho
largado entre as árvores na margem da estrada mas não pude mais fitar seu
semblante pois a coisa havia levado consigo a cabecinha branca de olhos
azuis.
Depois me ergui com
dificuldades e fui até o carro dos pais. O homem estava em pé ao lado da mulher
desmaiada no banco do motorista. Eu o olhei nos olhos e devo ter lhe devolvido
o ar de espanto com que ele me olhara ao chegar porque, sem que eu dissesse
nada, ele veio a mim e falou com uma voz oprimida e trêmula:
"Eu te
conheço! Sempre te vejo passar por esta estrada. Saiba que aqui guardamos
nossos segredos!"
Ele então lançou um
olhar de profunda tristeza ao corpo de sua filha jazendo na estrada e
continuou:
"Hoje, às sete
da noite, este animal invadiu nossa fazenda. Matou os cães e devorou quase
todos os porcos. Depois entrou pela janela do quarto de nossa menina e a
arrastou para a mata. Fomos nós que chamamos todos os vizinhos para juntos
adentrarmos estes pântanos encharcados a procura de nossa garotinha e da
abominação que a levara.
Não é a primeira
vez que ele aparece saído sabe-se lá de onde nesta terrível floresta que nos
cerca. Todos por aqui já sabiam do perigo que nos rondava mas nunca se pensou
que ele pudesse atacar as pessoas nas casas. No início ele se contentava em
roer as carcaças dos cadáveres do velho cemitério dos padres e as dos
criminosos enterrados nos fundos do prédio abandonado do velho presídio mas,
depois, passou a rondar as fazendas querendo os nossos animais... E nossos
filhos pequenos. Sabe-se lá quantos meninos e meninas ele devorou antes de
nossa filhinha esta noite. Devíamos tê-lo caçado e matado antes que adquirisse
gosto pela carne de crianças. Não o fizemos até hoje pois amamos todos que aqui
vivem, e os respeitamos. Agora tivemos que caçá-lo de qualquer jeito. É o preço
que pagamos por nossa consideração."
O homem
transtornado voltou o olhar para a floresta próxima respirando com tamanha
dificuldade e tremor nervoso que meu coração se encheu de pesares ainda maiores
do que os que já sentia. Foi somente depois de alguns segundos de reflexão que
ele, num tom de devastadora angústia, continuou:
"Só o que me
reconforta é que minha menina não sobreviveu e por isso sei, tenho certeza, que
ela nunca estará a correr estes campos de madrugada."
Dito isso ele se
afastou e andou lentamente em direção ao corpo decapitado e exangue de sua
filha onde se ajoelhou como a rezar e chorar.
Olhei a escuridão
em volta imaginando onde estariam as pessoas e a fera. O silêncio a tudo
dominava e não se podia mais ouvir nenhum resquício da algazarra de outrora.
Onde estariam? No fundo das matas e pântanos escuros que assolavam a região?
Estariam com a besta sob a mira de suas armas ou estariam sob as garras da fera
demoníaca que perseguiam?
Não quis mais saber!
Montei em minha bicicleta e parti dali o mais rápido que pude.
Mudei-me uma semana
depois para o outro lado do país; o litoral. Não avisei ninguém de minha
partida e nunca dei notícias de meu paradeiro nem mesmo para minha família que,
transtornada, deu-me como morto após procurar-me até mesmo no exterior. Em
nenhum momento me preocupei com eles e com sua segurança, confesso! E sei que
minha vida está se abreviando também pela culpa que sinto. Foi por este motivo
que voltei à região, vinte anos depois, superando o medo e o trauma para estar
com minha prima cuja lembrança talvez tenha me livrado da total demência
durante os anos de "exílio"; e para reencontrar, mesmo que
brevemente, aqueles parentes que ainda viviam.
Até hoje, passados
trinta anos, jamais falei com ninguém a respeito do ocorrido na noite de 25 de
Dezembro de 1975; nem mesmo com Paula, com quem me casei e que apenas suspeitou
do horror que vivi. Porém, depois que minha esposa partiu deste mundo me
deixando só com minhas tétricas recordações, busquei de todas as maneiras
informar-me sobre as possibilidades da existência real de criaturas indizíveis
através de livros e artigos de doutores estudiosos de todo o mundo. Nunca
consegui chegar a uma definição plausível ou sequer aceitável sobre o que
poderia ser a fera; apenas conjecturas terríveis e pavorosas suspeitas de que
naquela noite eu e aquelas pessoas tivemos um terrível contato com algo que
deveria habitar tão somente os pesadelos mais primitivos do homem.
Por isso resolvi escrever
toda a história antes que me alcance a morte que já não tarda: Para que aqueles
que lerem estas páginas saibam do mal que se escondeu um dia nas estradas e
campos escuros de uma região rural deste país e que, desde que eu nunca soube o
que realmente lhe aconteceu, ou o fim que lhe deram, ainda pode perfeitamente
estar a se esconder.
EVARISTO, Henry. Um
salto na escuridão: Contos de Terror e Solidão. Rio Branco: Clube de Autores, 2009. p.51-70
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HENRY EVARISTO, acreano de Rio Branco, onde nasceu (1975) e faleceu
(2010) é considerado “um dos mais respeitados escritores da moderna literatura
fantástica brasileira”. Deixou um único livro escrito: UM SALTO NA ESCURIDÃO: contos de terror e solidão (Clube
de Autores, 2009). Em 2016, Natália de Barros Nascimento defendeu, na
Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), a dissertação “MEMÓRIAS OBSCURAS: o terror nos contos de Henry Evaristo”.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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