sexta-feira, 3 de novembro de 2017

MEU TEMPO DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU (Parte 2)

Txai Antônio Macêdo
Crônicas Indigenistas

Meus tempos de criança eram tempos difíceis, mas, mesmo assim muito animado. Muitas coisas aconteciam...

Um grito na floresta

Eu já trabalhava ajudando a minha mãe nos roçados. Meu ofício era carregar água limpa das fontes, para minha mãe e minhas irmãs beberem quando se encontravam trabalhando nos roçados.

Junto com minha irmã Kom Kem, durante o verão, pescávamos camarão em meio aos paus dos igarapés e fazíamos comidas muito gostosas, mas, eu gostava mesmo era do camarão assado no espeto e na brasa do fogão. E nesses momentos passávamos sempre por muitas aventuras, como, certa vez, quando fomos ‘pastorear’ passarinhos do tipo graúna e chupão, que comiam todo arroz dos roçados.

Nesse ‘serviço’ enquanto ficávamos de olho, de dentro da floresta ecoou um forte e tenebroso grito, que chegou a tremer a terra em nossos pés. Esse grito foi tão forte que mesmo muito abalados, eu e Kom Kem disparamos correndo feito loucos cruzando o igarapé do Caucho num vapt-vupt, e muito cansados, conseguimos chegar a nossa casa. Eu logo fui pro colo de nossa mãe e somente depois de muito esforço é que conseguimos contar o que tinha acontecido no roçado.

A morte do José Bonito

Nesses anos, também aconteceram casos muito sinistros, como, num dia domingo, onde acontecia uma ‘pamonhada’ de milho verde na nossa casa. Os nossos vizinhos costumavam vir aos domingos nos visitar, comer canjica e pamonha de milho verde.

Nesse dia calhou de logo ali no terreiro de nossa casa, um sujeito de nome José Bonito, junto com outro de nome Carlos Brás e seu irmão, que haviam tido uns desacertos antes, se encontraram. Mal se toparam e já se travaram numa briga, ali mesmo no terreiro. A confusão terminou com José Bonito morto com uma facada.

Depois dessa morte, colocaram uma cruz de madeira, para indicar onde caiu morto José Bonito. E essa cruz ficou fincada no nosso terreiro a partir de então. A gente era criança e tínhamos medo de alma. Mas, quando a gente queria ganhar uma coisa um do outro irmão ou irmã, então a gente colocava a coisa a prova. O melhor tempo de enfrentamento era sempre à noite e a maior prova era ir lá onde caiu morto José Bonito, arrancar a cruz e trazer pra mostrar para o outro que cumpriu o acordo.

Pior ainda, era que tinha que voltar e fincar a cruz no local. Vixi, isto era arrepiante.

Os porcos da dona Preta Peneira

A vida sempre nos prega peças, e muitas vezes nossa capacidade de resolução se dá de formas nem sempre aconselháveis...

Minha mãe costumava plantar suas roças perto de casa, mas tinham uns porcos, que pertenciam a uma senhora conhecida como dona Preta Peneira, que todos os dias invadiam o nosso roçado e comiam todas as roças. Eu e Kom Kem vivíamos correndo de um lado pro outro tangendo esses porcos.

Num daqueles dias em que a paciência, embora seja procurada não é encontrada, a minha mãe que tarrafeava* e atirava muito bem, pegou a espingarda, me chamou e, junto com ela fomos ao roçado. Quando chegamos lá, logo se viu que nossas roças estavam cheia de porcos devorando os nossos alimentos. Minha mãe não contou pipoca: pegou a espingarda e enquanto ela atirava, eu municiava a espingarda. - Assim minha mãe matou oito porcos da dona Preta Peneira.

Os filhos homens de dona Preta eram valentes, e minha mãe mandou que eu fosse a casa dela dizer para ela ir tirar os porcos de dentro do nosso roçado. Eu deveria dizer que ela levasse uma canoa para levar seus porcos, pois os mesmos já estavam mortos. Eu me arrepiei todo, mas, obediente, fui cumprir o mandado da minha mãe e tive a sorte ainda de voltar pra casa, na canoa de dona Preta, uma senhora gorda e morena que não usava as peças baixas. Ela estava sentada na popa e eu na proa do barco e, enquanto ela remava, se descuidava muito e eu via ‘coisas’ que, naquela época de criança, não podia sequer pensar, quanto mais ver aquilo. E assim, entre uma visão e outra, chegamos ao porto da casa de minha mãe.

Dona Preta e seus filhos foram buscar os porcos mortos, que se encontravam no meio de nossas roças. Eu tremia de medo e minha mãe parecia tranquila, no entanto, continuava segurando a sua espingarda nas mãos enquanto saía na varanda ordenando que tirassem os animais mortos de dentro de seu roçado. Ela pediu ainda que aqueles rapazes não machucassem suas roças, como seus porcos o fizeram. Graças a Deus não houve revolta e nem revanche e tudo ficou na paz... e eu tranquilo.

Do Igarapé do Caucho à Colocação Currimboque, no Seringal Colombo

Eu já contava oito anos de idade quando Nossa família decidiu se mudar para o Seringal Colombo.

Então, organizamos a nossa caravana de mudança e eu ganhei a responsabilidade de conduzir a canoa das galinhas. Os pintinhos piavam e defecavam tudo, e fedia exageradamente. Todos os dias eu tinha que tirar todas as capoeiras de galinha para fora do barco, lavar a canoa, recolocar as capoeiras de galinha e ‘varejar’ o dia inteiro, e assim se foram onze dias varejando e subindo o Rio Muru no odor das galinhas. Pior ficava quando dava uma chuva, as galinhas se molhavam e ai é que elas fediam mesmo.

Deixamos o Rio Muru e desta feita adentramos o igarapé São José. Com destino a colocação Currimboque, cerca de seis horas a pé da margem do rio Muru. Varejei mais quatro dias na canoa das galinhas subindo esse Igarapé. Aquilo era mesmo um verdadeiro ‘pau de arara’, e nós de tão enfadados, dormíamos nos barrancos do Igarapé, e assim finalmente chegamos ao nosso novo lugar para morar e trabalhar. Meus pés constantemente em contato com as águas dos rios findaram ganhando uma ‘frieira d’água’ que quase me custou os próprios pés. Alguns costumam chamar tal frieira d’água pelo nome de ‘Capa Rosa’.

A colocação Currimboque já estava há dezoito anos desocupada, ou seja, faziam dezoito anos que ninguém morava ali. Não tinha casa, não tinha roças, não tinha farinha e não tinha nada, mas, tinha muita caça e muito peixe. No entanto, não tinha o que chamamos de ‘mistura’: farinha de mandioca para comer peixe e carne como já era costume de quem morava e vivia do extrativismo nos seringais, e vivia da caça, da pesca e de roças de subsistência. - Porém, logo plantamos mandioca, milho, banana, abacaxi e outras plantas frutíferas. Passamos a recolher cocos de ouricuri na floresta, fazer disso farinha e dessa forma potencializar a nossa alimentação cotidiana.
Lembranças...

Todos que tiveram a oportunidade de ler estes textos, sobre minha infância nos seringais, fiquem espertos porque esta história continua sendo contada no próximo texto.

* pescar com tarafa.
** varejar – usar uma longa vara para impulsionar o barco.



Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem  admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com