Jorge
Carlos Amaral de Oliveira
Le véritable lieu de
naissance est celui où l'on a porté pour
la première fois un coup d'œil intelligent sur soi-même (...)
Margueritte Yourcenar
Em
1971, saí, a pé, do Rio de Janeiro com destino a Cruzeiro do Sul, no Acre. Mas
para contar porque subi caminhando a Serra de Petrópolis, no que foi a maior
aventura da minha vida e que me fez vir um dia a assumir essa acreanidade a
ponto de brincar que “Acreanos, mesmo, só o Bab Franca, eu e Galvez”, precisamos
andar dois anos para trás e contar como o meu caminho se cruzou com o de um
suboficial que foi a pedra de toque que fez a minha estrada tomar um rumo
completamente alheio à minha vontade.
Ao
me alistar para o serviço militar obrigatório fui designado para o Regimento
Escola de Infantaria, na minha cidade natal, Rio de Janeiro, porém, quando
chegou o dia de me apresentar, estava ausente, nas estradas, como fazia desde
os dezesseis anos, quando fugi de casa e da escola. Apresentei-me no primeiro
quartel que vi pela frente. Tratava-se do 13º Regimento de Infantaria, em Ponta
Grossa, no Estado do Paraná. Lá fiquei sendo o “Carioquinha”, quando tratado
com carinho ou, o “Catarina” (alusivo ao Estado fronteiriço), quando com
desafeto. Sempre alguém de fora, mas que não era estranho à vida da caserna. As
agruras porque tanto reclamavam os colegas, eu as tirava de letra. Casa,
comida, roupa e remédio quando precisava e ainda uns trocos no fim do mês para
cigarro e outras besteiras, sem precisar meter um prego numa barra de sabão! Só
pra ficar de prontidão! Uma prontidão que em dez meses só foi chamada à
atividade uma única vez quando de um cerco ao guerrilheiro Lamarca que passaria
pela Estrada do Café, mesmo assim coube à primeira companhia a tarefa gorada e
não à minha que era a segunda companhia que, se fosse a convocada para a
tarefa, eu não saberia o que fazer com aquele que os superiores nomeavam
bandido, terrorista, traidor, comunista perigoso... Uns tremiam, outros diziam
que mandaria bala, um disse que olhava pro lado, que nem era com ele e que
estava ali obrigado mesmo. Mas o ex-capitão Lamarca mudou o rumo e a vida da
caserna continuou sossegada. Uma vida assim, sem tropeços, para mim era sopa no
mel! Tratei logo de fazer o curso de cabo e de recusar as divisas para poder
engajar, seguir carreira e afastar de vez o fantasma da fome, do desemprego e
do trabalho quase escravo que via na lida do pai, um gênio que fazia de tudo.
Mecânico e eletricista de mão cheia, conhecidíssimo na praça e que passava mil
apertos com o patronato e o salário minguado. Também fiz o curso de torneiro
mecânico, mas não queria trocar o certo pelo duvidoso (Não sabia que com essa
profissão poderia chegar a presidente do Brasil). Desfiz-me de tudo que era
civil, nem com as cuecas fiquei.
O
Sub Estácio
Em
uma companhia, geralmente a pessoa mais velha e mais tarimbada na lida militar
é o subtenente. Os oficiais são jovens vindos da academia ou de cursos de
formação de oficiais da reserva.
Quando
ouvi meu nome na relação dos que dariam baixa na primeira leva, tomei a posição
de sentido e disse que devia haver algum engano, pois até as divisas de cabo
recusei para poder engajar. O sub Estácio caminhou lentamente por entre as
fileiras do pelotão e aproximou-se de mim. Falou que tinha sido ele quem pedira
a minha baixa. Eu, chorando, disse-lhe que não podia ter feito isso. Lembro-me
bem de todas as palavras do nosso diálogo.
-
Hoje, você ficará com ódio de mim. Mas, amanhã, você me agradecerá. Hoje, você
está empolgado com a vida militar, mas, amanhã, quando for um sargento ou mais,
vai querer sair e será pior.
-
O senhor não pode saber do amanhã.
-
Eu conheço os homens. E sei...
-
Mas não é bom para o senhor a vida militar? Porque não pode ser...
-
Desde criança, eu brinco de soldadinho.
-
Desculpa, Sub, mas eu também brincava de soldadinho quando era criança. Acho
que toda criança brinca.
O
subtenente Estácio chegou-se ao meu ouvido e, discretamente, falou baixinho:
-
Mas eu continuo brincando até hoje.
Tempos
depois, em visita ao quartel, que passou a ter outro nome, procurei pelo Sub
Estácio. Não o encontrei, mas soube que ele, depois de se retirar, passou a ser
o responsável pela Guarda Mirim.
O
Sub Estácio continuava a brincar de soldadinho.
De
a pé!
Hoje,
depois de tantas voltas que a vida deu, tenho quase certeza de que se cruzasse
o meu caminho com o do Capitão Lamarca, teria entrado para o seu grupo. Mas, na
altura, não podia nem imaginar que um dia daria razão ao superior que praticamente
salvou a minha vida. Saí do quartel com uma camiseta daquelas manchadas, da
moda, que um colega me ofertou, com os coturnos que foram encomendados às
minhas custas, pois, devido a um dedão quebrado e mal tratado, necessitava uma
biqueira especial e com o calção de educação física que me foi autorizado,
posto que nu, não teria cabimento. Todo o resto era pertença do Exército
Brasileiro.
A
mil e alguns quilômetros do Rio, no frio vento do Planalto dos Campos Gerais,
sem dinheiro no bolso ou, melhor explicado, sem bolsos, com o documento de
reservista no cós do calção, passei pela última vez pelo corpo da guarda.
Uma
calça aqui, uma blusa ali, uns trocados acolá... De volta às ruas da bela
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, cidade que maltratava muito os seus
filhos mais desafortunados, mas que sabia tratar muito bem os forasteiros. A
hospitalidade com que ricos e pobres dispensavam aos visitantes era o que dava
o ar de provinciana àquela metrópole que era a capital federal quando nela deitei
as minhas primeiras lágrimas e senti fome pela primeira vez. De cabelos claros
e acento do Sul na fala, logo fiquei sendo o Paraná e era chamado para as
peladas no aterro, para “tomar um café lá em casa”, às vezes para dormir e,
também para almoçar ou jantar. De quando em vez ia fazer uma visita ao pai, na
oficina e filava a boia. O velho, preocupado ainda me dava alguns possíveis
trocados. À casa da mãe, aparecia vez por outra, quando o estômago pedia e
quando faltavam os expedientes. E esses escasseavam. Não dava mais para ficar
batendo perna pela noite da Zona Sul enquanto o delegado Padilha espalhava o
terror entre os vagabundos, prostitutas e cabeludos, para os quais ele sempre
tinha uma tesoura à mão. Frequentar a galeria Alaska, nem pensar! Agora, era
maior de idade. Ser pego sem carteira assinada era cadeia na certa, três meses
por vadiagem. O padrasto me jogava na cara, “Bem que eu dizia pra você ficar no
Exército, eles que mandam, agora no país!”
“Quando você fugiu da casa do teu pai eu disse que podia ficar aqui
desde que estudasse e trabalhasse. Você não queria saber de nenhuma das duas
coisas. Agora... Porque não ficou no Exército?” Bem que eu quis, mas acharam
que eu não servia nem pro quartel. Se eu pudesse reengajava. Alguém me falou
que se tivesse tido bom comportamento durante o serviço e achasse algum quartel
com carência de contingente seria fácil reengajar. Disseram que os quartéis de
fronteira, principalmente os de selva sempre precisavam de gente. Quando soube
que um quartel de Cruzeiro do Sul poderia me aceitar, não conversei, peguei a
mochila com os poucos panos de bunda e marchei para a BR 3 fugindo da vida
desregrada, da fome, das incertezas e do Padilha. Mal sabia que esses males
iriam para onde fosse, mesmo o Padilha se faria presente em outros. Na subida
da Serra fui apanhado pela noite sem estrelas. Os faróis encandeavam na antiga
mão dupla. De repente, senti o vazio sob os pés. Sabia o que estava por baixo
e, pior, o que podia não estar por baixo. Conhecia bem a altura daquela serra
que tanto subi ainda nos tempos da Maria Fumaça cremalheira. A queda na vala de
escoamento deve ter durado menos de meio segundo, mas foi o que bastou para ver
tudo que tinha vivido até ao momento e me lamentar por não chegar a Cruzeiro do
Sul, onde todos os males se acabariam. É impressionante a capacidade de
condensação do pensamento involuntário, instintivo. Com os pés bem apoiados no
cimento e a mochila acomodada na parede da vala, pensei em ficar ali até o dia
clarear, mas se desse uma tromba d’água, muito comum na região, eu seria
arrastado para o precipício. Com cuidadinho, saí da vala e continuei a
caminhada até pegar a primeira carona, que foi a mais marcante, não só por ter
sido a primeira de uma longa e inominável lista, mas também pelas aulas de
condução que o vaidoso playboy ia dando para me tranquilizar. Dizia para não
ter medo com as aceleradas, pois para entrar na curva é mais seguro entrar
acelerando. E o que tem de curvas na BR3! O fusquinha arrastava o traseiro para
se encaixar em cada uma delas que por tão mortíferas, a estrada virou canção da
MPB, com Toni Tornado. Não me recordo até onde me levou aquela carona, nem
quando peguei a outra. Sei que foram muitas paragens. Nem entrava nas cidades,
pois porto mais seguro encontrava nos bordéis à beira da estrada. Ainda com a
carinha de menino, despertava o carinho maternal das mulheres, para as quais eu
sempre fazia alguma tarefa para retribuir os bons tratos. Em Paracatu, cheguei
a trabalhar como garçom na casa da Tia Irene. Quando a dona se mudou para o Km
7, na entrada de Brasília, fui também, para trabalhar na nova casa, mas na
verdade estava atrás de uma de suas pupilas, por quem me apaixonara. Coisas da
vida! Também na má vida! E assim, de puteiro em puteiro, cheguei à Brasília. Lá, procurei um tio emprestado, marido de uma
amiga e colega de minha mãe. Ele era militar e estava a serviço na Capital
junto com os filhos, meus primos e amigos de infância e de sempre. Foi uma
festa para o rapaz e a mocinha que andavam tristes por estarem a contragosto
longe do Rio e da mãe. Fiz inscrição para o voo da FAB para Cruzeiro do Sul e
fiquei à espera. Depois de um mês fui atender a um anúncio num jornal à procura
de vigilante para a empresa Wackenhut do Brasil. Perguntaram se eu sabia atirar
e me deram um revólver deste tamanho e uma farda também enorme e que eu
assumiria o posto naquela mesma noite e depois arranjariam uma farda menor. Foi
muita risada quando cheguei na 102 Norte (Quadra residencial dos oficiais do
Exército). Parecia um num sei o que! No
mesmo dia recebi o telefonema da Força Aérea Brasileira confirmando o voo para
Cruzeiro do Sul. Desisti alegando que tinha arranjado um emprego. Na verdade
estava emocionado com o fato de poder ter o meu próprio dinheiro para os
cigarros e para o cinema. E para comida! Meu primeiro emprego oficial, com
carteira assinada. Ah, que vontade de esfregar na cara do Padilha! E mais que
isso, atendia ao apelo dos primos que pediam que ficasse e voltasse a estudar.
Voltei a estudar. Matriculei-me no GISNO (Ginásio do Setor Noroeste) e retomei
a terceira série, na qual havia largado a escola. Porém não servi de estímulo
para os primos por muito tempo. Logo, fugiram do pai, com quem fiquei vivendo
numa relação amor-ódio.
Ao
mesmo tempo em que era a sua única companhia para o jogo de buraco e para os
passeios na zona do meretrício do Km 7, tão minha conhecida, era o vagabundo
que “vive sem emprego e não trás nenhum dinheiro para a casa”. Entre uma briga
e outra, um emprego e outro, ia vivendo, ora na rua, ora dormindo bem. Por
azar, coincidia com o frio, as dormidas na rua. Na quarta e última série,
quando a diretora soube que eu dormia na árvore do pátio do colégio, tratou de
transformar a sala onde estava para ser instalado o gabinete odontológico em um
quartinho para mim. Claro que as boas línguas aventavam um romance entre eu e a
diretora, o que nunca houve. Dormi bem até ao fim do ano, quando voltei para o
deus dará. Sem o Padilha e com a carteira várias vezes assinada, tinha menos
medo da noite. Comecei com as aulas num cursinho para fazer as provas do
Supletivo. Fiz das tripas coração para pagar as mensalidades do primeiro e do
segundo mês. O terceiro, os colegas pegaram do meu bolso o carnê sem que eu
visse e pagaram. Estava trabalhando de “empregada doméstica” para um casal de
bacanas que tinha um chalé no Lago Norte, mas ainda não tinha recebido o
salário. E quando recebi foi o único, pois pedi demissão. O patrão que se dizia
meu amigo veio reclamar por eu ter tomado banho na piscina junto com uma colega
do cursinho, de quem eu gostava muito. Se eu não podia me servir da piscina de
um amigo, também não poderia cozinhar para ele. A amiga, talvez um pouco se
sentindo culpada, tratou de me levar para a casa dela. Falou com a mãe, que
sempre precisava de uns braços a mais na plantação de café e na construção da
casa da chácara que tinha nas cercanias de Brasília. A mãe concordou. Fui
trabalhar como escravo na plantação de café. Acordava às seis da manhã, ia para
a lida até às seis da tarde. Não podia mais continuar no cursinho, do qual
acompanhava as matérias através das apostilhas dos filhos da casa. Para o
cigarro e o cinema, fazia uns desenhos em camisetas e uns quadros com linha e,
de vez em quando, dava uma escapada na noite. Afinal, eu era escravo por vontade
própria já que estava apaixonado pela filha da dona. A Ângela!
Quem
muito dá, acaba comendo
A
carinha bonita que despertava o instinto maternal nas mulheres da “má vida”,
agradava bem mais aos homens de “boa vida”. Eu até me lamentava que, se a sorte
que tinha com viados e fanchonas fosse com mulheres, seria bem melhor. Mesmo
fora da zona, quando calhava uma mulher, geralmente, coroa, também acabava por
me apaixonar e, claro, punha tudo a perder.
Ângela não era uma mãezinha, nem uma coroa que me ativasse o Édipo. Por
isso, talvez, tenha me agarrado a ela com tanto empenho a ponto de me sujeitar
a um trabalho tão árduo só pela casa e comida. E como comia!
Os
namoricos apesar de escondidos eram corriqueiros, pois estávamos sempre juntos
no trabalho da roça. Ela era o esteio da família. Os dois irmãos não criavam
calos. Dois rapazes que eram empregados só faziam o que o salário minguado e as
leis trabalhistas aturavam. Ela, filha
adotiva, vivia com medo de contrair a doença que matou a mãe natural, que tinha
uma doença mental com cinquenta por cento de possibilidade hereditária, também
suportava as mãos calejadas, que não combinavam nada com o seu porte atlético e
seus vinte e um anos de idade. Atrelado a essa paixão, vieram outras
intermediárias, mas que nunca a abalaram, até que um dia ela me pediu para ir
embora já que eu a estava colocando entre mim e a sua mãe, o resguardo para uma
possível doença. Um amor que se manteve como uma ameaça para as mulheres com
que vim a viver maritalmente até que soube de sua morte acometida pela coreia
hereditária, mas muito tempo depois. No momento em que ela me pediu que não a
procurasse mais, perdi o pé e só não o coloquei novamente na estrada porque já
estava fazendo o curso de Geografia na UnB. A vida saudável no campo fez bem
para o físico e para a mente que assimilava bem as lições furtivas. Para alguma
coisa boa valeu o tempo de escravidão! Claro que para a dona da chácara também
valeu. E muito! Era o pioneirismo das plantações do hoje tão famoso Café do
Cerrado. Até hoje desconfio se a mãe não sabia do nosso namorico ou se fazia
vista grossa.
Na
UnB
Entrar
para a universidade nunca passara por minha cabeça depois de ter ficado seis
anos sem estudar e de ter voltado em tão precária situação, mas o fato é que lá
estava eu tentando aproveitar o máximo do que a universidade me dava: comia no
Bandejão e dormia no CO (Centro Olímpico), em um apartamento para cinco, mas
que ocupava sozinho, à beira do lago. Nunca tinha comido e morado tão bem sem
ter que pagar com nada. Não era para concluir nunca o curso! E, sinceramente,
seria difícil concluí-lo. Lá fiquei por um ano e meio e nunca saí do básico. Já
estava para ser jubilado quando tive que fugir.
O
amigo acreano
Tinha
muitas amizades em Brasília, mas uma era bem diferente, pois a gente só se
encontrava em lugares públicos, principalmente na W3. O misticismo que envolve
a Capital da Esperança faz com que a gente leve os acontecimentos para outros
níveis da existência. Chegava a ser intrigante, depois nos acostumamos, bastava
um pensar no outro e lá a gente se esbarrava e sempre saíam boas conversas. Era
o Bab Franca, artista plástico acreano e me contava muitas histórias e causos
de sua terra. Uma delas, a que mais chamou a minha atenção foi a do menino
Shalom que sua irmã tinha apanhado para criar depois de um sonho premonitório.
Toda vez que a gente se encontrava falávamos do Shalom e do universo místico
que rodeava a criança. A coisa que mais o Bab queria que acontecesse era que eu
conhecesse o Shalom. E era o mesmo que eu queria. Um dia, não precisamos ativar
a chave do pensamento visto que ambos saímos de casa diretamente para o
encontro na Avenida W3. “O Shalom está aqui!” “Vamos!” Quando a porta da casa
se abriu e o olhar do menino sentado no chão da sala cruzou com o meu, eu
pensei alto e todos ouviram: É meu filho!
A
criança já tinha três anos de idade e precisaria pagar multa no cartório para
se fazer o registro. Fiz uma vaquinha entre os colegas da universidade e logo
arranjamos o dinheiro que deu para a coima, o registro, um garrafão de vinho e
uma chupeta, com a qual o menino também provou do vinho.
1977
Um
ano duro para os estudantes brasileiros, principalmente na Universidade de
Brasília, que viu seu campus invadido por dois mil soldados da Polícia Militar
com duas metralhadoras ponto trinta apontadas para cada uma das entradas do
Minhocão. Eu não entendia nada daquilo e tinha até umas ideias atrapalhadas.
Não percebia porque deixavam o King Kong agir tão facilmente a ponto de ser
condecorado como o soldado que mais prendeu estudantes naquele ano. Uma
fotografia na manchete de um jornal mostrava aquele negão enorme conduzindo
duas mocinhas pelos cangotes para jogar no camburão. Por que aqueles filhinhos de
papai, muitos deles caratecas e judocas, não davam um chegapralá no soldado
que, à paisana, se misturava com os alunos? E por que os alunos invés de
ficarem desfilando pra lá e pra cá em frente das metralhadoras, cantando o Hino
Nacional, não pegavam na enxada e iam plantar batatas, milho, feijão...
Imaginava o campus universitário transformado num batatal. Isso sim seria um
protesto, pensava a minha ingenuidade.
No
Acre, mas nada de Cruzeiro...
Quando
tive a primeira oportunidade para conhecer o Acre foi que me veio à lembrança
que havia cinco/seis anos que eu deixara a terra natal com destino a uma cidade
que ficava nesse Estado. A Silene, a mãe do Shalom estava convalescente do
tratamento que fora fazer em Brasília e temia viajar sozinha para Rio Branco,
que tinha mais de dois mil quilômetros de estrada de terra, precária, entre
Cuiabá e Rio Branco. Fui convidado e aceitei. A greve dos estudantes se
estendia indefinidamente. E de mais a mais, eu não me encaixava no movimento,
mesmo!
Em
Campo Grande pusemos o Shalom num avião e encaramos a BR 364 com todos os seus
percalços. Lembro que Silene desmaiou durante a travessia na balsa do Abunã.
Estávamos junto à grade, vendo as estrelas refletidas no Madeira, quando ela
deu o sinal, agarrei-a como pude e, também muito enfraquecido, quase caímos
dentro do rio.
Mosquitos
Muito
comum quem anda pela Amazônia contrair malária, que é transmitida por um
mosquito. A febre amarela, também transmitida por mosquito, era brutalmente
combatida, pois as vacinas eram aplicadas obrigatoriamente naquelas pessoas que
viajavam de ônibus. Nos aeroportos, os passageiros eram aconselhados e
convidados a se vacinar. Na estrada, se
não apresentasse o papel com o atestado com menos de dez anos, levava com a
pistola, às vezes, com requinte de maldade. Levei não sei quantas dessas
vacinas. Da febre amarela fiquei livre. Da malária, nunca a sorte me calhou.
Mas de um outro mosquito não me livrei.
Enquanto
descansava da viagem me reabastecendo fisicamente para a volta, quedava-me grande
parte do dia, na sala da casa da Deusa Farias, a Mãezinha, a acompanhar o
andamento das greves pela televisão ou a ler alguma coisa. Matava o tempo e o
calor enquanto levava com a zoada dos ensaios do musical Os Saltimbancos, que o
Cícero, um dos filhos da Deusa, dirigia e era composto com gente do Bairro e de
casa para apresentar na festa do Dia dos Professores, na Escola Maria Angélica
de Castro. O Cícero desde criancinha era fã da história “Os Quatro Heróis”, uma
adaptação de “Os Músicos de Bremen”, dos Irmãos Grimm para a Coleção Disquinho.
Quando ouviu o LP que Silene e eu levamos para ele, ficou encantado. E assim, a
peça teatral de Sergio Bardotti e Luis Enriquez, com tradução e adaptação de
Chico Buarque, que, àquela época era a coqueluche no Brasil e fazia furor em
Brasília sob a direção de Hugo Rodas, marcava presença também no Acre.
Aconteceu
que o Lildo, o único adulto do grupo, quando viu o pátio cheio de moças, deu
cagaço. Arrancou a cangalha da personagem e fugiu. Silene correu para mim e me
sacudiu pelos ombros dizendo em desespero: Salva o meu irmão! Só você pode
ajudá-lo. Faça o Jumento. Tenho medo que ele faça alguma besteira... Olhei o
pátio lotado. Gente em cima do muro e nos galhos das árvores. “Não! Vocês são
malucos!” O Cícero se chegou com a canga do Jumento nas mãos dizendo que era
fácil fácil mole mole, não precisa nem falar é só mexer a boca. Recusei
alegando que para a dublagem ser bem feita eu tinha que saber o texto. “Claro
que sabe! Você escuta todo dia!” Tive a minha primeira lição de teatro. Mais do
que com a experiência que tive com o Santo Daime, que me fez sair da Cinco Mil
sem olhar para trás para não ficar por lá, aprendi que o inconsciente guarda
muitos segredos e sabe muito. Não quis ser responsável pela besteira que alguém
desesperado pudesse cometer. Aceitei. Com a ajuda do Cícero/Cão, que atuava e
dirigia ao mesmo tempo e um pouco instintivamente lá ia eu balbuciando as
palavras acertadamente. Não é que o Cícero estava certo. Eu, ou melhor, o meu
inconsciente sabia de cor e salteado. Mas, quando chegou no momento em que
todos os quatro heróis davam o braço e cantavam “Todos juntos/Somos fortes...”
me deu um frenesi, uma coisa mais estranha do que o que senti com o Ayauasca. E
eu não me contive, cantei alto. Os outros foram contagiados e cantaram.
Professores, alunos, funcionários da escola e moradores da Seis de Agosto foram
à loucura. Que festa! Sou agradecido de coração ao Cícero e à Silene. Fui
picado pelo mosquitinho do teatro. E esse, é como o da malária, não tem vacina!
A
volta
Como a aventura é a aventura
e dureza por dureza, melhor geografar outras plagas, em Porto Velho resolvi
tomar o rumo de Manaus. Que estrada! Se hoje, que até asfalto tem é assim,
imagina naquela altura. Não sabia eu que essa volta aventuresca fazia parte da
minha ida. Esta e outras aventuras que se seguiriam eram meandros da mesma
estrada que me levava para o Acre. O pouco dinheiro que tinha ficou pelos
atoleiros. Quando cheguei a Manaus fui direto para o porto e comecei a carregar
a bagagem dos passageiros que embarcavam para Belém. Na última mala que levei,
fiquei. Armei a rede, deitei e só saí dela muito tempo depois do apito do
navio, a tempo de ver o encontro das águas do Solimões com as do Rio Negro, que
só conhecia no desenho das calçadas de Copacabana, sem no entanto, saber que
representava o Encontro das Águas manauaras. A clandestinidade foi revelada na
hora de se servir o almoço. Fui levado como se fosse um bandido para o
comandante. Na cabine de comando deparei com um emblema da maçonaria. Um
conhecido uma vez ensinou-me uns sinais de identificação entre maçons. Tentei
aplicar algum, mas não deu certo. Ou pagava a passagem ou... no mesmo instante
que falava, o comandante já acionava o rádio para comunicar à polícia de Belém
a presença de um clandestino. Garanti que pagaria a passagem, não até ao final
da linha, mas até a cidade mais próxima. O capitão aceitou e me deram a cuia
para o almoço. Até hoje não consegui descobrir que maçaroca era aquela que
grudava na cuité. Conheci uma senhora que muito navegou no Lobo d’Almada e
também ela, boa conhecedora da culinária, nunca identificou pelo menos a base
daquele grude. O dinheiro que arrecadara como estafeta, não dava para cobrir a
passagem até Oriximiná, a primeira parada a vinte e quatro horas de viagem.
Tinha menos de vinte horas para arranjar o restante. O Lobo d’Almada era um
navio com três conveses e era um perfeito gráfico da pirâmide social. A
terceira classe era um mundo de gente, que apesar de desprovida de quase tudo,
se interajudava. Se eu fizesse um peditório ali, podia demorar, mas conseguiria o montante, só que eu não tinha a
cara de pau para achacar gente em tão precária situação com quatro dias de
viagem pela frente. Encontrei um rapaz, que tocava sua flauta doce, sozinho a
um canto. Puxei conversa. Um andarilho com pouco tempo no trecho. Falei-lhe do
meu problema e ele não sabia como ajudar. Quando disse que podíamos passear
pela segunda classe, onde estavam jornalistas, escritores e turistas e na
primeira, onde ficavam os mais afortunados... você bonito como é, moreno,
simpático... Ele deu um pulo. “Tá doido! Faço isso, não!” Eu ajudo, disse eu.
Todo mundo vai contribuir, você vai ver. Você toca a flauta e eu faço umas
gracinhas e rodo o chapéu. “Ah, é isso? Pensei que era outra coisa! Eu nunca
fiz isso, mas não custa experimentar.” Em pouco tempo levantamos um dinheiro
que dividido pelos dois completava a passagem que, imediatamente, entreguei na
mão do capitão. A boia do almoço ainda rebolava no estômago quando soou o apito
para a janta. O mesmo cardápio do almoço. À noite, um emaranhado de redes, não
me permitia andar até ao banheiro. Rastejando, não consegui ir muito longe. Ao
sentir as fezes que estavam em meu caminho, urinei ali mesmo. Como é que se
maltrata assim um povo! Pela manhã, correu a notícia que o ancião de uma
família tinha se suicidado. Um velhinho simpático com quem conversamos e para
quem o flautista dispensou umas canções a seu pedido. Não o vi depois de morto,
nem cheguei a prestar condolências à família. Pouco antes de aportarmos, a
atenção voltou-se para uma cena mesmo inusitada. Tem um fenômeno no rio
Amazonas chamado Terras Caídas. Blocos de terra se desprendem das margens que
às vezes formam ilhas flutuantes. Numa dessas estava um arbusto e, junto a ele,
com a cara mais triste do mundo, um carneirinho. Foi uma gritaria geral para
que se parasse o navio, mas o insensível do comandante nem ligou. Fico
imaginando no que se transformaria aquele cordeiro: se um símbolo do povo
espezinhado, que espera novos tempos ou se um banquete para vingar a gororoba.
O deputado
Em Oriximiná encontrei uma
amiga de Brasília que trabalhava como enfermeira no posto avançado de uma
universidade. Ela ofereceu-me uns trocados que deu para a passagem até
Santarém. O barco para cinquenta pessoas, ia superlotado. À noite, uma
tempestade nos pegou. As redes batiam umas nas outras. Tomei a posição fetal e
nem botei o nariz de fora. Pela manhã, com o corpo todo dolorido, chegamos a
Santarém, onde fui logo para o aeroporto tentar melhor sorte. Estava quase
anoitecendo quando um passageiro, sem mais nem menos, perguntou-me o que fazia
por ali. Ao ouvir minha resposta, disse imperativamente “Venha comigo!” Pegamos
um táxi que nos levou ao Tropical Hotel. Não poderia imaginar tanto luxo numa
cidade tão jogada fora como eram as cidades ribeirinhas naquela altura. Ficamos
no mesmo quarto. Eu, numa cama de solteiro e ele na principal. O cansaço e as
dores nas costelas e nas ancas não dava tempo para estudar melhor a situação.
De cara, percebia-se que não se tratava de nenhuma “pegação” e eu já estava
acostumado com essas ajudas, muitas das vezes, despretensiosas, que surgem no
trecho. Depois do café da manhã, que para mim foi um banquete, tomamos o mesmo
táxi e o homem a quem os empregados do hotel e o taxista tratavam apenas como
Deputado, foi logo perguntando ao taxista, “Conseguiu?” O motorista assentiu e
entregou-lhe uma pasta 007 e este rapidamente passou-a para mim, no banco de
trás do fusca. Pelo tufo volumoso que demonstrava claramente a forma do tambor
e da coronha, percebi que se tratava de um revólver. “Não larga essa pasta de
jeito nenhum!”. O motorista disse que
era o que se pode arranjar, que se tratava de um 38 e que o deputado poderia
ficar à vontade. O Deputado tranquilizou o chofer que se mostrava um pouco
nervoso. “Não vou fazer nada. É só pra dar um susto...” O meu anjo da guarda que, literalmente veio
do céu, era Domingos Scarpelini, deputado estadual do Paraná, pelo MDB
(Movimento Democrático Brasileiro), partido de oposição ao governo sustentado
pela Ditadura Militar. Ele estava indo a Altamira resolver umas pendengas
familiares. Contou que um cunhado tinha roubado umas terras da irmã e ele iria
fazer o homem dar para trás no negócio. Pegamos o teco-teco para Altamira, a
cidade que, na época, era a que mais crescia no país. Crescia como cresciam as
cidades do Velho Oeste Americano durante a Corrida do Ouro, não precisa dizer
mais nada! E lá estava eu... “Fique aqui no portão. Qualquer coisa, eu te faço
um sinal.” ...encostado no esteio do portão do terreiro, displicentemente
observando a conversa dos dois na varanda da casa a uns vinte metros. Não
escutava nada. Só via os olhinhos do cunhado revirando-se nos óculos
fundo-de-garrafa. Consegui achar graça da cena que parecia de desenho animado,
mas não sabia se iria achar graça em muito mais. Ligeiro como ele só, o
deputado deu-me um tapinha no ombro e disse enquanto pegávamos um táxi para o
aeroporto “Foi fácil, não disse!? Quase se borrou!” O deputado ameaçou o cunhado
dizendo que eu era um desses matadores de aluguel do olho amarelo, que cumpria
pena, mas que o diretor da penitenciária tinha liberado em troca de uns favores
políticos. Ele comprou a passagem no balcão da TABA (Transportes Aéreos da
Bacia Amazônica), deu-me uns trocados e se despediu. Quando ia subindo a escada
do avião foi que me atinei: “Tá doido, deputado! Depois de tudo que o senhor
falou de mim... ficar aqui...” “É mesmo!” Pediu para o piloto esperar um pouco
e comprou outra passagem. Assim, cheguei a Belém, cidade da qual só conheci as
livrarias, visto que estava com dinheiro e podia cumprir a promessa que fiz à
Silene de comprar pra ela um livro, que ela não sabia a autoria e que dizia se
chamar Fala, João Ninguém. Não encontrei. Em toda cidade por onde passei,
procurei e nada. O dinheiro deu para
chegar de ônibus a Maceió, onde não fui às livrarias nem a nenhum outro lugar,
pois fui preso pelo DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social)
local.
Fátima Belo
Da prisão que tive na capital
de Alagoas falarei só por alto, pois de tão emocionante que foi, conto-a num
artigo que chamo de Minhas Nove Cadeias em Tempo de Ditadura, Mas Sem
Indenização. Foi no dia em que de uma vez só, foram expulsos trinta estudantes
da UnB. Um soldado do exército que ouviu minhas conversas com a professora
Fátima Belo, alagoana que trabalhava em Recife. Ela e seu filhinho Fábio
viajavam no mesmo ônibus, que ficou mais de uma hora parado frente a um quartel
já perto do final da linha, enquanto o soldadinho verde me dedurava para o
capitão. Comigo levava um livro com a peça do Millôr Fernandes, Liberdade,
Liberdade. A peça era proibida, mas o livro, não. Uma fita cassete com músicas
de vanguarda, inclusive, Geraldo Vandré, mas não tinha a Pra Não Dizer que não Falei
das Flores, então, proibidíssima. O próprio delegado, homem culto, maçom, com
curso nos EUA, disse que não via nada em mim que justificasse a prisão, mas as
ordens vinham de cima, que eu tinha que compreender. Até hoje não percebi como
escapei. Não acredito que foi por causa dos três pontos em triângulo que fiz na
assinatura do depoimento. Eu não sou maçom, nem sei se as coisas funcionam como
me disseram que seria nessa irmandade. Pode ser que tenha sido para que eu,
quando saísse, me seguissem até à casa da professora. Dei mil e uma volta até
tornar à sua casa. Ela saciou a minha fome dos três dias lá dentro e me deu um
dinheiro para sair dali o mais rápido possível. Nunca soube mais nada dela.
Mesmo hoje, com toda essa tecnologia nas comunicações.
O teatro
Contava pra todo mundo o
fenômeno que acontecera comigo quando pisei pela primeira vez um palco. Afinal,
isto me ajudou a me livrar do trauma infantil quando me preparei tanto para
fazer duas esquetes na festa da escola e a professora não me deixou por eu
estar sem uniforme. Quando a única camisa do uniforme estava por lavar ou
consertar eu ia para a escola com uma blusa de lã. No calor de Capricórnio eu
dizia que estava com febre e sentia frio. A bronca com a professora só se
apagou de vez quando, muito tempo depois, como diretor, pensei na falta de
atenção da professora. Uma cena se passava num dia de chuva. O pulôver cairia
bem como figurino. Na outra, eu fazia uma múmia, ora! Bastava enrolar-me com
papel higiênico e ninguém ia saber que eu estava sem o uniforme tão
obrigatório, mesmo para os pobres.
Certa noite, ia passando
pelo Beirute, bar na Asa Sul que era o ponto de encontro da malucada, quando um
conhecido me chamou à mesa e apresentou-me a um diretor que estava montando uma
peça e precisava urgentemente de um ator para completar o elenco. “Ele já tem
experiência. Conta aquilo que você fez lá num sei aonde!” Deu-me medo. Naquela
altura tinha aulas pela manhã e pela tarde. Tinha que arranjar alguma coisa.
Mas tive medo. Seria coisa de profissional. “No Acre! Mas foi coisa pouca. Era
uma...” O diretor e produtor Luiz Negrão foi logo dizendo que não precisava de
muita experiência, que o papel não exigia muito do ator que bastava saber cair
e dar uns saltos, e que ele pagaria tanto por cada espetáculo e mais tanto pela
apresentação para a Festa da Páscoa da TV Globo. Não quis nem saber quantos
tombos iria levar, não podia era perder essa boquinha. Em vez de michê, cachê!
A peça era Pluft, O Fantasminha, de Maria Clara Machado. Gerrô, Luis e eu fazíamos
estripulias mirabolantes como os Três Marinheiros. Gê Martú, que fazia o Perna
de Pau indicou-me para outro espetáculo amador que o Bené Setenta estava
montando e tinha convidado a ele, que era o ator mais cotado de Brasília e não
podia assumir o papel. Lá fui eu! Duas peças ao mesmo tempo. Uma para crianças,
outra para adultos, Uma de dia, outra à noite. Tive que me desdobrar com
justificativas para manter a moradia de graça e comida barata da universidade.
Na apresentação para a Globo que foi no Drive-in, as crianças em cadeiras de
roda foram colocadas na lateral do palco por onde os marinheiros saiam de cena.
Em sintonia muda, Luis e eu fazíamos um espetáculo à parte só para eles em cada
saída e entrada. Só eles viam!
Não tem volta
A minha ida de vez para o
Acre tem duas versões. Todas duas verdadeiras. Uma, fugindo da polícia. Outra,
para ganhar dinheiro. Conta-se uma ou outra dependendo do teor da conversa.
Aqui, contarei as duas.
Escrevi umas bobagens num
cartão postal e enviei para um amigo. Ele e outra amiga comum ameaçaram me
entregar para a Polícia Federal. Escaldado que sou com polícia, não pestanejei.
Peguei duas mudas de roupa e caí na estrada rumo ao Sul. Em Curitiba fui à
Assembleia dos Deputados atrás do deputado Scarpelini. Ele disse que eu ficaria
na casa de seu pai, em Apucarana e que de lá iria para a fazenda que ele tinha
em Rondônia. Estaria bem guardado e ainda poderia trabalhar para ele na sua
fazenda onde começara uma roça de café. Estava tão escaldado com café quanto
com polícia. Ao me apresentar ao capataz da fazenda, deixei lá a sacola com as
poucas roupas que levava e, com a desculpa que tinha que ir a Porto Velho
resolver uns documentos, nunca mais lá pus os pés. Cheguei em Rio Branco
descalço e alquebrado, mas logo recuperei aos cuidados da Mãezinha. Deusa Faria
tinha criado nove, mas sempre tinha um ocasional. Naquela altura, era eu e o
Lildo, o que fugiu do Jumento, mas que um dia fez um grande papel num filme de
minha autoria. A minha retribuição a tão grandiosa acolhida se deu em pequenas
ações. As mais marcantes foram duas: trazer para o círculo familiar o menino
Ceomar, que era o terror das crianças da Deusa, que eram sempre agredidos por
ele, que não passava em frente da casa sem atirar umas pedras. Ironicamente, o
Ceomar era admirado pelos meninos da Deusa pelas suas proezas aquáticas e vida
totalmente livre. Era como se fosse filho de boto tal a desenvoltura e prazer
com que se atirava às águas do rio Acre. Quando com ele me confrontei, soube
que suas ações eram movidas por ciúme. Os Faria iam à escola e ele nem sabia
ler. Conclusão. Passou a frequentar a casa da Mãezinha, onde aprendeu a ler e
da qual cresceu sendo um verdadeiro guardião. Por último, foi trabalhar no
garimpo do Josias Farias. Um garimpo de rio. A outra, foi uma das maiores
façanhas da minha vida. A Silene queria fazer uma casa em seu terreno no
Quinari. A Edunira Assef desenhou uma casa sextavada. O hóspede preferencial do
momento era um americano de dois metros de altura, que comia muito, mas
compensaria com seus conhecimentos no trabalho com madeiras. Comprou o melhor
serrote, o melhor martelo... tudo muito caro como convém a um artista
internacional. Mas o tempo passava e a casa não saía dos alicerces, que lá já
estavam. A despensa reclamava. E uma dispensa se fez necessária. O carpinteiro
Jofre foi chamado a substituir o comilão mas, experiente que só, foi logo
avisando que sozinho não daria conta.
Jofre e eu ficamos três dias só namorando a base. Quando a gente chegava
lá de manhã víamos as marcas dos pés dos curiosos que chamava aquele desenho no
chão de (se não me falha a memória) jaburu. Ao terceiro dia, calamos a boca da
vizinhança ao deixarmos de pé os seis esteios sem um prego sequer e sem
amarras. A própria Edunira fez questão de fotografar os encaixes que fizemos.
Depois disso foi rápido. Apenas muito sacrificante pois a madeira era Cumaru
Ferro e aí valeram as ferramentas compradas pelo americano. Só para ter uma
ideia, o pequenino Jofre e eu também pequeno, não comíamos juntos num dia o que
o visitante comia no almoço. Fiquei no Acre até a poeira baixar. Ao ter a
certeza de que os amigos não fizeram a denúncia contra mim tornei a Brasília
para trancar a matrícula. E ainda tinha que encontrar o “Fala, João Ninguém” da
Silene.
A outra versão. Eleonora se
empenhou em levantar dinheiro para o irmão Bab ir para a Europa. Naquele tempo
existia um tal de imposto compulsório para quem quisesse viajar para o exterior
e que era mais caro que a própria passagem. Do imposto, o Bab se livrou por um
erro da burocracia que tanto atravanca como beneficia. Conseguiu a permissão
que artistas e desportistas tinham quando à convite ou para representar o
Brasil oficialmente. Com a exposição que fizera na Aliança Francesa e com o
leilão de um quadro conseguiu-se grande parte da passagem que para ser
completada, a Eleonora, com um filho no colo e outro no bucho, revirou de
pernas pro ar o Congresso Nacional, numa campanha que durou bem uns três ou
quatro dias. Bab e eu ficávamos só olhando enquanto a irmã achacava deputados e
senadores. A cena mais marcante foi quando o Senador Guiomard Santos não deu
nada e ela feito um siri na lata, enfiou o dedo na cara do velho gritando um
monte de impropério. Dizia que o irmão iria sim pra Europa e iria fazer bonito
mesmo sem a ajuda de um velho muquirana como ele. Disse ainda que o Acre estava
naquela miséria por culpa dele. Quando íamos saindo do gabinete, o velhinho se
tremendo todo enfiou a mão no bolso e ofereceu uma nota de valor mediano,
dizendo que não tinha entendido bem a intenção do pedido. Eleonora, chorando
atirou-se a ele num abraço. Não pediu desculpas, mas, foi emocionante para os
dois. Ele, o responsável pelo Acre ter deixado a condição de Território Federal
e ela, uma lídima representante cultural desse novo Estado. Os quatro, melhor,
os seis. Fernando nos braços e Iriá na barriga, lá mandamos o Bab pras Europas!
Ainda no aeroporto a Eleonora diz: “Agora vamos mandar você! Tenho medo do meu
irmão lá, sozinho. Não fala inglês, nem francês...” “Tá maluca mulher!” O Bab era
artista e teve como concorrer à isenção. Eu não via como a gente iria levantar
os 20 mil da passagem mais os 22 mil do imposto. Revirar o Congresso novamente,
nem pensar! Como é que vamos arranjar dinheiro? “Vamos fazer o Pluft, O
Fantasminha, lá no Acre. Dá dinheiro. Teatro infantil dá dinheiro. Não viu o
teu diretor... vocês ganham uma mixaria, mas ele comprou até carro novo!”
Eleonora acompanhou de perto o andamento da peça, pois quando o seu apartamento
na Asa Sul alagou com a chuvarada, ela se mudou para os bastidores do teatro da
Escola Parque, onde apresentávamos a peça, na qual, bem me lembro eu fiz o
Fernando Sevá bater palmas pela primeira vez. “Está decidido” continuou ela “eu
largo a IBM e a gente vai. Você vai na frente e vai ensaiando. Depois eu vou com
a Mariquinha, ela é baixinha, dá bem pra fazer o Pluft. Vai... A Silene te
ajuda. Chama o Cícero, chama o Cezinha... leva já as cópias do texto.”
Cheguei de ônibus em Rio
Branco. Entrei no primeiro táxi e disse “Pra casa da dona Deusa Faria...” “A
ourives, na Seis de Agosto, perto da caixa d’água?” “Isso! Por favor!”
E a Mãezinha ficou sendo a
Mãe Pluft. A atriz Deusa Farias que até veio a trabalhar com João das Neves.
Grande atriz, que deu uma perspectiva nova à personagem. Uma mãe mais proletária
com que a plateia se identificou melhor. Muita gente foi ao teatro só para ver
a Deusa.
Antes de ganhar havia que
gastar e para gastar havia que arrecadar. O que mais se via era a Eleonora com
uma pasta debaixo do braço trocando nome no cartaz por patrocínio em dinheiro,
em tecido... na Casa Natal, a Síglia desenrolou todo o cetim que precisávamos.
Para dar uma ideia do quanto custou a produção, a peça até então mais cara de
Brasília foi a primeira apresentação depois da liberação pela Censura Federal
de “Eles Não Usam Black Tie”, com a presença do autor Guarniere e tudo, custou
ao Bené 150 mil cruzeiros e a nossa custou 15 mil cruzeiros. Da Fundação São
Judas Tadeu, do deputado federal Nosser Almeida conseguimos um bom montante mas
nos custou a perda da Mariquinha que alegou motivos ideológicos muito justos,
afinal, só Eleonora e eu tínhamos outros propósitos. Saí à cata de outro Pluft
e ele veio até a gente na curva da caixa d’água, de moto. Era a Bruxinha, a
Francis Mary, não era a Bat Girl. O Tio Gerúndio ficou sendo o Cícero, a
Maribel, a Dalva Emília, o marinheiro Sebastião, o Cezar Garcia Lima, o
marinheiro João, era o Fernando Mello e eu, me desdobrava entre o marinheiro
Julião e o pirata Perna de Pau. A Deusa, mulher do carpinteiro Jofre, foi a costureira.
Quando lhe mostrei os desenhos do figurino, ela me perguntou se eu queria
bitaca e fui motivo de muito riso até descobrir de que se tratava. Para mim
tudo era novidade. Uma outra língua. Uma outra linguagem. Para o Acre tudo foi
novidade também. Certo que por cá se fazia um teatro exemplar para o mundo. Um
teatro de resistência e de denúncia... através do Matias com o seu Grupo De
Olho na Coisa. E outros grupos ligados às comunidades de base da Igreja. Mas o
Grupo Sacy, que ajeitou às pressas a papelada para que se conseguisse os três
grupos necessariamente obrigatórios para ser fundada Federação de Teatro Amador
do Acre (FETAC) foi o primeiro a montar um espetáculo com uma direção assinada,
a fazer cartazes e outros tipos de divulgação, a fechar as portas e colocar uma
bilheteria cobrando ingressos e, pagar cachê. O palco foi o do Colégio Acreano,
mandado reformar pelo Orlando Miranda do antigo SNT (Serviço Nacional de
Teatro), mas que estava muito mal aproveitado. O Cezar Faria, que e acionava a
aranha com ímã do cenário, de vez em quando ia ao porão e atiçava os morcegos
que ficavam pra lá e pra cá na casa dos fantasmas. Era o delírio.
Deu dinheiro? Deu! Mas
quando acabou a apresentação de estreia e algumas pessoas mesmo idosas vinham
dizer que sempre ouviram falar desse “tá” de cinema, mas nunca tinha visto e
que achou bom. E quando vi os olhinhos vidrados das crianças que não
desgrudavam da gente... me veio à cabeça as crianças nas cadeiras de roda de
Brasília, as trepadas nas árvores da Maria Angélica... E eu disse pra Eleonora.
“O Bab tem a sua Estrela. Ele vai se dar bem sozinho. Vamos ficar fazendo isso.
Vamos rachar a grana ou então guardar para montar outras. Você largou um
emprego em Brasília, eu deixei de trabalhar no Black Tie... Vamos valorizar
isso!” “É mesmo, manin!”
|
Equipe do Pluft,
acervo do Grupo Sacy |
Levei quinze dias, de
atoleiro em atoleiro, até ao Rio para levar um cartaz e o dinheiro respectivo
aos direitos autorais. A Maria Clara Machado até se assustou quando entrei n’O
Tablado, ainda sujo de lama. Abriu mão da percentagem, agradeceu o carinho com
que tratamos a sua peça e me falou da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais), que é quem faz a arrecadação. Fui à SBAT para pedir informação sobre
outras peças e acabei por ficar sendo o representante acreano da Entidade
fundada por Chiquinha Gonzaga e que, hoje, anda capengando. Voltei com a corda
toda! E, finalmente, levando o livro da Silene que, afinal não era “Fala, João
Ninguém” e sim “Escuta, Zé Ninguém”, de Wilhelm Reich.
Cruzeiro do Sul é logo ali
Passei a viver para o teatro
e como não vivia do teatro tinha que de novo viver de expedientes. Só que
agora, os expedientes eram outros. Metia-me em tudo que era concurso: de
música, de desenho, de pintura, de fotografia, literários... Artes que comecei
a desenvolver para suprir a falta no meio teatral. Aqui, acolá, ganhava algum.
Um dinheirinho que sempre chegava em boa hora.
A preocupação passou a ser gritar as injustiças por que passava as
gentes e a mata do Acre. Quando precisava de um dinheiro maior fazia exposições
com os desenhos a café, escrevendo e vendendo livros mimeografados e com o artesanato que chamei de Cascagrossa.
Cheguei a ter alguns empregos, mas de pouca duração. O teatro tomava todo o
tempo. Tive quatro vidas maritais. Uma que ficou sendo a segunda mais falada de
Rio Branco, só perdendo para a do Maestro e a Pianista. Algumas vezes dava uma
fraquejada e fugia. A provação era muita. Caganeira que durou um ano e meio e
uma curuba com a qual tive de me acostumar. Tudo isso aliado às dores de dente
e à fome, já conhecidas de antanho. Quem
sabe vira um livro? Muitas histórias. A do osso buco com que o Valério e sua
família, mulher e cinco filhos, repartiu comigo o caldo durante um mês,
enquanto eu estava refugiado no Teatro Barracão preparando uma exposição. A da
fuga em Brasileia, por oferecer o meu trabalho a Wilson Pinheiro, líder
sindicalista assassinado fazia uma semana. Das montagens teatrais que fiz. De
não medir esforços para botar o povo no teatro, no palco e na plateia. De
apesar de ter conseguido a profissionalização, nunca abandonar o espírito
amador. Da mulher que tinha que comer fruto do mar pelo menos uma vez por
semana e eu ia roubar sardinha no mercado. De João e Maiara, os filhos que tive
para além do Shalom. Da passagem pelo curso de Geografia da UFAC, do qual saí
no terceiro período. D’O Casarão. Do La Gondola, onde muita gente ia comer só
para ver o garçom diferente e acelerado que eu interpretava para ajudar a
Graça, que junto com o Valter nunca se furtou a ajudar os artistas. Da relação
com o SESC. Das parcerias em atividades culturais e de lazer com Gregório Filho
e com Moacir Barbosa. Com a Fundação Cultural. Do Cine Recreio. De Glória
Marques. De Kikha Danttas. De Hélio Melo. De Valdenice Silva. Do Major, que Zé
Chumbinho dizia ser o maior ator que ele conhecia. Do próprio Zé Chumbinho.
Tantas histórias. Da parceria tão profícua com Alberto da Cunha Melo. Das
noitadas com Nivaldo preparando cartazes subversivos na gráfica da Fundação
Cultural. Da menina que pedi pra casar com ela e levei com uma panela na
cabeça. Do meu envolvimento com o cordel. Do Palhaço Trimpulim que eu
incorporava e que durante cinco anos fez dupla com o Tenorino. Dupla que
aprontava bastante, até mesmo botar o povo a cantar A Internacional na praça em
frente ao quartel da PM. Da viagem da dupla de palhaços, de bicicleta até Porto
Velho. Sete dias e meio fazendo apresentações nos atoleiros ao longo da
estrada. Da experiência como jornalista do Folha do Acre, que saía para fazer
uma reportagem e voltava com uma crônica. De ter feito por merecer alguns
poemas, inclusive o Poema Póstumo, de João Veras. Da placa do doutor Parigot e
os aperreios do Correinha. Do desenho encomendado pelo Adonai Santos que foi parar no lixo ou ele
daria para um cego. Do quadro que o Aragão surrupiou da Secretaria de Indústria
e Comércio. Das fugas. Tantas fugas. Não só políticas, mas conjugais. Para
Rondônia e a confusão que armei enquanto professor em Porto Velho, não deixando
um sargento da polícia entrar na sala para retirar um aluno. Para Brasília,
onde com o apoio do grande e velho amigo Porchat, fiz uma exposição. Da volta a
pedido da governadora Yolanda para assumir o Cine Tetro Recreio. Da fuga para o
Rio e o tempo que tive de ganhar a vida como profissional do teatro. E da
volta, já com o “Frei Molambo, Ora Pro Nobis”, da Lourdes Ramalho preparadinho
e já estreado em Niterói. Foi aí que o Gregório Filho, presidente da Fundação
Cultural e a Mira, então minha chefe na
área de teatro e também participante do coro do Frei Molambo arranjaram para eu
fazer uma oficina de teatro em Cruzeiro do Sul e também apresentar lá, o Frei
Molambo.
Se você sai a pé e leva
dezoito anos para chegar a algum lugar, só pode chegar mesmo é todo esmolambado.
E mesmo esmolambado ainda fomos para Portugal. Os vinte anos na Terrinha, eu
conto depois.
(...) mês premières patries ont été les
livres.
Se o verdadeiro lugar de
nascimento é onde alguém lança um olhar inteligente sobre si mesmo, como bem
disse a Marguerite Youcenar, e as suas pátrias são os livros, eu posso dizer e
digo. Sou acreano. Mesmo quando, já em Portugal, passei a escrever, primeiro procurei
pagar o meu tributo aos poetas, feiticeiros, artistas, amigos... às pessoas que
me impediram de ficar rico, e escrevi O Português ou Escravos da Esperança,
ganhei um prêmio bom em dinheiro. Aumentei a dívida. O jeito foi voltar.
Protelei pelo desânimo de não ter mais a Mãezinha. Mas, hoje, tem a Giselda e
toda a troupe dos Castela. Ainda deve ter algo para se fazer.
Para conhecer um pouco mais da obra de Jorge Carlos Amaral: