JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO, prosador, ensaísta, um dos principais
poetas da Amazônia. Nasceu em Abaetetuba, no Estado do Pará. Professor de
Estética e Arte, doutorou-se em Sociologia da Cultura na Sorbonne, em Paris,
com a tese Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Sua obra poética tem
sua universalidade construída a partir de signos do mundo amazônico – cultura,
história, imaginário – propiciando uma cosmovisão e particular leitura do mundo
contemporâneo. Dialogando com as principais fontes e correntes literárias da
atualidade, Paes Loureiro realiza uma obra original, quase uma suma poética de
compreensão sensível do mundo por meio das fontes amazônicas, em que o mito se
revela como metáfora do real.
Foto: Rodolfo Oliveira/Agência Pará |
CÂNTICO VI
Quem comanda o rio ?
O mito ?
A
lei ?
A
lenda ?
Onde perdeu-se o mapa,
o portulano ?
Em que meridiano, norte ou sul,
ou em que polo?
Amazônia
Amazônia
Quem
te ama ?
Quantas vezes, no tempo, o rio encheu-se,
e, quantas outras, vazou ?
O rio não tem consciência
de si mesmo,
no ermo de existir
que
é ser corrente.
O rio-em-si não é nem bom, nem mau.
É rio.
E sendo rio
inunda
e seca,
pois inundar e secar
é o ser do rio
e sua incons/ciência de si mesmo.
A notícia ovula-se poema,
e nem se quer
ou canto
ou
melopéia.
Quer olhar e dar voz ao que se mostra,
mais que real aqui, agora e sempre...
Mas Tirésias atônito pergunta
aos pálidos pajés sobreviventes:
– “Se o rio nada sabe de si mesmo,
quem saberá do rio e de seus homens ?” p.37-38
CÂNTICO XI
“ Na jusante
levo-me.
Elevo-me
ao mar
e
no entanto
Mar
sou
Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
consciente . . .
Certo não sou quem sou,
pois não me penso
e o existir
é minha forma de passar além . . .
Riomar.
Sou rio e mais o Mar
e
além de
Mar e Rio
sou Riomar.
Cavaleiro e campo de batalha.
Arma, defesa e luta.
Sou isto e não aquilo
e sou também aquilo.
O istoaquilo de seres
erros
res
e ser
jusante . . .
E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas . .
.” p.49-50
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Porantim
(poemas amazônicos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
DESLENDA RURAL V
A tarde
–
inversa chama –
medo sobre medo.
O sol cai em placas de metal
e níquel.
Não
há viagens.
Há
um rio ruindo.
Giboiando
rumos.
A cobiça acorda a pontaria.
A morte circundante é respirada, pisada,
olhada.
Há vinte e sete de outubro,
topógrafos do Incra
e tropas da Polícia Militar
foram
emboscados.
Dois soldados morreram
e dois vão-de feridos.
Florentino Maboni foi detido,
como padre instigador da rebelião.
Foram vinte e sete dias de detenção,
injúrias e maus tratos.
Posseiros não contavam
com títulos de posse, documentos.
Em cada olhar carimbado de incertezas,
certidões de isolamento e solidão.
escrituras morais, pequenas propriedades,
a rocinha, a criação, a choça casa,
coisas nascidas do sangue,
coisas
como filhos.
Esses nadas que retém a mão suicida,
quando o inhambu põe a tarde em nossa alma.
Os grandes proprietários
contrataram
advogados de ouro
e, precavido, alugaram a sanha
disponível de jagunços.
Pistoleiros que, na hora decidida,
mataram botos, uiaras, curupiras
pois, ao matar-se o homem, morre a lenda.
Depois, este silêncio em si.
Cio
de silêncio...
Águas, andores, coroas de espumas mortuárias.
O gesto de remar varando as eras
entre besouros ardendo sobre o ouro.
E o sempre violino do crepúsculo,
anoitecendo semibreves no barranco.
E a morte resgatando para o eterno,
igarités de fogo
barco
alado... p.135-137
DESLENDA RURAL XI
Héveas, evas
vulvas
abertas, gozo,
leite
sangrado
sêmen recolhido
entre
conchas e suor
e ervas de medo.
O seringueiro sangra-se
Sanguelátex.
Sanguessugas
espreitam
o aviamento.
Humos e hímens
Deflorações
pela várzea.
o empresário
o
boto
o
capital
a
lenda
Naufragadas ubás
fetos,
naus tão frágeis
no placentário ventre das marés. p.155
POEMA
As palavras arfando entre virilhas
entre lábios
cópulas
de consoantes e vogais
Saboreadas palavras
defloradas
palavras
túmidas palavras
ávidas
oh!
palavras
arfando umidamente entre pentelhos.
Suor. Calor. Odor. Linguagem. Gozo. p.190
Qual o poder do verbo que se ergue
em arma, em elmo, em alma?
Eu
penso, eu sinto, eu olho
e peço à garça voando na memória,
que escreva lentamente os meus versos alados
nas
entrelinhas do mar... p.222
RECEITA MARGINAL
Deixem-no nascer.
O leito da indigência
é
boa medida...
Sem leite vai crescer
e sem verduras.
A lama há de lhe dar
por
sob as palafitas
a herança verminosa das marés.
É bom que tenha jeito de sambista.
Escolas não terá
e
nem infância.
E a juventude, melhor que não floresça
pois seu caule de amor
já
foi castrado.
No dia em que sair
de
parceria com a lua
( revólver na cintura
e
decisão no olhar )
o presunto está pronto, temperado.
Embrulhem-no em manchetes policiais
para servi-lo quente
no
café da manhã p.233-234
AMAR
O sexocolibri
pousa
em tua corola
que se abre
e
sus !
fecha-se.
Oh ! flor carnívora.
p.294
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cantares
amazônicos. São Paulo: Roswitha Kempf, 1985.
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