segunda-feira, 4 de junho de 2018

O MARRUEIRO

Catulo da Paixão Cearense (1863-1946)

Este marroeiro (moço) vai contar o seu caso a outro marroeiro velho, centenário, celibatário e tocador de viola, como ele. O “Velho Marroeiro”, novo poema em resposta a este, encontra-se no livro “Mata Iluminada”. Esta a razão por que o autor substituiu o vocativo – Sá dona – por – Marroeiro. É a primeira vez que este poema é publicado na íntegra, sob as vistas do autor.

A ALBERTO NUNES FILHO


MARRUÊRO, eu sou marruêro!...
Nacendo, cumo tinguí,
fui ruim, cumo piranha,
mais pió que sucuri.

Pixúna daquelas banda,
véve a gente a campiá!...
Deus fez o hôme, marruêro,
prá vivê sempre a lutá.

Meu pai foi bixo timive
e eu fui timive tômbém!
O pinto já sáe do ovo
cum a pinta que o galo tem.

Se meu pai foi marruêro,
havéra de eu tá na toca,
a rapá no caitetú
a massa da mandioca?!

Bebedô de madureba,
pissuindo carne e caroço,
eu nunca vi cabra macho
que me fizesse sobrôçol

Nunca drumi uma noite
imbaxo de tejupá!...
Nací prá vivê nas gróta,
prá vivê nos mócôsá.
prá drumi longe dos rancho.
prú-ríba duns gravatá...
vendo a lua pulas fôia
d’um férmoso iriribá!


Nos gaios da umarizêra,
o canta do sanhassú;
na boca triste da noite.
O gimido da inhabú...

e as tuada da cabôca,
lavando n’água do rio,
e os canto, prú via dela,
nos samba... nos disafio...

nada disso, não, marruêro,
me dava sastifação,
cumo o mugido bravio
dos valente barbatão!

Nada fazia, marruêro,
o coração me pulá,
cumo uvi pulas varjóta,
os berro dos marruá!

Na paz de Deus eu vivia
nos brêdo dos matagá,
tocando a minha viola
só prá meu gado iscutá.

Lá, prás banda onde eu naci,
Já se falava do amô:
todas as boca dixia
que era farso e matadô!

Mas porém, fui trazantonte.
no samba do Zé Benito,
que eu panhei uma chifrada
que me deu esse mardito!

Nas marvadage do Amô
não hai cabra que não caia,
quando o diabo tira a roupa,
tira o chifre e tira o rabo
prá se vistí c’uma sáia!

Se adisfoiando no samba,
cantando uma alouvação,
eu vi a frô dos cabórge
das morena do sertão!

Trazia dento dos óio
istrépe e mé, cumo a abêia!
Oiôu-me cumo uma onça!...
E, ao despois, cumo uma ovêia!

Aqueles óio xingôso,
eu confesso a vasmincê,
ruia a gente prú dento
que nem dois caxinguêlê!

Sem mardade, um bêjo dado
naquela boca orvaiada,
havéra de tê, marruêro,
o chêro das madrugada!

A fala dela, marruêro,
era o gemê do regato,
que vai bêjando as fôiáge,
que cái da boca dos mato!

As duas rola morena,
prú baxo do cabeção,
trimia, cumo a água fresca,
quando o vento bêja as água
das lagoa do sertão!...

Pruquê os dois peito alembrava
dois maduro cajá-manga,
e a boca, toda vremeia,
parecia uma pitanga.

Chêrava as mão da cabôca,
cumo os verde maturi!...
Era taliquá, marruêro,
dois ninho de jurutí!

Os pezinho da curumba,
quando dançava o baião,
parecia dois pombinho,
a mariscá pulo chão

Eu me alembro!... A saia dela,
cô das pena da irerê,
tinha a sôdade dos mato,
quando vai anoitecê!!
Aqueles braço de fogo,
(Deus não me castigue, não!!)
quêmava, cumo as fuguêra
das noite de São João!...

Marruêro!... Os cabelo dela
tinha o calô naturá
da pomba virge dos mato,
quando cumeça a aninhá!...

Apois, os cabelo dela
tão preto prô chão caia,
que toda a frô que butava
nos cabelo, a frô murchava,
pensando que anoitecia!!

O suó que ela suava
no samba, chêrava tanto,
que inté a gente sintia
um chêro de ingreja nova,
um chêro de dia santo!

As anca, as cadêra dela,
surrupiando no côco,
toda a se tamborilá,
a móde que parecia
o xaquaiá de uma onda,
que vem jupiando, redonda,
na praia se derramá!

Japiaçóca dos brejo,
no arrastado do rojão,
cantava cum tanta mágua,
cum tanto amô e paxão,
que ispaiava, no terrêro,
o ôrôma do coração!!

O coração das viola
aparava, de mansinho,
se os dois fióte de rola,
quando ela táva sambando,
pulava fora do ninho!...

Entonce, aqueles dois óio,
sereno, cumo o luá,
vinha prá riba da gente,
taliquá dois marruá.

Intrava dento da gente,
cumo duas zelação!...
Mas porém, a gente via,
no fundo daqueles óio,
a hora da Ave-Maria.
gemendo nas corda fria
das viola do sertão!!!


Prú móde daqueles óio,
dois marvado mucuim,
um violêro, afulémado,
partiu prá riba de mim!

Temperei minha viola,
intrei logo a puntiá,
e ambos os dois se peguémo,
num disafio, ao luá!

Premití a Santo Antônio,
se eu vencesse o cantandô,
de infeitá o seu fiínho
cum um ramaiête de frô!!
Só despois que nestas corda
fiz pinto cessá xerém,
vi que o bichão se chamava:
— Manué Joaquim do Muquêm!

Manué Joaquim era um cabra
naturá de Piancó!...
Quando gimia no pinho,
chorava, cumo um jaó!

Eu, marruêro, arrespundia
nestas corda de quandú,
e os acalanto se abria,
cumo as frô do imbiruçú!

Foi despois do disafio,
quando eu saí vencedô,
que os canto e os gemê dos pinho
n’um turumbamba acabou!!

Imquanto nós dois cantava,
sem ninguém tê dado fé,
tinha fugido a cabôca
cum o Pedro Cahitoré!!!

Tinha fugido a curumba
cum aquele bóde ronhêro,
um tocadô de pandêro
e runfadô de zabumba!

Tinha fugido, marruêro,
aquela frô dos meus ai,
cumo uma istrela que foge,
sem se sabê prá onde vai!!!

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Na luz do Só, que acordava,
lá, no coró do Nacente,
a móde que Deus, contente,
cum a natureza sonhava!

O canto alegre dos galo
nos capoerão amiudava!...
Nos taquará das lagôa
as saracúra cantava!

Alegre, passava um bando
das verde maracanã!
Formosa, cumo a cabôca,
vinha rompendo a minhã!

O vento manso da serra
vinha acordando os caminho!
Vinha.das mata chêrosa
um chêro de passarinho!

Lá, no fundão d’uma gróta,
adonde um córgo gimia,
gargaiava as siriêma
cum o fresco nacê do dia!

Uma araponga, atrépada
N’um braço de mato, im frô,
gritava, cumo si fosse
os grito da minha dô!!

E a sabiá, lá nos gaio
da tabibúia, serena,
trinava, cumo si fosse
uma viola de pena!
Um passarinho inxirido,
mardosamente iscundido
nas fôia de um tamburi,
sastifeito, mangofando,
de mim se ria, gritando
lá de longe: “bem te vi”!


Chegando na incruziada,
despois do dia rompê,
sipurtei o meu segredo
n’um véio tronco de ipê!

Dênde essa hora, inté hoje,
eu conto as hora, a pená!...
Eu vórto a sê marruêro!...
Vou vivê cum os marruá!

Eu tinha o corpo fechado
prá tudo o que é marvadez!
Só de surúcucútinga
eu fui murdido três vez!...

Tândo cum o corpo fechado,
prás feitiçage do Amô,
pensei que eu tava curado!

Dos marruá mais bravio,
que nos grotão derribei,
munta chifrada penosa,
munta marrada eu levei!!

Prá riba de mim, Deus póde
mandá o que êle quisé!

O mundo é grande, marruêro!...
Grande é o amô!... Grande é a fé!...

Grande ó o pudê de Maria,
ispôsa de São José!...

O Diabo, o Anjo mardito,
foi grande!... Cumo inda é!!

Mas porém, nada é mais grande,
mais grande que Deus inté,
que uma chifrada, marruêro,
dos óio d’uma muié!!!


VOCABULÁRIO
Marruá — touro.
Marroeiro — pastor do gado.
Tinguí — erva venenosa.
Piranha — peixe mordedor.
Sucuri — cobra.
Pixuna — rato selvagem.
Manduréba — cachaça.
Campiá — andar a busca de gado, pelos campos.
Sobroço — medo.
Tejupá — cobertura de palha.
Mócôsá — caverna.
Barbatão — touro.
Alouvação — canto, louvando alguém.
Cabórge — feitiço.
Istrépe — espinho.
Caxinguelê — animal roedor.
Irerê — ave palmípede.
Japiaçoca — ave ribeirinha.
Rojão — toque de viola.
Zelação — estrela cadente.
Mucuim — parasita que se introduz na pele.
Afulémado — raivoso.
Puntiá — preludiar na viola.
Pinto cessa xerém — fazer bonito.
Jaó — ave de canto melancólico.
Maracanã — periquito.
Araponga — ave também chamada Ferreiro, de grito agudíssimo.
Corpo fechado — aquele que por meio de rezas e outras superstições, fica isento de mordeduras e feitiços.
Surúcucútinga — cobra venenosíssima.


Poema retirado da revista A Noite ilustrada: edição especial Homenagem a Catulo da Paixão Cearense (19-7-1946), pág.08.

Um comentário:

  1. Este poema do Catulo da Paixão Cearence foi gravado, pela primeira vez, por Lima Duarte no disco Som Brasil, editado pela Rede Globo, entre 1981 e 1982. Tem um encarte datado de "São Paulo, novembro de 1981". São dois discos de vinil (LP) fabricados pela Tapecar Gravações. Tarcisio Cardoso - Araxá Minas Gerais

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