Então, como aprendi sem professor, pode me chamar de
pintor da floresta. Porque só quem viveu lá dentro é
capaz de
descobrir os mistérios da natureza através de nossos
irmãos
índios, donos da floresta
–
HÉLIO MELO[1]
ESPAÇO
Na obra Estrada da floresta, do artista acreano
Hélio Melo (1926-2001), um seringueiro se aproxima de uma grande árvore de
extração de borracha, que a selva pode chegar a medir mais de 30 metros de
altura e quase três de diâmetro.[2] O
quadro não mente, não exagera; não se trata de uma licença pictórica: a
realidade é mais contundente que a imaginação. Enfrentando a selva, onde o
olhar ocidental vê somente um emaranhado verde impenetrável, o seringueiro
estrutura um trajeto, o seu trajeto:
um mapa mental de seu rotineiro perambular em busca de sustento. Quando o
seringueiro vê a selva, ele vê as árvores na sua individualidade, já que as
conhece como se fossem da família. No quadro de Hélio Melo, cada braço da
árvore representa um caminho, uma trilha em meio à selva; a cada ramo, uma
árvore a sangrar; a cada nó circular, uma oportunidade de descanso na extração
do látex.
A partir da segunda
metade do século XIX, a borracha foi matéria-prima essencial para o
desenvolvimento industrial da Europa e dos Estados Unidos. Fazia parte da
maioria das máquinas – válvulas, vedações, correias – e de todos os veículos. É
importante lembrar que, até 1927, a fábrica de Ford produziu 15 milhões de
carros Modelo “T”, a um ritmo de quase um milhão por ano. Alguns especialistas
calculavam que cada automóvel precisaria de aproximadamente 45 quilos de
borracha para compor diversos elementos, o que nos dá uma ideia da demanda que
a borracha nativa chegou a ter no primeiro quarto do século passado. Como
durante a Segunda Guerra Mundial o Japão assumiu o controle das áreas tropicais
do Sudeste Asiático, onde estavam os grandes cultivos industriais de borracha,
o látex americano tornou-se novamente um produto estratégico, proporcionando o
ressurgimento do interesse político nas áreas dos seringais da Amazônia
brasileira. É no mínimo irônico que o desenvolvimento daquelas que outrora fora
consideradas tecnologias de ponta estivesse literalmente nas mãos de pessoas que tiram, de maneira artesanal, o precioso
sangue da “árvore que chora”, de gota em gota. A implacável lógica do capital
estendeu esse sangramento a toda comunidade que, sujeita às inconstâncias da
geopolítica, viveu ciclos de desenvolvimento e crise por causa de um agente
externo que nunca conheceu, em pôde controlar.
A árvore de Hélio
é, portanto, um mapa; mas também uma crônica. É possível ler nessa
árvore-caminho as razões da tragédia que foi a exploração da borracha na área
em que hoje estão os territórios do Brasil, Bolívia, Peru e Colômbia.[3] O
problema central da extração do látex na América está ligado a uma
circunstância biológica. Nunca foi possível cultivá-la industrialmente de
maneira eficiente, já que quando as árvores estão próximas, enfileiradas,
tornam-se muito vulneráveis à ação de um fungo mortal. Ironicamente, os
ingleses conseguiram formar grandes plantações de seringueiras na Malásia,
graças às sementes coletadas em solo brasileiro. As árvores deram certo porque
não havia inimigos naturais em seu novo habitat. As frustradas experiências do
industrial automobilístico Henry Ford na selva brasileira nos anos 1920 e dos
Estados Unidos no Panamá e na Costa Rica na década de 1940 evidenciaram que a
única forma de explorar a borracha americana era a tradicional, recolhendo o
látex das árvores nativas. No entanto, isso significava uma diferença essencial
em termos de eficiência e rendimento, o que se traduzia em uma importante
disparidade no preço de cada quilo produzido. Enquanto em territórios
controlados pela Coroa inglesa era possível um homem sangrar sozinho mais de
400 árvores por dia, produzindo quase 18 toneladas de látex por ano, um
seringueiro brasileiro tinha de percorrer centenas de metros dentro da selva,
indo de uma árvore à outra, desafiando a espessa vegetação, as pragas, os
animais e os demais perigos da selva para produzir um quinto dessa quantidade.
Além disso, no auge do Ciclo da Borracha na Amazônia, havia uma pressão enorme
para conseguir um bom rendimento – absurdo para aquelas condições de trabalho –
sob pena de castigos físicos para o seringueiro e sua família. As dificuldades
advindas da extração, adicionadas aos empecilhos do transporte da borracha
desde as profundezas da floresta até os portos, e de lá até seus consumidores
finais, significaram um custo muito maior, ou seja, mais de cinco vezes o custo
de produzi-las em plantações.
Assim como a lógica
capitalista clássica (a industrialização dos processos) não funcionou por causa
da própria natureza da árvore, a única forma de tornar o negócio rentável era
reduzir o preço na origem do processo, ou seja, no processo de extração. Já que
não era possível otimizar o sistema de colheita – o que se tornou tradição
desde a Revolução Industrial –, a única estratégia possível era ter mão de obra
mais barata. O recurso disponível foi voltar à lógica pré-capitalista feudal,
ou seja, empregar trabalhadores em condições subumanas – medida que rapidamente se transformou na servidão das
mais desprezíveis – e escravizar índios. Por meio de um verdadeiro regime de
terror, os magnatas da borracha primeiramente submeteram os camponeses do
Nordeste brasileiro, já deslocados por causa das secas, a contratos de trabalho
nos quais quaisquer tipos de transporte, moradia, insumos e ferramentas tinham
de ser pagos com seu trabalho. Isso gerou uma espiral de empréstimos
impagáveis, sendo que quanto maior o tempo de trabalho, menor a possibilidade
de pagar a dívida. Quando nem sequer isso foi suficiente, comunidades inteiras
de índios foram obrigadas a trabalhar na indústria, dizimando por esgotamento e
por doenças os “donos da selva”, cuja tragédia foi estar justamente no caminho
da empresa civilizadora.
O mapa de Hélio
Melo mostra as estradas de floresta,
que, nas palavras de Euclides da Cunha, são “tentáculos de um polvo
desmesurado”, a “imagem monstruosa e expressiva da sociedade torturada que
moureja naquelas paragens”[4]. A
selva, como éden puro, tornou-se um inferno.
O seringueiro é sobretudo um
solitário, perdido no deserto da floresta, trabalhando para se escravizar. Cada
dia num seringal corresponde a uma empreitada de Sísifo – partindo, chegando e
novamente partindo pelas estradas no meio da mata, todos os dias, sempre, num
eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros.[5]
TEMPO
Considerando que o
seringueiro deveria seguir uma rotina precisa em seu trabalho de provisão de
leite vegetal, a árvore de Hélio Melo é também uma medida de tempo: uma jornada
de trabalho. No primeiro percurso, foram 43 árvores, no qual fazia as incisões
no tronco e posicionava as tigelinhas, pequenas tigelas de lata na qual goteja
o látex. No segundo, 50; no terceiro, 49. Mais tarde, logo após um breve
descanso, fazia o caminho inverso recolhendo o conteúdo de cada tigela nos
baldes. No final da jornada, a preocupação era defumar a borracha extraída para
solidificá-la em grandes compartimentos chamados pelas. O quadro nos mostra que em um dia o seringueiro de Hélio
sangrava quase 150 árvores. Não sabemos ao certo a distância percorrida. No
entanto, de acordo com os botânicos, as seringueiras em estado selvagem estão
normalmente separadas entre 100 e 150 metros umas das outras. Isso nos leva a
pensar que em um dia um trabalhador poderia caminhar quase 50 quilômetros –
distância necessária para atravessar a cidade de São Paulo atual – entre
sangrar a árvore e recolher o produto, tudo sob um calor inclemente da selva
úmida.[6]
O seringueiro leva
um rifle, está armado. Este seringueiro-soldado é o próprio Hélio Melo, que foi
um “soldado da borracha”.[7]
Hélio é um dos quase 60 mil jovens brasileiros que participaram de um programa
liderado pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Destinado a
neutralizar os efeitos do bloqueio japonês sobre a produção asiática de
borracha, foi colocado em prática na Amazônia com o concurso do Estado
brasileiro. A batalha da borracha foi
uma empresa motivada pelas necessidades da indústria da guerra, portanto uma
empresa bélica; o seringueiro tornou-se, desta maneira, um soldado. Sua missão:
elevar exponencialmente a produção de borracha, passando de meras 16 mil
toneladas em 1941 para 70 mil toneladas anuais. Para um incremento tão
importante era preciso mais de 100 mil trabalhadores, razão pela qual se lançou
uma agressiva campanha de propaganda do programa. Os famintos do Nordeste,
afetados por uma seca que parecia não ter fim, foram bombardeados por imagens
tendenciosas, cartazes que mostravam o látex jorrando das árvores para ser
coletado, sem esforço, em baldes. Imagens que ressaltavam o verde da Amazônia
como se fosse o mítico el-dorado de exuberância e riqueza, em um Nordeste
assolado pela seca. Sem ter tanto a perder, muitos se inscreveram no programa.
Porém, nem sequer os incentivos econômicos foram suficientemente eficazes na
captação do contingente humano necessário para tamanha empreitada, o que levou
ao recrutamento forçado. Milhares de jovens nordestinos, maltratados pela
pobreza, decidiram seguir esse rumo, confrontados pela alternativa de lutar no
pelotão de frente do exército. Mas a troca teria valido a pena: dos 20 mil
soldados que lutaram na Europa, morreram somente 454. Por outro lado, dos quase
60 mil soldados da borracha enviados
para a Amazônia entre 1942-1945, quase metade morreu na selva sem ter disparado
um tiro sequer. A exploração dos soldados da borracha repetiu, em todos os
detalhes, o injusto esquema de trabalho do primeiro boom da borracha chamado de “sistema de aviamento”. O trabalhador
sempre devia mais do que produzia, e como legalmente ele era impedido de deixar
os seringais sem ter saldado a sua dívida, a viagem se convertia sempre em uma
viagem sem volta, e o contrato de trabalho, um contrato de escravidão.
A forma circular do
percurso proposto pela seringueira de Hélio é, então, o tempo circular: o
eterno retorno (da tragédia).
ENERGIA
O quadro de Hélio
Melo surpreende pela síntese e pela complexidade dos códigos que trabalha. De
fato, apesar de ser autodidata em arte, Hélio não deve ser considerado um
artista naïf. Suas representações da selva – seus usos, mitos e personagens –
não são somente isentas de inocência, mas, devido ao profundo conhecimento do
território físico e social que retratou, sua obra está repleta de referências
ocultas, referências que somente quem conhece a selva pode decifrar. É uma
representação feita a partir da experiência direta. Nascido e criado no
seringal, Hélio aprendeu por si só a pintar no meio da selva, se
consequentemente teve de desenvolver sua própria linguagem pictórica. Como
afirmaria Eduardo Galeano, referindo-se a Evo Morales, “a única linguagem digna
de crédito é aquela nascida da necessidade de dizer”.[8]
Hélio desenvolveu uma linguagem muito particular, na qual as árvores se
tornaram vacas e bezerros, os burros e tartarugas sobem nos galhos, as
seringueiras transformam-se em caminhos e os seringalistas, donos da terra, são
burros preguiçosos que olham os seringueiros trabalharem, observando-os da
comodidade de sua rede. Entre os vários livros que Hélio publicou com meios
precários,[9] um
deles, escrito um pouco antes de morrer, foca na necessidade de salvar a selva,
ameaçada pela exploração maciça de madeira, pela monocultura extensiva, pelas
estradas e pelos efeitos do progresso capitalista imposto à realidade da
floresta. A borracha foi cortada para liberar grandes áreas para a pecuária.
Sem a árvore, comunidades inteiras ficaram sem possiblidade de subsistência.
Foi muito triste o destino do caucho,
que lamentavelmente ficou sem história. Sabe-se de algumas coisas através de
pessoas idosas, algumas dessas pessoas já partiram, mas deixaram depoimentos
sobre a derrubada e o desaparecimento do caucho. O resultado é que ninguém se
atreveu a escrever sua história. Por sorte, logo houve a descoberta da
seringueira, no ano de 1880. Da mesma forma que o caucho teve um fim triste, os
seringueiros têm uma história dolorosa. O leite da seringa foi e ainda é
trocado pelo leite de vaca.[10]
A arte de Hélio não
é a arte de um iluminado, no sentido dado a muitas produções do chamado art brut, mas sim a expressão visual de
um inventário de práticas em via de extinção, pelas mãos de um personagem com
plena consciência daquilo que está em jogo. Por outro lado, é sim uma “arte
iluminada”. A luz particular das obras de Hélio Melo cativou muitas pessoas,
entre elas o escultor Sérgio Camargo[11],
que escreveu:
Caso de simbiose estética com a mata
em que viveu? Assim se explicaria naturalmente esse fenômeno, sem dar conta
todavia da sua motivação profunda em conhecer, pelo trabalho de arte, os
meandros luminosos que soube perceber; por exemplo a imanência complexa da luz
suntuosa, curiosamente definida com a maior precisão em desenhos de sábia
naturalidade. Assim o limpo alvorecer, o lento achegar do escuro noturno, as
travessuras da luz nas ramarias e o seu pouso efêmero na textura rouca dos
troncos; as clareiras luminescentes, os suaves abrigos da sombra, os finos
percursos e os amplos espaços que, plenamente, a luz de Hélio Melo ocupa.[12]
A arte popular é
uma expressão que combina a tradição cultural, a profissão passada de gerações
em gerações, a necessidade expressiva e pessoal e a possibilidade de subsistência.
Na arte contemporânea, raras vezes os fatores citados anteriormente são
combinados. A arte popular e a arte dos “outsiders” – por serem propostas que
no geral têm uma voz forte e um senso de urgência – contrastam com as produções
artísticas atuais ou as complementam. No contexto da 27ª. Bienal de São Paulo,
a obra de Hélio Melo dialogará com outros trabalhos artísticos realizados em
torno de noções de território, fronteiras, justiça ambiental, fair trade etc. Algumas delas foram
realizadas diretamente no território do Acre: a paródia do saber científico em
um herbário de plantas artificiais de Alberto Baraya, que construiu uma grande
seringueira com o próprio látex[13];
o desenho/reportagem de Susan Turcot, que reflete sobre a destruição da
floresta e suas implicações nas leituras simbólicas e míticas da selva nas
populações locais; a análise das arquiteturas de sobrevivência e as novas
formas de comunidade do Acre, realizadas por Marjetica Potrč; a formação de um
sistema que garanta a sustentabilidade das comunidades agrícolas na selva,
realizado pelo grupo dinamarquês Superflex, entre outras.
MATÉRIA
O quadro de Hélio
fala da floresta. Mais precisamente, a floresta fala através da obra de Hélio.
Literalmente. Como não tinha pigmentos para executar suas obras, Hélio Melo
desenvolveu seu próprio método macerando folhas (presumidamente da própria
seringueira), casca, raízes e frutos, e utilizando, de acordo com a cultura
local, o látex como cola. Por isso a coloração esverdeada característica de
suas obras. Um dos recursos pictóricos recorrentes em seu trabalho é a aparição
de uma fileira de folhas na margem inferior do quadro, que estabelece uma
espécie de primeiro plano teatral situando a ação “na floresta”. Essa cortina
de folhas não foi pintada: trata-se de um traço indicial, pois foi feita com
folhas lanceoladas, molhadas em pigmento e aplicadas diretamente no suporte
como se fosse um selo. A pintura de Hélio não representa somente a vida na
floresta, mas também apresenta a
selva pelo seu uso extensivo como matéria e como pincel.
POÉTICAS (MICRO)
POLÍTICAS
A Estrada da floresta de Hélio também pode
ser lida no contexto da recuperação dos valores culturais e das tradições da
extração da borracha, em um momento em que as empresas madeireiras, os
pecuaristas e os fazendeiros de grãos estavam obtendo concessões do Estado para
derrubar a selva. Não podemos esquecer que o Acre é o território de Chico
Mendes, também seringueiro. Chico combateu a destruição da selva com meios não
convencionais, como os chamados empates
– ações coletivas de ativismo social, não isentas de um caráter poético –, nos
quais comunidades inteiras de homens, mulheres, idosos e crianças davam-se as
mãos para formar um círculo em volta dos trabalhadores contratados para cortar
as árvores. Diante dessa estratégia de coerção pacífica, conseguiu defender
vastas extensões de terra que serviam de sustento para comunidades inteiras,
contra os interesses dos grandes latifundiários. Chico liderou o conceito de reservas extrativistas, uma ação que vai
além da defesa incondicional da selva, como manda a tradição dos
ambientalistas. As reservas extrativistas não são somente um espaço de
conservação de um recurso natural, a selva, fazendo um contraponto com o
desmatamento maciço em prol da pecuária e da monocultura. Elas são também um
espaço de preservação de um uso
cultural, executado por gerações de índios e colonos durante séculos: a
extração látex. Segundo o cineasta Adrian Cowell, que dirigiu A década da destruição, documentário
sobre os processos de desmatamento no Brasil,
a grande vantagem da reserva
extrativista era justamente seu povo que podia defender suas fronteiras, e que
formou uma força social que podia atuar na política local. Do mesmo jeito como
aquele tipo de árvore amazônica que alimenta colônias de formigas para se
defender contra outras formigas, os seringueiros e índios são defensores natos
e naturais da floresta amazônica.[14]
A situação atual da
selva amazônica nos países que a compartem oscila entre a luta para preservar a
natureza e os usos sociais e culturais associados a uma exploração milenar e
renovável dos recursos, e a implementação de melhorias – algumas vezes
bem-intencionadas, a maior parte delas advinda simplesmente de interesses
privados – que facilitariam a entrada de povos isolados da globalização. A
insistência em dizer que as vias de acesso são a solução dos problemas de
isolamento das comunidades amazônicas nos faz lembrar, por sua insistência, a
construção da ferrovia entre os rios Madeira e Mamoré, fato intimamente ligado
à criação do Acre como território independente em 1899 e sua posterior anexação
ao Brasil em 1904.
Há defensores e
opositores furibundos para ambas as tendências. Os partidários do cultivo
extensivo argumentam que quanto maior a produtividade, maiores os recursos
derivados de regalias e de impostos e maior a quantidade de postos de trabalho.
Seus opositores defendem as comunidades que vivem da exploração racional dos
recursos da selva, mesmo que a defesa irrestrita da tradição da exploração da
borracha – elevada à categoria de mito fundador – idealize essa exploração e se
esqueça de que a indústria da borracha significou o extermínio completo de
algumas etnias indígenas. Tratou-se de uma prosperidade temporal e ilusória que
beneficiou somente poucos, à custa de sangue e sofrimento.
As boas intenções
são sempre unilaterais e não necessariamente compartidas pelo destinatário da
dádiva. A imposição de padrões forasteiros não tem mais terreno fértil para sua
segurança em um contexto politicamente mais maduro. O etnobotânico Wade Davis
dizia que, ao enfrentarmos comunidades cuja história, costumes e mitos
desconhecemos,
idealizamos um passado que nunca
viemos e negamos, a quem o viveu, o direito de muda-lo. Talvez tenhamos
esquecido a lição mais inquietante de antropologia. Como disse Lévi-Strauss,
‘inventaram o relativismo cultural para os povos e eles o rechaçaram’.[15]
Atualmente existem
no Brasil várias iniciativas, como a Universidade da Floresta, encaminhadas com
o objetivo de buscar soluções locais que levem em conta o conhecimento das
comunidades e o insumo conceitual na concepção de estratégias de
desenvolvimento cultural economicamente sustentáveis. Sobre isso vale a pena
citar novamente o seringueiro Hélio, com relação à sua árvore-floresta: “Só
temos uma solução: deixar tudo para trás e, sem nenhum constrangimento, começar
uma nova caminhada, de mãos erguidas, procurando construir sem destruir”.[16]
Marjetica Potrč, que esteve em residência artística no Acre em 2006, aponta
como o isolamento pode ser considerado uma vantagem relativa, no sentido de que
pode desenvolver respostas próprias e inéditas a problemas que são eminentemente
locais, incorporando o conhecimento dos índios, camponeses e seringueiros na
solução dos problemas. Esta estratégia permite estender as micropolíticas
locais como sento um modelo a aplicar – em lugar de soluções globais que
desconhecem as especificidades do território:
Nos últimos 15 anos, grandes áreas de
terras acreanas foram entregues a comunidades, inclusive à população indígena,
para cultivo sustentável [...] A sustentabilidade diz respeito tanto ao meio
ambiente como à economia. Quem lida com esses territórios encara essa economia
de pequena escala tanto como uma ferramenta para sua própria sobrevivência do
planeta e da sociedade em geral. O futuro do mundo depende do equilíbrio entre
os territórios controlados localmente e as forças globalizadoras de companhias
multinacionais? As pessoas com quem conversei definitivamente acham que sim. E
deveriam saber disso, pois o que chamamos de a última fronteira mundial, a
floresta, foi cruzada. Dessa forma, em muitos sentidos, o Acre representa a última
fronteira da terra.[17]
ROCA, José IN: 27ª.
Bienal de São Paulo: Como Viver Juntos. Editores Lisette Lagnado e Adriano
Pedrosa. São Paulo: Fundação Bienal, 2006. p.129-140
[1]
Ver
a entrevista de Hélio Melo realizada por Cristina Leite no Guia da 27ª. Bienal, p.94.
[2]
Aparentemente
as árvores do Acre, uma variedade geográfica da Hevea brasiliensis, conhecida como “Acre fino”, são as seringueiras
de maior tamanho entre todas as espécies da Amazônia. Wade Davis, El río. Exploraciones y descubrimientos en
la selva amazónica, Bogotá, Banco de la República-El Áncora Editores, 2001,
p.423
[3]
Com
relação aos colombianos, ver La vorágine
(1924), de José Eustásio Rivera, romance que expõe a problemática da exploração
e da miséria humana da selva.
[5]
Isabel Cristina Martins Guillen, IN: “Euclides da Cunha para se pensar a Amazônia”.
A frase final é de Euclides da Cunha.
[6]
Em
1997, Hélio Melo foi convidado a participar do evento artístico Arte/Cidade III, no qual os artistas
trabalhavam diferentes espaços em São Paulo. Sua obra consistiu em acumular
centenas de sapatos que encontrou nas ruas de São Paulo, formando um registro
em forma de escultura da trajetória de uma infinidade de personagens anônimos.
[7]
“Sou
soldado da borracha aposentado. Ganho dois salários. Pelejei para ter um ornado
melhor, mas não consegui. Agora, quando vendo um quadro ganho um pouquinho
mais”.
[8]
Eduardo
Galeno, “A segunda fundação da Bolívia”, Folha
de S. Paulo, caderno “Mundo”, p.A24, 29 de janeiro de 2006.
[9]
Hélio
publicou vários livros, entre eles Legendas,
Rio Branco, Artes Gráficas São José, 2000; Os
mistérios dos pássaros, Rio Branco, Bobgraf Editora Preview, 1996; A experiência do caçador e os mistérios da
caça, Rio Branco, Bobgraf Editora Preview, 1996.
[10]
Hélio
Melo, Como salvar nossa floresta. Do
seringueiro para o seringueiro, Rio Branco, INPECA, 1999, p.13.
[11]
Camargo
viu a obra de Hélio Melo em um convite a uma exposição de arte popular no SESC
Tijuca, em 1980.
[13]
A
árvore de Baraya é reprodução fiel de uma enorme seringueira de Rio Branco e
foi feita com o látex de mais de 2.800 árvores similares. Assim como a arte de
Hélio, essa também é uma árvore que contém todas as árvores.
[14]
Adrian
Cowell, “Lembranças do Chico”.
[15]
Referindo-se
à ação evangelizadora nas selvas equatorianas nos anos de 1950. Wade Davis, op.
cit., p.346.
[16]
Hélio
Melo, op. cit., p.13.
[17] Ver a entrevista de
Marjetica Potrč realizada por Luisa Duarte no Guia da 27ª. Bienal, p.166
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