Eles não sabiam nada de nossa chegada. Estando perto do
forte, nos encomendamos a Deus e suplicamos Sua assistência em tão pesada
empresa...
Não podemos outra coisa além de admirar a Divina
Providência quando nossos soldados, inexperientes no uso das armas, lançaram
uma carga tão cerrada que parecia que o dedo de Deus tivesse posto fogo na mecha.
Ao romper do dia, a andanada provocou terror nos índios, que estavam
profundamente adormecidos, e escutamos os gritos mais cheios de lamento. Se
Deus não tivesse preparado os corações nossos para o Seu serviço, teríamos sido
movidos à comiseração. Mas havendo Deus nos despojado de piedade, nos
dispusemos a cumprir nosso trabalho sem compaixão, considerando o sangue que os
índios tinham derramado quando trataram barbaramente e assassinaram a uns
trinta de nossos compatriotas. Com nossas espadas na mão direita e nossas
carabinas ou mosquetões na mão esquerda, atacamos...
Muitos morreram queimados no forte, outros foram forçados
a sair e nossos soldados os recebiam com as pontas das espadas. Caíram homens,
mulheres e crianças; os que escapavam de nós caíam nas mãos de nossos índios
aliados, que esperavam na retaguarda. Segundo os índios pequot, havia umas
quatrocentas almas nesse forte, e nem mesmo cinco conseguiram escapar de nossas
mãos. Grande e lastimável foi a visão do sangue para os jovens soldados que
nunca tinham estado na guerra, vendo tantas almas que jaziam de boca arfante no
chão e tão amontoadas que em algumas partes não se podia passar.
Se poderia perguntar: por que tanta fúria? (Como alguém
disse.). Não deveriam os cristãos ter mais clemência e compaixão? E eu respondo
recordando a guerra de David. Quando um povo chegou a tal ponto de sangue e
pecado contra Deus e o homem, David não respeita as pessoas, e sim as rasga e
destroça com sua espada e lhes dá a morte mais terrível. Às vezes as escrituras
declaram que as mulheres e as crianças devem perecer junto a seus pais. Às
vezes se dão casos diferentes, mas não vamos discutir isso agora. Suficiente
luz recebemos da Palavra de Deus, para nossos procederes.
GALEANO, Eduardo.
Memória do fogo, 1: nascimentos. Tradução Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983. p.259-260
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