Hilda Hilst (1930-2004) |
Tudo vive em mim.
Tudo se entranha
Na minha tumultuada
vida. E porisso
Não te enganas,
homem, meu irmão,
Quando dizes na
noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a
ti. E a esses que passam
Nas manhãs,
carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos
eles em mim,
Porque o poeta é
irmão do escondido das gentes
Descobre além da
aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso
conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto,
não fala do palanque,
Não está no
comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe
que o ouro é sangue
Tem os olhos no
espírito do homem
No possível
infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E
porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me.
Enquanto vive um poeta
O homem está vivo. p.290-291
Para um Deus, que
singular prazer.
Ser o dono de
ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um
breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença
contigo, Executor.
O Senhor do meu
canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto
dormes.
Enquanto dormes, eu
tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso
minha vida minha cabeça;
Dorme, inventado
imprudente menino.
Dorme. Para que o
poema aconteça. p.412
As barcas
afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é
assim o poema. Cintilante
E obscura barca
ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz
nascer
Dentro da tua
garganta.
Úmidas algumas, de
transparente raiz:
Um molhado de
línguas e dentes.
Outras de
geometrias. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de
poetas, de poesia.
As barcas
afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder
luas de eternidade.
E doutas, de ironia
as tuas
Só através da minha
vida vão viver. p.449-450
Empoçada de
instantes, cresce a noite
Descosendo as
falas. Um poema entremuros
Quer nascer, de
carne jubilosa
E longo corpo
escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não
seria o não dizer
E deixar aquietadas
as palavras
Nos noturnos
desvãos. Um poema pulsante
Ainda que
imperfeito quer nascer.
Estendo sobre a
mesa o grande corpo
Envolto na sua
bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas
ventas. Nasce intensa
E luzente a minha
cria
No azulecer da
tinta e à luz do dia. p.450-451
De cigarras e
pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor
de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de
atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de
estalagens da loucura.
Da carne de
mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta
preexiste, entre a luz e o sem-nome. p.454
Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego
raivoso animal
Que pretendias.
p.464
Porque há desejo em
mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano
era um pensar alturas
Buscando Aquele
Outro decantado
Surdo à minha
humana ladradura.
Visgo e suor, pois
nunca se faziam.
Hoje, de carne e
osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E
que descanso me dás
Depois das lidas.
Sonhei penhascos
Quando havia o
jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde
não havia rastros.
Extasiada, fodo
contigo
Ao invés de ganir
diante do Nada. p.480
Existe a noite, e
existe o breu.
Noite é o velado
coração de Deus
Esse que por pudor
não mais procuro.
Breu é quando tu te
afastas ou dizes
Que viajas, e um
sol de gelo
Petrifica-me a cara
e desobriga-me
De fidelidade e de
conjura. O desejo,
Este da carne, a
mim não me faz medo.
Assim como me veio,
também não me avassala
Sabes por quê?
Lutei com Aquele
E dele também não
fui lacaia. p.482
O REIZINHO GAY
Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS...
Pela linda peroba
Que se lhe
adivinhava
Entre as coxas
grossas.
Quando os doutos do
reino
Fizeram-lhe
perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a
bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos
braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um
grito.
Daí em diante
Sempre que a
multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de
palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na
sacada
Com a bronha na
mão.
E eram ós agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o
reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se
sonhando
Com seu rei
pintudo.
Acabou-se da turba
a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa da sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu
mastruço
Pra quem nem é
russo.
E quero sem demora
Um buraco negro
Pra raspar meu
ganso.
Quero um cu
cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal
evento...
Desse reino perdido
na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.
Moral da história:
A palavra é
necessária
Diante do absurdo.
p.493-495
HILST, Hilda. Da
poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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