sábado, 12 de janeiro de 2019

POEMAS DE QUINTINO CUNHA

ENCONTRO DAS ÁGUAS
Quintino Cunha (1873-1943)

– Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este
É o rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como as saudades com as recordações.

Vê como se separam duas águas,
Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

É um simulacro só, que as mágoas donas
Desta terra não tem sentido adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do universo;

Para o velho Amazonas, soberano
Que, no solo brasílio tem o paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço.

Olha esta água – é negra como tinta,
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto, é também limpa, engana;
É direito à virtude quando passa
Pela flexível porta da choupana.

Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza mais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
Neste céu dágua brutalmente enorme.

Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!... p.172-173


AJURI

Ajuri é um índio velho,
Que mora numa cabana,
Tão longe da vida humana
Como a miséria de si!
Nada pensa em sua vida,
Viva de pesca e de caça,
Sem conhecer a desgraça,
O bom índio Ajuri.

Todos os dias de tarde,
À margem do grande rio,
Num canto muito sombrio,
Sob um cedro secular,
Ajuri vai pressuroso,
Vai satisfeito o bom velho
Ver algum boto vermelho,
À flor das águas boiar!

E quando, como é costume,
Algum boto lhe aparece
E de novo ao fundo desce,
E de novo à tona vem,
Aí é que satisfeito,
No mais profundo desvelo,
Ajuri murmura ao vê-lo!
– Maria, meu doce-bem!

Todo povo fala que esta,
Que Ajuri amava tanto,
Na tarde de um dia santo,
A sombra na água botou;
Ela que um boto com certeza
A botara; pois Maria
Nunca mais, desde esse dia,
Um triste instante passou.

Se por ventura morresse,
Iria ao reino de Iara,
Gozar do que não gozara
Na terra, feliz mulher!
Não era morte, era encanto,
Para o nosso mundo ignoto,
 Maria seria um boto
Como outro boto qualquer.

Morreu, mas a sua morte
Não causou luto nem mágoas!
Ajuri por sobre as águas,
A noiva morta estendeu;
Ele próprio, no entretanto
Su’alma à crença é tão presa
Que ainda diz com certeza
Que Maria não morreu!

Por isso é que toda tarde,
À margem do grande rio,
Naquele canto sombrio,
Sob um cedro secular,
Ajuri satisfeito,
Vai toda tarde e bem velho,
Ver algum boto vermelho,
À flor das águas, boiar. p.174-176


A ENCHENTE

Sinistro cresce o rio bom de outrora,
Mas hoje um cruel, fazendo mil estragos.
Já não tem coração, não tem afagos
Para si mesmo, o Solimões dagora;

Mas, em compensação, há nisto uns vagos
Tons de alegria impressionadora:
É que alegres, os peixes vão-se embora,
Pelos igarapés, para os seus lagos.

E, no ouranal, pousadas tristemente,
Com a mesma tristeza com que a gente
Se prostra, às vezes, quando sente mágoas,

As garças olham como a praia há-de
Em breve se esconder, naquelas águas,
As garças olham... tristes de saudade!... p.176


A PIRACEMA

Aqui é um lago, feito de água clara,
Visualmente negro se mostrando;
Calmo que sobre si passa uma igara,
Como no espaço um passarinho voando.

Sol das dez da manhã. O amor compara
Este quadro à virtude. Um vento brando...
Mas lá fora no rio. Ele aqui para,
O lago, a mata e o céu quietos deixando.

Do anivelado espelho dágua, apenas
Manchado levemente por pequenas
Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,
Frágeis, cambiantes, rápidas, fugindo,
Como travessas conchas madrepérolas. p.177


MELLO, Anísio. Lira amazônica: antologia. São Paulo: Luzes – Gráfica Editora Ltda, 1965.

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