Mário Faustino
(1930-1962)
Vi-te chegar, como
havia
Sonhado já que
chegasses:
Vinha teu vulto tão
belo
Em teu cavalo
amarelo,
Anjo meu, que, se
me amasses,
Em teu cavalo eu
partira
Sem saudade, pena,
ou ira;
Teu cavalo, que
amarraras
Ao tronco de minha
glória
E passava-me a
memória,
Feno de ouro,
gramas raras.
Era tão cálido o
peito
Angélico, onde meu
leito
Me deixaste então
fazer,
Que pude esquecer a
cor
Dos olhos da Vida e
a dor
Que o Sono vinha
trazer.
Tão celeste foi a
Festa,
Tão fino o Anjo, e
a Besta
Onde montei tão
serena,
Que posso, Damas,
dizer-vos
E a vós, Senhores,
tão servos
De outra Festa mais
terrena –
Não morri de mala
sorte,
Morri de amor pela
Morte. p.15-16
VIDA TODA LINGUAGEM
Vida toda linguagem,
frase perfeita
sempre, talvez verso,
geralmente sem
qualquer adjetivo,
coluna sem
ornamento, geralmente partida.
Vida toda
linguagem,
há entretanto um
verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali,
assegurando a perfeição
eterna do período,
talvez verso,
talvez interjetivo,
verso, verso.
Vida toda
linguagem,
feto sugando em
língua compassiva
o sangue que
criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em
fonte adolescente,
sêmen de homens
maduros, verbo, verbo.
Vida toda
linguagem,
bem o conhecem
velhos que repetem,
contra negras
janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam
turvas trajetórias.
Vida toda linguagem
–
Como todos
sabemos
Conjugar esses
verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e
besta, diabo e anjo
e deus talvez, e
nada.
Vida toda
linguagem,
vida sempre
perfeita,
imperfeitos somente
os vocábulos mortos
com que um homem jovem,
nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la
eterna – como se lhe faltasse
outra, imortal
sintaxe
à vida que é
perfeita
língua
eterna. p.17-18
SINTO QUE O MÊS
PRESENTE ME ASSASSINA
Sinto que o mês
presente me assassina,
As aves atuais nasceram
mudas
E o tempo na
verdade tem domínio
Sobre homens nus ao
sul de luas curvas.
Sinto que o mês
presente me assassina,
Corro despido atrás
de um cristo preso,
Cavalheiro gentil
que me abomina
E atrai-me ao
despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde
me espreita
A morte espacial eu
me ilumina.
Sinto que o mês
presente me assassina
E o temporal ladrão
rouba-me as fêmeas
De apóstolos
marujos que me arrastam
Ao longo da
corrente onde blasfemas
Gaivotas provam
peixes de milagre.
Sinto que o mês presente
me assassina,
Há luto nas
rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia
em cada hora
(Na libra
escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de
imprimir a dura face
À força de suor, de
sangue e chaga.
Sinto que o mês
presente me assassina,
Os derradeiros
astros nascem tortos
E o tempo na
verdade tem domínio
Sobre o morto que
enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade
tem domínio,
Amen, amen vos
digo, tem domínio
E ri do que desfere
verbos, dardos
De falso eterno que
retornam para
Assassinar-nos num
mês assassino. p.19-20
O MUNDO QUE VENCI
DEU-ME UM AMOR
O mundo que venci
deu-me um amor,
Um troféu perigoso,
este cavalo
Carregado de
infantes couraçados.
O mundo que venci
deu-me um amor
Alado galopando em
céus irados,
Por cima de
qualquer muro de credo,
Por cima de
qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci
deu-me um amor
Amor feito de
insulto e pranto e riso,
Amor que força as
portas dos infernos,
Amor que galga o
cume ao paraíso.
Amor que dorme e
treme. Que desperta
E torna contra mim,
e me devora
E me rumina em
cantos de vitória... p.21
CARPE DIEM
Que faço deste dia,
que me adora?
Pegá-lo pela cauda,
antes da hora
Vermelha de
furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em
música, em palavra,
Ou gravá-lo na
pedra, que o sol lavra?
Força é guarda-lo
em mim, que um dia assim
Tremenda noite
deixa se ela ao leito
Da noite precedente
o leva, feito
Escravo dessa fêmea
a quem fugira
Por mim, por minha
voz e minha lira.
(Mas
já de sombras vejo que se cobre
Tão
surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já
nele a luz da lua – a morte – mora,
De
traição foi feito: vai-se embora.) p.39
BALADA
(Em memória de um
poeta suicida)
Não conseguiu
firmar o nobre pacto
Entre o cosmos
sangrento e a alma pura.
Porém, não se
dobrou perante o facto
Da vitória do caos
sobre a vontade
Augusta de ordenar
a criatura
Ao menos: luz ao
sul da tempestade.
Gladiador defunto
mas intacto
(Tanta violência,
mas tanta ternura)
Jogou-se contra um
mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes
fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se
além de seus tormentos
De monstros cegos
contra um só delfim,
Frágil porém
vidente, morto ao som
De vagas de verdade
e de loucura.
Bateu-se delicado e
fino, com
Tanta violência,
mas tanta ternura!
Cruel foi teu
triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto,
te adorava
Do fundo atroz à
superfície, altar
Doe seus deuses
solares – tanto amava
Teu torso cavalgado
de tortura!
Com que fervor
enfim te penetrou
No mergulho fatal
com que mostrou
Tanta violência,
mas tanta ternura!
Envoi
Senhor, que perdão
tem o meu amigo
Por tão clara aventura,
mas tão dura?
Não está mais
comigo. Nem contigo:
Tanta violência.
Mas tanta ternura. p.42-43
QUE FORÇA TÊM OS POEMAS DE FAUSTINO...
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