quinta-feira, 21 de março de 2019

EM DEFESA DO ÁLCOOL

Romeu Jobim (1927-2015)

Quando o conheci já se aposentara em seu Estado e fixara residência no Rio de Janeiro. Ali assinava o rodapé de um jornal e, junto ao Parlamento, se credenciara como jornalista político. Consta que, perante o último, também auferia bom dinheiro, escrevendo discursos para Deputados e Senadores.
Seus artigos, além da correção da forma e da elegância do estilo, se caracterizavam pelo ímpeto demolidor. Dele, por certo, não se poderia dizer que, incendiário, se tornara bombeiro. Natural do Amazonas, seus trabalhos literários (era autor de alguns livros sobre a região) ou puramente jornalísticos, segundo um contemporâneo, tinham a força do Rio-Mar.
Era na oratória, contudo, que alcançava os píncaros mais ousados, fosse qual fosse o assunto ou ocasião. Bastava dar-lhe a palavra. Só o ouvi uma vez, confesso. Foi o suficiente, no entanto, para verificar que excedia a lenda. Casava-se a cabocla Nazaré, agregada à família de amigo comum. Não sei se, em cerimônias nupciais, já se disseram coisas tão bonitas.
Li dois de seus livros. A crítica atual os acharia enfáticos e ricos de adjetivos. Mas a verdade é que neles, em linguagem sublime da melhor categoria, encontrei as páginas talvez mais arrebatadoras que já se escreveram sobre a Amazônia. Conseguiu pôr efetivamente nelas toda a complexidade e estranha beleza do Grande Vale.
Em certa fase da vida foi também, segundo seus conterrâneos, um tremendo boêmio, tomando pileques históricos, tais as que aprontou e disse, em discursos memoráveis, sob o efeito da bebida. Terá sido por esse tempo que andou em Rio Branco, deparando-se-lhe, no exílio acreano que se impôs, outro expoente da intelectualidade e da oratória.
Os torneios então travados entre os dois, contaram-me algumas testemunhas, foram o que de mais expressivo já produziu o humano engenho. Se um representava a culminância das montanhas, natural de Minas, o outro era a própria grande planiciária da Hileia. Nas solenidades respeitavam-se: só um dos dois falava, revezando-se. No dia a dia, contudo, e sob o efeito das libações, o confronto era inevitável.
O que mais o singularizava, por ocasião de seus discursos, era a imprevisibilidade, ninguém tendo condições de lhes adivinhar o desdobramento, improvisados ao sabor das circunstâncias. Nunca ia, contudo, além das palavras. Capaz de conduzir multidões aonde quisesse, só as levava ao arrebatamento estético.
Mas o que pretendo narrar, os informes acima não passando de introdução, foi o que aprontou, certa feita, em um congresso contra o álcool, promovido por luminares da Ciência Médica. Deu-se o episódio numa época em que se achava em perfeita e total comunhão com Baco. Nem terá sido por outro motivo que não representava seu Estado no conclave.
Acontece que lá compareceu por conta própria e, antes do encerramento das reuniões, até então revestidas de pleno êxito, pediu a palavra. Queria, com a aquiescência dos congressistas, tecer considerações em defesa do grande réu: o Álcool. Aqueles o desconheciam e a pretensão lhe foi negada, sob o fundamento de tratar-se de um encontro de técnicos.
Insistiu, argumentando que, perante um certame daquela magnitude, havia necessidade de uma discordância, pelo menos simbólica, ao coro de condenações. Afinal de contas, até o mais reles dos bandidos era reconhecido o direito de defesa. Porque o Álcool era o mais reles dos bandidos, decidiu a presidência que o deixaria falar, mas se fosse médico. Provou que era e pôde pronunciar-se.
Foi aí que algo assim como um furacão na floresta ou o fenômeno da pororoca nos grandes rios aconteceu. Subiu à tribuna e, para uma assembleia estupefata, produziu a mais erudita e empolgante conferência em defesa do Álcool que já se pôde conceber, ao término aplaudido de pé e em delírio por todos, inclusive pela mesa diretora dos trabalhos.
É evidente que o congresso não teve condições de prosseguir. Em contrapartida, o orador foi carregado em triunfo e o réu grandemente festejado e servido, sob a forma de drinques, pelos bares da redondeza.


JOBIM, Romeu. Boa tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.111-112

ROMEU BARBOSA JOBIM nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de 1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro, fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de 2015. Publicou: Justiça: Humor Forense; Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.

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