quarta-feira, 25 de março de 2020

12 OBRAS FUNDAMENTAIS SOBRE A NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

História em rede

Durante muito tempo, a historiografia se limitou a encarar as populações indígenas como vítimas passivas ou meros espectadores de situações que os envolviam diretamente. Quando muito, reagiam à interferência e aos agravos da sociedade envolvente, mas nunca dispondo de estratégias de ação conscientes. Os índios, concebidos como uma categoria genérica, sem qualquer consideração às diferenças étnicas e culturais, não eram vistos, portanto, como sujeitos históricos ativos e capazes de incidir sobre a realidade nas quais se inseriam. Esse quadro começou a mudar a partir da emergência de uma nova compreensão histórica a respeito dos povos nativos. A “Nova História Indígena”, como viria a ser chamada, teria como principal objetivo redimensionar o papel dos índios na História, recuperando o protagonismo dos mesmos.

No que se refere ao surgimento deste novo viés, dois pontos fundamentais devem ser considerados. O primeiro está relacionado à aproximação entre a História e a Antropologia: cada vez mais intensa desde fins da década de 1970, o diálogo entre elas incidiu significativamente sobre essa perspectiva, uma vez que a combinação de renovados pressupostos teórico-metodológicos das duas disciplinas expandiria significativamente os horizontes de análise histórica. Nesse sentido, a compreensão tanto da cultura, quanto da identidade étnica como produtos históricos, somada a uma maior atenção da História às vivências e experiências das pessoas comuns, com grande influência da história social inglesa, foram decisivas. Tal confluência possibilitou um olhar sobre os índios que contempla tanto a sua diversidade étnica e cultural, quanto o papel de sujeitos de sua própria história. Além disso, a questão indígena na contemporaneidade também influenciou essa nova reflexão. O crescimento demográfico das populações nativas e a atuação cada vez maior dos movimentos indígenas na segunda metade do século XX contrariavam veementemente o discurso de desaparecimento e extinção. No Brasil, a atuação do movimento a partir da década de 1970 reflete-se nos direitos obtidos através da Constituição de 1988. Dessa maneira, novas observações sobre o passado puderam ser pensadas a partir de questionamentos do presente.

1) CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

No que diz respeito à emergência de uma nova compreensão histórica dos povos nativos, o livro organizado por Manuela Carneiro da Cunha, “História dos Índios no Brasil”, é de suma importância. Publicado em 1992, o livro contou com artigos de diversos especialistas no assunto, contemplando variados aspectos ao longo do espaço e do tempo. Esse trabalho teve papel fundamental ao apresentar e sistematizar de forma clara e objetiva uma nova postura – que já vinha sendo esboçada nos anos anteriores – em relação aos índios, reconhecendo os mesmos enquanto agentes históricos. Propondo a inclusão dos índios na historiografia e rompendo com uma visão tradicional que enfatizava a passividade dos povos indígenas frente aos processos de Conquista e expansão empreendidos pelos europeus, a coletânea representou um marco quanto ao assunto, tendo inspirado diversos estudos específicos nesta mesma linha e contribuído decisivamente para difundir a referida perspectiva.

2) FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

Com o foco no processo de colonização da região amazônica, Farage realiza um excelente trabalho ao situar o Rio Branco nas intensas disputas territoriais que envolveram portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses. Contudo, o grande mérito da autora é considerar o papel e a participação dos indígenas entre os diferentes agentes sociais envolvidos na contenda. Em particular, convém destacar que o estudo de Farage foi inovador ao demonstrar que a aplicação do Diretório, legislação que equiparou juridicamente os indígenas aos demais súditos portugueses, foi diretamente influenciada pela ação dos índios. Com a atenção voltada para as comunidades indígenas de fronteira no norte da América portuguesa, a autora ressalta que a transferência destas comunidades para compor núcleos populacionais previstos pela lei, que iriam compor verdadeiras muralhas nesta região de fronteira, dependia da negociação com os grupos locais na figura das lideranças indígenas. Dessa forma, Farage, considerando o protagonismo indígena, revela que a dinâmica de aplicação não se resumiu ao que as autoridades metropolitanas almejavam, mas também aos interesses dos próprios indígenas.

3) MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Dentre os trabalhos publicados na década de 1990 que renovaram os estudos a respeito da História Indígena e que a abordaram a partir de recortes específicos, há de se destacar este grande estudo de John Monteiro. Em tal obra, que se tornou rapidamente uma importante referência, o autor atenta de forma pioneira para a articulação entre as bandeiras e a produção agrícola de São Paulo, pontuando que era a mão de obra escrava indígena, adquirida através dos apresamentos, das guerras movidas contra os nativos e também dos descimentos, que viabilizava a agricultura paulista. A contribuição mais importante de seu livro, porém, é o destaque dado ao processo de inserção dos indígenas na sociedade paulista, que variou da escravidão à condição de índios administrados. Ao fazer isso, John Monteiro deixou claro que os índios foram parte fundamental da formação sociocultural de São Paulo.

4) VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Nesta célebre obra de Ronaldo Vainfas, o diálogo com uma perspectiva que prima pelos intercâmbios culturais se faz evidente. Ao analisar o movimento religioso da Santidade de Jaguaripe, ocorrida na Bahia da segunda metade do século XVI, o autor atenta para a clara mistura entre os rituais nativos e os elementos do catolicismo reconstruídos à luz do colonialismo, denotando, então, o hibridismo cultural característico da Santidade, que contava com o apoio de um senhor de engenho local. Indo além, Vainfas chama a atenção para a notável circularidade referente às crenças de tal movimento, que contou com a adesão não apenas de índios, mas igualmente de mamelucos, negros e até de brancos, tendo incidido significativamente sobre a religiosidade popular do Recôncavo baiano quinhentista. Destacando também a fluidez das fronteiras culturais nesse contexto, que coincidia com a fluidez da própria colonização, Vainfas tem ainda o grande mérito de recuperar o caráter de resistência de tal movimento, uma vez que a Santidade de Jaguaripe representava a busca por uma identidade indígena que, paulatinamente, via-se atacada pelo avanço da colonização portuguesa.

5) ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

Em relação ao período colonial, um aspecto que mereceu grande destaque da Nova História Indígena diz respeito aos aldeamentos. Inserida nesta vertente historiográfica, Maria Regina Celestino de Almeida trouxe à tona uma perspectiva que foi um verdadeiro marco na abordagem a respeito dos aldeamentos indígenas. Reconhecendo os índios enquanto sujeitos históricos, Almeida ressaltou que as aldeias, para além de atender aos interesses e às expectativas da Coroa, dos missionários ou dos colonos, também tiveram um relevante significado para os índios. Recorrendo ao conceito de territorialização, inicialmente utilizado por João Pacheco de Oliveira e que é crucial em “Metamorfoses Indígenas”, Almeida destaca que os aldeamentos foram apropriados pelos índios como um espaço de proteção e de sobrevivência, evidenciando a participação ativa dos mesmos. Indo além, a autora reflete sobre a importância que os aldeamentos assumiram para os índios no contexto da colonização, concluindo que, diante de um mundo colonial que se construía de forma cada vez mais hostil em relação aos indígenas que não eram aliados dos portugueses, tais espaços representavam um “mal menor”, já que na condição de aldeados eles ao menos estariam livres da escravidão e garantiam acesso a alguns direitos, como o da terra coletiva. Assim sendo, mais do que um local de imposição e de aculturação, os aldeamentos constituíram importantes espaços de socialização, de modo que, ao reunir diferentes indivíduos e etnias que se misturaram no seu interior, elas propiciaram a rearticulação étnica, cultural e social dos índios aldeados. Partindo desta linha de raciocínio, a autora pondera que, em longo prazo, a vivência compartilhada no interior desses aldeamentos conduziu a um sentimento de pertença comum e de solidariedade entre os índios que lá viviam.

6) POMPA, Cristina. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru: Edusc, 2003.

Criticando a dicotomia que opõe de um lado a imposição dos missionários e de outro, os índios, vistos como um conjunto homogêneo e passivo, Cristina Pompa defende a perspectiva de que o processo de evangelização na América portuguesa levado a cabo nos aldeamentos foi, antes de tudo, fruto da mediação constante entre os religiosos e os próprios indígenas. Isso resultou, segundo Pompa, em traduções mútuas, influindo diretamente tanto sobre a ação missionária – que passou a se preocupar em adaptar e traduzir o cristianismo para a linguagem nativa, convertendo os ensinamentos e símbolos cristãos de acordo com as concepções e os mitos indígenas – quanto sobre a recepção dos nativos a essa evangelização, que em muitos casos aceitaram essas traduções, mas apreendiam as mesmas à sua maneira e dentro de seus próprios termos. Com este ponto de vista, a autora permite perceber as interações religiosas como um processo dinâmico no qual o indivíduo, mais do que simplesmente assimilar uma dada cultura ou crença, a interpreta e a reconstrói mediante os seus próprios valores e referenciais. Assim, ao considerar as múltiplas e diferentes traduções propiciadas a partir dos intercâmbios culturais e religiosos, Cristina Pompa recuperou o protagonismo indígena neste processo, evidenciando a existência de uma interação dialógica e passível de adaptações no interior dos aldeamentos.

7) CORRÊA, Luís Rafael Araújo. Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

O autor recupera a vida do índio Miguel Pestana, condenado pela Inquisição portuguesa sob a acusação de feitiçaria na primeira metade do século XVIII. Utilizando a trajetória de Pestana como fio condutor, Corrêa analisa a formação religiosa deste indivíduo, que viveu boa parte de sua vida na aldeia jesuítica de Reritiba, no Espírito Santo. Atento à complexa relação mantida entre missionários e índios aldeados, o historiador ressalta as diversas interações sociais tecidas por Miguel Pestana com o mundo colonial, fato que leva o índio a questionar a disciplina regrada dos jesuítas e a ter contato com diversas práticas mágico-religiosas desviantes. A relação conturbada com os padres motiva Miguel a fugir de Reritiba e rumar para o Rio de Janeiro, onde transforma a sua vida: nas freguesias do Recôncavo da Guanabara, o índio ganha a confiança dos senhores locais e torna-se capitão do mato, alcançando uma posição social diferenciada em meio à hierarquia colonial. Em sua vida cotidiana, porém, as erronias perante à Igreja Católica se aprofundam: ele torna-se um afamado usuário de bolsas de mandinga, vendendo artigos mágicos aos que procuravam por sorte e proteção. Contudo, tendo atraído mais atenção do que devia, acaba preso pela Inquisição. Remontando o julgamento do índio, o autor traz à tona os meandros do processo e as insistentes estratégias do réu a fim de evitar sua condenação. Além de refletir sobre diversos aspectos pertinentes à religiosidade e à história indígena, a obra reflete a respeito da ação inquisitorial em relação aos indígenas, tema pouco estudado até hoje.

8) DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do séc. XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000.

Nesta obra, Domingues analisa a sociedade resultante na região amazônica a partir da aplicação do Diretório dos Índios. A legislação, de claro cunho assimilacionista e que visava integrar os índios como súditos indistintos aos demais, era parte do projeto que a administração pombalina tinha em relação à Amazônia. Analisando os desdobramentos da mesma, a autora teve um papel importante ao destacar que as pretensões metropolitanas e a realidade nem sempre caminharam juntas. E este descompasso devia-se em grande parte à atuação dos próprios indígenas, que ao invés de meros objetos da dita política, incidiram diretamente sobre os seus rumos ao participarem da administração das vilas de índios criadas para civilizar os nativos ou por resistirem aos pressupostos assimilacionistas.

9) SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.

O livro de Fernanda Sposito tem o grande mérito de refletir sobre um período que só recentemente vem recebendo maior atenção da Nova História Indígena: o Brasil Império. Ao analisar a política indigenista imperial, a autora relaciona com argúcia como ela foi construída dentro de um contexto no qual o próprio Estado e a nação brasileira estavam em formação. Ainda do ponto de vista político, Sposito contribui para a discussão em torno da cidadania no período imperial, atentando para o fato de que a Constituição de 1824 não fez menção aos índios em momento algum do texto, negando qualquer direito aos mesmos. Se por um lado os índios foram excluídos de participar dos rumos do país recém-independente, fazendo justiça ao título do livro, por outro não puderam ser apagados da História: tomando como exemplo os conflitos motivados pelo avanço das fronteiras da província de São Paulo em direção aos territórios indígenas do interior, a autora demonstra a ação e resistência dos índios neste contexto, deixando claro então que eles eram agentes sociais relevantes.

10) MATTOS, Izabel Missagia de. Civilização e Revolta: os Botocudos e a catequese na Província de Minas. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

Amparada em uma farta e rica documentação, a autora realiza um excelente trabalho ao recuperar a história dos diferentes grupos indígenas que foram genericamente denominados botocudos pelos colonizadores. Concentrados principalmente em Minas Gerais, estas populações foram atingidas pela marcha civilizadora imposta tanto pela política colonial, quanto pela imperial, tendo sido a última ainda mais intensa. Interessada particularmente pela realidade vivida por estas populações no século XIX, a autora demonstra habilmente como as intervenções promovidas pelos governos provincial e imperial resultaram na sujeição e na desterritorialização dos índios. Diretamente atingidos pelo Regulamento das Missões (1845), pela Lei de Terras (1850) e pela Companhia do Mucuri, órgão provincial responsável pelas ações empreendidas em relação aos índios, Mattos demonstra os múltiplos processos de mestiçagem vivenciados pelos botocudos no interior dos aldeamentos dirigidos pelos missionários capuchinhos. No entanto, ao trazer à tona a revolta indígena ocorrida no aldeamento de Itambacuri em 1893, a autora denota de forma acurada que este processo complexo e violento não anulou a atuação dos índios em prol de seus interesses.

11) WITTMANN, Luísa Tombini. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

A partir do século XIX, o avanço da propriedade privada sobre as terras indígenas ganha contornos cada vez mais dramáticos e violentos no Brasil. E no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, esta situação foi particularmente intensa. Focando sua análise nos índios Xokleng que viviam em tal região, Wittmann realiza um trabalho muito competente ao trazer à tona os conflitos que se deram entre os indígenas e os imigrantes alemães, que chegaram ao local com o apoio do governo imperial. Consideradas devolutas apesar da ocupação indígena ancestral, as terras do Vale do Itajaí foram palco de forte perseguição aos Xokleng, considerados pelo governo da província catarinense e pela imprensa local como selvagens ou um entrave para a modernidade. Para além do conflito, a autora contribuiu de forma decisiva ao recuperar a trajetória de indígenas que viveram nesta realidade e tiveram suas vidas reviradas. Transcendendo os marcos do período imperial, Wittmann analisa ainda a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), já na Primeira República, em relação aos Xokleng, contemplando uma época ainda pouco estudada pela historiografia. Por fim, a obra tem grande valor ao retirar da invisibilidade os índios Xokleng, dando o devido lugar que possuem na História.

12) VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Ainda pouquíssimo explorado pela História Indígena, o período em que vigorou a ditadura cívico-militar é abordado por Rubens Valente em sua obra. Recuperando o contexto da época, o autor articula uma volumosa documentação oficial referente à política indigenista com depoimentos de índios. Destacando a atuação dos diferentes agentes da política levada a cabo pelo governo brasileiro em relação aos indígenas, o que incluía militares, missionários e servidores da Funai, Valente evidencia a violência sofrida pelas populações nativas e a resistência indígena em mais um capítulo dramático de suas histórias.

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