Jorge Araken Filho
(Toca a campainha em uma pequena casa no Engenho de Dentro, bairro de classe média, um recanto especial, quase uma viagem ao Rio antigo, um pequeno paraíso urbano, repleto de construções dos séculos XVIII e XIX, algumas bem preservadas, a maioria em ruínas. Era o Carteiro à porta. Corria o ano de 1995.):
— Bom dia, Casemiro! Tenho uma carta registrada, com aviso de recebimento, oriunda de Lisboa, Portugal, para você. Só recebe Cartas do exterior, ultimamente, hein?! Pelo jeito, tá podendo...
— Que nada, Seu João! É um tio que tenho em Portugal. Eu sequer sabia da sua existência, até que o meu pai entrou em contato com ele alguns meses antes de morrer.
— Parente é parente, Casemiro! Ruim com eles, pior sem eles... Mas você ainda é muito jovem para entender o que estou dizendo. Só espero que não venha a compreender tarde demais... Não leve a mal as minhas palavras sem sentido; sou apenas um velho caduco. Aliás, eu me aposento daqui a um mês.
— Que boa notícia, Seu João! O senhor merece descansar.
— É verdade! Foram 45 anos de trabalho. Já passei até do tempo. Mas vou sentir saudade dessa vida agitada, das conversas e cafezinhos nas casas. Só no subúrbio, os carteiros têm esse tipo de intimidade com os moradores. Na zona sul, ao contrário daqui, só temos acesso aos porteiros, e mal. Ninguém nos oferece um cafezinho com bolo. No natal, então!... uma pobreza só. As madames não sabem que os carteiros existem. Acham que as cartas caem do céu. Viram o rosto, quando nos veem na rua. Aqui, não!... Tem gente boa, como você, Casemiro, que conversa e dá bom dia quando a gente passa; pessoas simples que sabem o nome do carteiro.
— Os ricos são assim mesmo, Seu João! Vivem com o rei na barriga, sempre insensíveis aos pobres e necessitados. Só nos toleram e, mesmo assim, por necessidade, quando andamos de cabeça baixa, mendicantes e servis, dando o sangue para que eles fiquem ainda mais ricos. O nosso consolo é que eles morrem e apodrecem exatamente como nós, os pobres: sem um puto no caixão... Já viu como é um caixão de rico, Seu João? É de madeira boa, ornado de flores perfumadas, mas o defunto serve de alimento aos vermes do mesmo jeito que nós...
— Você tem toda razão, meu jovem! O papo está muito bom, mas eu tenho muita encomenda hoje. Casemiro, por favor, anote o número da sua identidade e assine as duas vias.
— Obrigado, Seu João!
Enquanto fechava a porta, quase de forma maquinal, Casemiro fez uma pequena pausa no nome do remetente: “Antônio Gonçalves, Advogado”:
— Puta que o pariu! Advogado? Deve estar cobrando alguma dívida daquele tio filho da puta. Nunca deu notícia. Só apareceu na hora da morte do meu pai, como urubu atrás de carniça. Coitado desse Advogado! No mínimo levou um cano desse tio safado e está imaginando que ele se escondeu aqui no Brasil e, ainda por cima, na minha casa. Ou pode ser armação dos dois... Na certa já souberam da morte do meu pai e imaginam que ele me deixou alguma coisa de herança, além dessa casa velha no subúrbio. — Pensou, fechando o semblante.
Depois de alguns instantes de hesitação, decidiu rasgar a carta. Suas mãos apertaram-se em torno do envelope branco, com o timbre do Escritório de Advocacia. Mas a curiosidade o venceu, ao menos por alguns segundos. Ele abriu, com cuidado, o envelope, examinando-o contra a luz, para não destruir o seu misterioso conteúdo.
Dentro do envelope, dobrado de forma cuidadosa, havia uma Carta, escrita à mão, em letrinhas miúdas:
“Lisboa, 12 de agosto de 1995.
Senhor Casemiro Rodrigues de Moura:
Cumpro o doloroso dever de informar a Vossa Senhoria o falecimento, nesta Cidade de Lisboa, do Senhor José Rodrigues de Moura, irmão do vosso pai, Honório Rodrigues de Moura...”
Com o rosto crispado de ódio, quase colérico, ele interrompeu a leitura, arremessando a carta na pequena mesa de centro:
— Que tio que nada! Depois que o meu pai morreu, no ano passado, ele começou a me mandar cartas. Ainda bem que nunca li. É mais uma para o baú. Nunca teve a gentileza de visitar o meu pai ou de vir ao Brasil para me conhecer! Agora, que o cara morreu, vem esse advogado com conversa fiada: “Doloroso dever”?! Doloroso pra quem? Deve estar cobrando a grana do caixão. Ele que se foda! Já foi tarde... Bem que eu falei ao meu pai para não se comunicar com ele. Nunca se interessou por nós! Só na hora da morte é que se lembram dos parentes no Brasil? Só pode ser merda! Ninguém sai correndo atrás de você pela rua pra dar alguma coisa. Só pra cobrar...
A carta permaneceu no sofá por alguns dias, aguardando, serenamente, o destino que lhe seria reservado: o lixo ou o velho baú de memórias, onde já repousavam outras quatro Cartas do seu Tio José, enviadas nos meses que antecederam a sua morte em Lisboa. Uma semana depois, Casemiro resolve jogá-la no baú que herdara da mãe, já falecida. Outras cinco cartas, enviadas, depois, pelo Escritório do Advogado, tiveram o mesmo destino.
Aos trinta anos, Casemiro não tinha parentes vivos, ao menos que conhecesse. A sua vida era solitária, com raros momentos de alegria, dividindo-se entre o trabalho, numa pequena fábrica de tecidos, e a pequena casa que herdara do pai. Ele nunca teve amigos ou qualquer coisa parecida com uma vida social. Vivia deprimido em seu mundo de delírios e autopiedade.
(Passam-se vinte primaveras. Corria, agora, o ano de 2015. Envelhecido, com o rosto enrugado, Casemiro está em casa, largado no velho sofá.):
— Finalmente, depois de tantos anos de covardia e medo, tomei a decisão mais importante da minha vida: estou pronto para morrer! — Ele diz a si mesmo, em voz alta, esperando, talvez, a confirmação piedosa do seu próprio inconsciente.
Num movimento brusco, ele se levantou do sofá, decidido a comprar veneno de rato, o meio mais inteligente que encontrou para encerrar os seus tormentos. Não queria que fosse rápido demais, a ponto de impedi-lo de repassar o filme da sua existência, nem lento demais, a ponto de lhe conceder o tempo necessário para adiar o destino desejado. — Veneno é ótimo! — Disse, resoluto.
Vestiu uma camisa vermelha e saiu apressado, temendo, talvez, que a súbita coragem se transformasse em medo da morte. O apego à vida pode ser forte, como o diamante, quando a morte se torna real e palpável, algo com cheiro e sabor. É ilusão desejar a morte e esperá-la carinhosa e doce... Quando o suspiro final deixa de ser um evento caótico, em um futuro incerto e distante, e se torna uma certeza do presente, uma singularidade que, por escolha própria, eu crio nas curvas do espaço-tempo, um buraco negro que me devora antes do tempo que traçara como meu destino, a vida se torna sedutora, estranhamente bela e cheia de recompensas invisíveis. O cheiro de carne apodrecida faz-nos reféns da existência. Morrer por vontade própria é mais difícil do que parece...
Já melancólico, perdendo o ímpeto inicial, ele pensa sobre a vida que deixara escapar por entre os dedos, em algum ponto obscuro do caminho. Não que se considerasse um santo injustiçado, um ser humano bondoso que sofreu nas mãos do destino — pelo menos, não mais. Esse tempo da sua imaturidade já cessara.
Nos últimos meses, deprimido e em crise existencial, com o sentimento de culpa minando o seu ego diminuído, ele começou a se considerar responsável por tudo que passara na vida. Sabia, porém, que muitas dessas decisões — que tomou no passado — foram definitivas em suas consequências, pois criaram a sua própria dinâmica, depois que ele, com alguma atitude imatura, ativou a reação em cadeia que o levou ao ponto do espaço-tempo em que estava aprisionado nesta fase da vida.
— O que eu mudaria se pudesse voltar à infância? — É o que ele se indagava nesse ponto em que a vida, lentamente, se consumia na depressão! Os pensamentos viajam ao sabor dos ventos, buscando, nas correntes de ar mais quentes, a lufada de maturidade que pudesse elevá-lo à existência idílica, de grandes feitos, que imaginava na adolescência. Acabou sonhando a vida sem viver os sonhos! Para ser sincero, ele não sabia dizer se algo realmente mudara com a crise existencial, ou se apenas se tornara consciente de uma realidade opressiva que não conseguia mais modificar.
Depois que perdeu a capacidade de tecer os fios invisíveis da ilusão, a única certeza que ainda sobrevivia à depressão e à melancolia, diante de tantas que abandonara, era sobre o desejo de renunciar à vida.
Reduzida a sua existência a alguns pontos no tempo, ele podia apontar os raros instantes em que fora ele mesmo a resposta aos seus dilemas. Na maior parte do percurso, aceitou — anestesiado — a resposta que o mundo lhe dera; caminhou por sendas invisíveis que não traçara; deixou que a ilusão o carregasse pelos braços; fechou os olhos ao tempo que passava ligeiro, sempre iludido com os anos que ainda lhe restavam para mudar o destino.
Apesar de tudo, o tempo correu inclemente — com passos leves e distraídos —, mostrando-se arredio à autopiedade que o seu ego, crispado de dor, construíra como defesa contra a realidade. Os segundos dissolveram-se em minutos; os minutos, em horas; as horas tornaram-se dias; os dias escorreram em meses; os meses, em anos; e as décadas foram se sucedendo, tornando-se memórias nostálgicas dos dias vividos na escuridão. Arrependia-se mais dos silêncios e omissões covardes do que das ações e reações instintivas; lamentava o que deixara de fazer pelo simples medo de fracassar, as palavras que não dissera e os gestos que ficaram presos na renúncia...
Distraído com os urubus que chafurdavam no lixo, Casemiro sentia, no fundo da alma, que algo andava muito errado em sua cabeça: um ser que se fantasiava de humano, mas não conseguia apontar, em sua personalidade, cinco traços de se orgulhasse, verdadeiramente; um pobre diabo que se abandonara no deserto, para ser devorado pelos abutres, e não tinha vontade de procurar o oásis da sua própria redenção. Alguém assim, tão amargurado e melancólico, cáustico e pessimista, só poderia estar doente. Ele bem o sabia, tinha consciência de que algo terrível permanecia submerso em sua mente atormentada. Mas, por algum motivo oculto e reprimido, ele não buscava tratamento. Era como se desejasse rasgar com gilete a sua pele já ferida. Não queria ser curado... Acho que só a necrose do tecido o seduzia...
Agora, refazendo com a mente os caminhos que escolhera trilhar; olhando com a razão o que a busca inútil do prazer não lhe permitira ver, ele percebeu que a vida passara por ele em algum ponto da estrada. Cruzaram-se — cabisbaixos, talvez — nos instantes de contemplação narcísica do espelho, nos momentos em que mirava os seus próprios pés ou, ainda pior, enquanto se buscava nas pessoas que percorriam a estrada no sentido oposto. Tantas vezes se deteve com elas, tantas vezes se projetou em seres humanos banais e pequenos, que sempre acabou retornando a um ponto anterior da trilha, a um lugar qualquer, estranhamente parecido com as suas vivências do passado. Na sua mente acorrentada e nostálgica permanecia, apenas, a sensação das experiências dolorosas que se repetiam todos os dias, como o "replay" maldito de uma cena impregnada de sofrimento, que a memória não já sabia distinguir entre passado e presente. No meio desse "déjà vu" melancólico, indiferente à sua cegueira existencial, a vida costumava repetir o passado. Ele já assistira a esse filme... Por mais que criasse ilusões idílicas de felicidade, o final nunca mudava: era uma tragédia.
As recordações, agora mais reais do que nunca, congelaram-se no passado nostálgico, transformando em dor o presente e contaminando, com lufadas depressivas, o caminho a ser trilhado.
Lembrava-se dos sonhos da adolescência e juventude, do que abdicara por escolha própria, enquanto acusava o mundo das suas próprias renúncias:
— Faço, hoje, cinquenta anos! O que eu tenho para comemorar? Só a coragem de tomar a decisão definitiva, a solução final para o meu fracasso existencial: não sou nada, não tenho nada a perder, nem ninguém para prantear a minha morte sem glória! Não farei falta nesse mundo! Sequer perceberão que abandonei a vida num dia de outono... Trágica ironia! O meu corpo queimará por dentro, como uma chama sedenta, que busca o derradeiro átomo de oxigênio; o veneno me fará agonizar, até o suspiro final, quando a respiração se tornará rápida e opressiva. A espuma e o sangue escorrerão pelo canto da boca. — Ele pensava, mirando o chão a cada passo do seu corpo letárgico.
Enquanto caminha pelas ruas do Engenho de Dentro, onde vivera desde o nascimento, Casemiro mergulha na melancolia depressiva, desfazendo, lentamente, as memórias do tempo perdido:
— O que eu fiz de bom, nessa vida? Na infância, sonhei que seria um grande cientista, rico e famoso por suas descobertas notáveis. Na adolescência, já me contentava em ser advogado. Acabei numa pequena fábrica... E o pior é que não consigo mais culpar o meu pai pelo destino que eu mesmo criei. Tá certo, ele foi uma merda de pai! Mas eu também não fui o filho que imaginava ser. Tive até chance de ser advogado, mas parei de estudar. Fui renunciando, pouco a pouco, a todos os sonhos. Com o passar do tempo, apenas sonhava a vida, ao invés de viver os sonhos.
Absorto em seus delírios, Casemiro passa por uma loja de celulares:
— Que porra de vida! Depois de trinta anos me matando naquela fábrica, ela vai à falência e os donos ainda somem com o dinheiro. Todo mundo de smartphone, e eu aqui, sem nada. Nem a grana do FGTS eles depositaram... Tô ferrado! Mas ainda tenho alguns Reais no bolso. Ainda bem que morrer é barato... O enterro não é comigo... Foda-se quem se incomodar com o meu corpo apodrecendo!
De repente, ele se dá conta de que não sabe onde encontrar veneno de rato:
— Espera aí! Onde eu compro essa porra? Em supermercado deve ter... Nunca morri antes nem matei ratos. Deveria ser mais fácil encontrar essas coisas... Você quer se matar, toma a decisão mais difícil da sua vida, justamente a de extingui-la, e ainda tem que ficar procurando veneno? Isso é cruel demais! Deveriam facilitar o nosso trabalho... — Ele balbuciava para si mesmo.
Mergulhando, novamente, em suas memórias, ele começa a pensar nos raros amores que tivera na vida:
— Um cara que permaneceu virgem por 25 anos deve ter algo muito errado na cabeça! Passei a vida me buscando nas mulheres que cruzaram os meus caminhos, como a metade podre de uma laranja que busca a sua metade sadia, mas sempre acabei prisioneiro da ilusão de que era amado. Só tarde demais descobria que a outra metade era tão podre quanto eu...
Ele chega ao maior Supermercado do bairro. Depois de percorrer alguns corredores, finalmente encontra o setor dos venenos. Escolhe um ao acaso, e fica satisfeito, quando vê a imagem de uma caveira na embalagem:
— Que bom! Esse deve matar rápido. Com essa caveira na caixa, deve ser ótimo. “Isca de alta atratividade e palatabilidade”. — Ele lê na embalagem. — Esse é dos bons! Já me atraiu e ainda é gostoso... Levarei três caixas, para agir mais rápido. — Um sorriso diabólico ilumina o seu rosto. Ele conta o dinheiro, para saber se tem o suficiente.
No caminho de casa, vai observando cada esquina, cada ponto da vidinha sem graça que teve nos últimos 50 anos, o tempo que viveu no Engenho de Dentro:
— Esse filho da puta nunca mais irá me ver! — Ele murmura, ao ver o português da padaria. De repente, cruza com a Dona Alzira, a fofoqueira do bairro:
— E aí, Casemiro? Você não trabalha mais não?
— Estou matando ratos...
— Mate os lá de casa também! — Ela afirma, com uma sonora gargalhada.
Retomando os últimos passos da sua vida, Casemiro observa as crianças na rua, soltado pipa:
— Tenho pena dessas crianças! A vida toda pela frente. Eu é que sou feliz. A minha existência, em breve, se tornará apenas um punhado de ossos e cabelos, enterrados em um cemitério qualquer da Cidade e esquecidos pelos vivos. Tudo o que sofri, eles ainda irão sofrer. Pobres diabos! Tantos suplícios por viver...
Finalmente em casa, ele tranca a porta e prepara o veneno. Para se certificar do resultado, ele lê atentamente as instruções:
— Quer dizer que demora de dois a sete dias? Puta que o pariu! Vou passar sete dias morrendo? E de hemorragia? Caralho! Coragem, Casemiro! Pior do que passar sete dias morrendo seria passar mais vinte ou trinta anos vivendo... Já sei... Tomarei as três caixas de uma vez, para fazer efeito mais rápido.
Ele faz um suco com o veneno, tomando-o de uma só vez:
— Saúde! E não é que é gostoso mesmo?! “Alta palatabilidade”... Há, há, há... — Ele diz, com uma gargalhada convulsiva, após a última gota de veneno percorrer a sua garganta. — Agora é só esperar! Mas vou tomar banho antes. Quero morrer limpo.
Algumas horas depois, já vestindo o terno do enterro, com uma gravata cor de rosa e florida, Casemiro começa a sentir os efeitos do veneno. Para se distrair — a espera da morte é angustiante —, ele abre o velho baú, lançando ao chão o seu conteúdo. Lá estavam alguns bibelôs, herdados da mãe, e velhos livros do seu pai. No meio deles, revê as Cartas do passado. Curioso, começa a ler a primeira que o Advogado lhe enviara vinte anos antes:
“Lisboa, 12 de agosto de 1995.
Senhor Casemiro Rodrigues de Moura:
Cumpro o doloroso dever de informar a Vossa Senhoria o falecimento, nesta Cidade de Lisboa, do Senhor José Rodrigues de Moura, irmão do vosso pai, Honório Rodrigues de Moura.
Em seu leito de morte, o Senhor José Rodrigues, com quem mantive amizade por mais de vinte anos, chamou-me para redigir um Testamento e comunicar as suas disposições de última vontade, rogando-me que fossem cumpridas logo após o sepultamento, que ocorreu ontem, no Cemitério dos Prazeres, na parte ocidental de Lisboa, na Freguesia da Estrela.
A primeira deliberação do Testamento é no sentido de que Vossa Senhoria — seu único parente vivo — seja imediatamente comunicado da morte, acrescendo-se à missiva a informação de que fora somente há um ano, pouco antes, portanto, da morte do irmão, Honório Rodrigues de Moura, que o testador viera a saber da existência de um sobrinho, ainda vivo, no Brasil. A doença do vosso tio, que permaneceu internado por dois anos, impediu-o de viajar ao Brasil, para conhecer o único do seu sangue ainda com vida.
Quanto ao irmão Honório, disse o Senhor José Rodrigues, no leito de morte, que lamentava não ter sido informado, alguns anos antes, de que seu irmão vivia no Brasil. Depois que o vosso pai deixou Portugal, ainda na juventude, sem deixar endereço ou destino, os irmãos perderam contacto. Por sorte, o Senhor José transformou o antigo endereço da família em escritório, o que permitiu ao vosso pai localizá-lo alguns meses antes de falecer. Não chegaram a se ver, como era desejo de ambos, mas seu pai, pouco antes de morrer, pediu ao irmão que cuidasse do filho, Casemiro. A morte do vosso pai, no Brasil, foi comunicada ao irmão pelo Médico que acompanhou o tratamento do câncer.
Estando, também, doente, e em estágio terminal, o Senhor José não conseguiu viajar ao Brasil, para as cerimônias fúnebres do irmão, Honório Rodrigues, nem para realizar o sonho de conhecer o sobrinho. Enviou, contudo, algumas Cartas registradas, com aviso de recebimento, mas não obteve resposta, apesar de ter sido confirmado o efetivo recebimento por Vossa Senhoria.
O testamento foi devidamente registrado em Cartório, na Cidade de Lisboa, Portugal, sendo nomeado, como Executor, o Advogado Antônio Gonçalves, este que subscreve a presente missiva, profissional com Escritório na Capital portuguesa.
Entre ações ordinárias e preferenciais de dez Empresas, bens móveis e imóveis, contas bancárias, joias e fundos de investimentos, o Senhor José Rodrigues de Moura deixou, em Testamento, para Vossa Senhoria, na condição de único herdeiro, a quantia aproximada de novecentos milhões de dólares americanos...
Ele interrompe a leitura e solta um grito lancinante:
— Novecentos milhões de dólares? Por que eu não li essa maldita carta? Puta que o par...
Uma golfada de sangue o interrompe. A respiração torna-se pesada e difícil. Entre convulsões ritmadas, Casemiro cai sobre a mesa. Um último e profundo suspiro põe fim à sua vida. Pelo canto da boca, escorre uma espuma esbranquiçada que logo se torna vermelha. Seus olhos permanecem abertos...
F I M
Post Scriptum: a tela que ilustra o presente Conto é “O Suicida”, de Édouard Manet, impressionista francês que, nas suas obras, costumava visitar o realismo.
Nota: Leia outros textos do autor aqui:
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DOM HÉLDER CÂMARA
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