segunda-feira, 27 de julho de 2020

POEMAS DE CESAR VALLEJO

“A obra de um poeta da grandeza de Cesar Vallejo (1892-1938) só pode ser entendida na coerência e amplitude que fazem de sua vida e de sua obra uma só totalidade. Em sua íntima inteireza. Na variedade dos recursos formais que encontrou, para tratar temas tão diversos: a vida familiar (e dentro dela, centro dela, a permanente figura da Mãe), o amor, a terra, o trabalho, o tempo, o índio, mas também a necessidade de absoluto, a busca de sentido e o desamparo da condição humana. Poeta de uma raça, de um povo, de uma cultura, intérprete autêntico da alma peruana, Vallejo acima de tudo é o atormentado cantor do homem ferido pela ferocidade do mundo contemporâneo.” Thiago de Mello

Os Arautos Negros

 

Há golpes na vida, tão fortes... Eu não sei!

Golpes como do ódio de Deus; como se diante deles

a ressaca de todo o sofrimento

se empoçasse na alma... Eu não sei!

 

São poucos; mas são... Abrem fendas escuras

no rosto mais fero e no dorso mais forte.

Serão talvez os potros de bárbaros átilas;

ou os arautos negros que nos manda a Morte.

 

São as quedas profundas dos Cristos da alma,

de alguma fé adorável que o Destino blasfema.

Esses golpes sangrentos são as crepitações

de algum pão que se queima na boca do forno.

 

E o homem... Pobre... pobre! Volve os olhos, como

quando alguém bate as mãos por trás de nós;

vira os olhos loucos, e tudo que foi vivido

se empoça, como charco de culpa, no olhar.

Há golpes na vida tão fortes... Eu não sei! p. 39

 

 

O POETA À SUA AMADA

 

Amada, tu te crucificaste nesta noite

sobre os madeiros curvados de meu beijo;

e tua pena me disse que Jesus chorou

e que existe uma sexta-feira santa mais doce que esse beijo.

 

Nesta noite estranha em que tanto me olhaste,

a Morte esteve alegre e cantou em seus ossos.

Nesta noite de setembro celebrou-se

minha segunda queda e o mais humano beijo.

 

Amada, morreremos os dois juntos, muito juntos;

se secará aos poucos nossa excelsa amargura;

e nossos lábios defuntos tocarão a sombra

 

Já não haverá censuras em teus olhos benditos;

nem te ofenderei de novo. Numa sepultura

abraçados dormiremos, como duas crianças. p. 48-49

 

 

A CEIA MISERÁVEL

 

Até quando estaremos esperando o que

não nos é devido... E em que curva estiraremos

o nosso pobre joelho para sempre! Até quando

a cruz que nos sustenta não fechará as suas asas.

 

Até quando a Dúvida nos brindará brasões

pelo que padecemos... Já muito nos sentamos

à mesa, com a amargura de uma criança

que à meia noite chora de fome, desvelada...

 

E quando estaremos com os outros, na margem

de uma eterna manhã, ninguém sem pão.

Até quando este vale de lágrimas, ao qual

Nunca pedi que me trouxessem.

                                                   De bruços,

todo banhado em pranto, repito cabisbaixo

e vencido: até quando a ceia vai durar?

 

Existe alguém que bebeu demais e se burla

e aproxima e afasta de nós, como escura colher

de amarga essência humana, a sepultura...

                                              E sabe ainda menos

esse escuro até quando vai durar a ceia. p. 70

 

 

O TÁLAMO ETERNO

 

Amor é forte só quando se acaba.

E a tumba será uma grande pupila

em cujo fundo sobrevive e chora

essa angústia do amor, como num cálice

de doce eternidade e negra aurora.

 

Os lábios para o beijo já se encrespam

como algo cheio que transborda e morre;

e em conjunto crispante

cada boca renuncia em nome da outra

uma vida de vida agonizante.

 

E quando penso assim, é doce a tumba

onde todos enfim se compenetram

em u mesmo fragor;

é doce a sombra em que todos se abraçam

para um encontro universal de amor. p. 71-72

 

 

OS DADOS ETERNOS

 

Para Manuel González Prada, esta emoção bravia e seleta, uma das que, com mais entusiasmo, me aplaudiu

o grande mestre.

 

Deus meu, estou chorando o ser que vivo;

quanto me dói te haver tomado o pão;

mas este pobre barro pensativo

não fermenta uma crosta do teu flanco:

e tu não tens Marias que se vão.

 

Meu Deus, se tu tivesses sido um homem,

hoje saberias ser Deus;

tu, porém, que estiveste sempre bem,

nada mais sentes de tua criação.

Mas o homem, sim, te sofre: o Deus é ele!

 

Hoje que há chamas no meus olhos bruxos

como  nos de um condenado,

Deus meu, acenderás as tuas velas,

e jogaremos com o velho dado...

Talvez, oh jogador, lançada a sorte

do universo inteiro,

as olheiras da Morte surgirão

como dois azes fúnebres de lodo.

 

Deus meu, e nesta noite surda, escura,

não poderás jogar, porquanto a Terra

é um dado corroído e já redondo

de tanto haver rolado na aventura,

que já parar só pode num buraco,

no buraco de imensa sepultura. p. 74

 

 

OS ANÉIS FATIGADOS

 

Há ganas de voltar, de amar, de não ausentar-se

e ganas de morrer, combatido por duas

águas contrárias que jamais serão um istmo.

 

Desejos de um grande beijo que amortalhe a vida,

que acaba na África de uma agonia ardente,

suicida.

 

Desejos... de não ter desejos, Senhor;

eu te aponto com o meu dedo deicida:

vontade de não haver tido coração.

 

A primavera volta, volta e partirá. E Deus

curvado de tempo, se repete e passa, passa

carregando a espinha dorsal do universo.

 

Quando as têmporas tocam o seu lúgubre tambor,

quando me dói o sonho gravado no punhal,

dá vontade de ficar plantado neste verso. p. 74-75

 

 

CHUVA

 

Em Lima... Em Lima está chovendo

a água suja de uma dor

tão mortífera. Está chovendo

da goteira de teu amor.

 

Não finjas que estás dormindo,

recorda o teu trovador;

que eu já compreendo... compreendo

a humana equação do teu amor.

 

Estronda na mística música

a gema tempestuosa e pérfida,

o sortilégio do teu “sim”.

 

Mas cai, cai o aguaceiro

no ataúde do meu caminho,

onde viro osso para ti. p. 76

 

 

XLIX.

 

Murmurando de inquietude, atravesso,

com o traje longo de sentir, as segundas-feiras

                             da verdade.

Ninguém me busca nem me reconhece,

e até eu mesmo já me esqueci

                             de quem serei.

 

Certo guarda-roupa, só ele, nos conhece

a todos nas portas brancas

                              das partidas.

Esse guarda-roupa, somente ele,

ao voltar de cada facção,

                               de cada candelabro,

                               cego de nascimento.

 

Eu também não descubro ninguém, sob

este humus que iridesce as segundas-feiras

                              da razão;

e não faço mais que sorrir a cada ponta

das grades, na enlouquecida busca

do conhecido.

 

Bom guarda-roupa, abre-me

                               tuas brancas folhas;

quero reconhecer pelo menos o 1,

quero o ponto de apoio, quero

                            saber ao menos que estou.

 

Nos bastidores, onde nos vestimos,

não há, não há ninguém: nada mais do que portas

                              abertas de par em par.

E sempre as roupas caindo

sozinhas, de cabides,

como índices grotescos que assinalam,

e partindo sem corpos, vazias,

                             até o matiz mais prudente

de um grande caldo de asas com suas causas

e limites fritos.

E até o osso! p. 118-119

 

 

LVI

 

Todos os dias amanheço às cegas

a trabalhar para viver; e tomo o café-da-manhã,

sem provar uma só gota, todos os dias.

Sem saber se consegui, ou nunca mais,

algo que salta do sabor

ou é somente coração, e que, já de volta, lamentará

até onde isto é o de menos.

 

O menino cresceria cheio de felicidade

                                         oh! Auroras,

ante o pesar dos pais que não podem nos deixar

de arrancar de seus sonhos de amor a este mundo;

ante eles que, como Deus, de tanto amor

pretenderam-se até criadores

e nos amaram até nos fazer dano.

Franjas de invisível trama,

dentes que perfuram desde a neutra emoção,

                                   pilares

livres de base e coroação,

na grande boca que perdeu a fala.

 

Fósforo e fósforo na escuridão,

lágrimas e lágrima na nuvem de poeira. p. 123-124

 

 

HOJE EU GOSTO DA VIDA MUITO MENOS...

 

Hoje eu gosto da vida muito menos,

mas ainda gosto sempre de viver: eu já dizia.

Quase toquei a parte de meu todo e me contive

com um tiro na língua atrás de minha palavra.

 

Hoje me apalpo o queixo em retirada

e nestas momentâneas calças eu me digo:

tanta vida e jamais!

Tantos anos e sempre minhas semanas!

Enterrados meus pais com sua pedra

e seu triste estirão que não se acaba;

irmãos de corpo inteiro, meus irmãos,

e enfim meu ser de pé, e de colete.

 

Gosto imensamente da vida,

mas, está claro,

com minha morte querida e meu café

e vendo as castanheiras frondosas de Paris

e dizendo:

Este é um olho, aquele também; esta é uma fronte, e aquela... E repetindo:

Tanta vida e jamais me falha a canção!

Tantos anos e sempre e sempre e sempre!

 

Disse colete, disse

tudo, parte, ânsia, disse quase, para não chorar.

De verdade sofri naquele hospital que fica ao lado

e está bem e está mal haver olhado

de baixo para cima meu organismo.

 

Sempre gostarei de viver, ainda que de barriga,

porque, como ia dizendo e me torno a dizer,

tanta vida e jamais! E tantos anos,

e sempre, muito sempre, sempre sempre! p. 178

 

 

OS NOVE MONSTROS

 

E, desgraçadamente,

a dor cresce no mundo a cada instante,

cresce a trinta minutos por segundo, passo a passo,

e a natureza da dor é a dor duas vezes

e a condição do martírio, carnívoro, voraz,

é a dor duas vezes

e a função de erva puríssima, a dor

duas vezes

e o bem de ser, nos doer duplamente.

 

Jamais, homens humanos,

houve tanta dor no peito, na lapela, na carteira,

no copo, no açougue, na aritmética!

Jamais tanto carinho doloroso,

jamais tão perto o longe malferiu,

nunca o fogo jamais

fez tão bem seu papel de frio morto!

Jamais, senhor ministro da saúde, foi a saúde

mais mortal

e a enxaqueca tirou tanta fronte da fronte!

E o móvel teve, em sua gaveta dor,

o coração, na sua gaveta, dor,

a lagartixa, na gaveta, dor.

 

Cresce o infortúnio, irmãos homens,

mais veloz do que a máquina, dez máquinas, e cresce

com a besta de Rousseau, com nossas barbas;

cresce o mal por razões que não sabemos

e é uma inundação com próprios líquidos,

com barro próprio e própria nuvem sólida!

O sofrimento inverte posições, dá espetáculo

no qual o humor aquoso é vertical

ao pavimento,

o olho é visto e esta orelha é ouvida,

e esta orelha dá nove campanadas na hora

do raio, e nove gargalhadas

na hora do trigo, e nove sons fêmeas

na hora do pranto, e nove cânticos

na hora da fome e nove trovões

e nove látegos, menos um grito.

 

A dor nos agarra, irmãos homens,

por detrás, de perfil,

e nos entoca nos cinemas,

nos crava nos gramofones,

nos descrava dos leitos, cai perpendicularmente

a nossos tíquetes, a nossas cartas;

e é tão grave sofrer, mesmo rezando...

De consequências

da dor, existem alguns

que nascem, outros crescem, outros morrem,

e outros que nascem e não morrem, outros

que morrem sem haver nascido e outros

que não nascem nem morrem (a maioria).

 

E também por efeitos

do sofrimento, estou triste

até a cabeça, e mais triste até o tornozelo,

de ver o pão, crucificado, o nabo

ensanguentado,

a cebola chorando,

os cereais, em geral, feitos farinha,

o sal desfeito em poeira, a água fugitiva,

o vinho um ecce-homo,

e tão pálida a neve, e tão árdego o sol!

Como, irmãos humanos,

não vos dizer que já não posso e

já não posso com tanta gaveta,

tanto minuto, tanta

lagartixa e tanta

inversão, tanto longe e tanta sede de sede!

Senhor ministro da saúde, que fazer?

Ah, desgraçadamente, homens humanos,

há, meus irmãos, muitíssimo a fazer. p. 184-185

 

 

SUCEDE QUE O LUGAR ONDE ME PONHO

 

Sucede que o lugar onde me ponho

as calças, é uma casa onde

tiro a camisa em alta voz

e onde tenho um chão, uma alma, uma mapa de minha Espanha.

Agora mesmo eu falava

de mim comigo, e botava

sobre um pequeno livro um pão enorme

e depois fiz o traslado, trasladei,

querendo cantarolar um pouco, o lado

direito da vida para o lado esquerdo;

mais tarde me lavei todo, o ventre,

briosa, dignamente

me voltei para ver o que se suja,

raspei o que me leva tão perto

e ordenei bem o mapa que

cabeceava de sono ou chorava, eu não sei.

 

Minha casa, por desgraça, é uma casa,

um assoalho por acaso, onde vive

com sua inscrição minha colherzinha amada,

meu querido esqueleto já sem letras,

a navalha, um cigarro permanente.

Deveras, quando penso

no que é a vida,

não posso deixar de dizer a Georgette,

a fim de comer algo agradável e sair

pela tarde, comprar um bom jornal,

guardar um dia para quando não haja

e uma noite também, para quando haja

(assim se diz lá no Peru – me escuso);

do mesmo modo, sofro com grande cuidado,

a fim de não gritar ou de chorar, já que os olhos

possuem, independentemente de nós, suas pobrezas,

quero dizer, seu ofício, algo

que resvala na alma e cai na alma.

 

Já tendo atravessado

quinze anos; depois, quinze, e, antes, quinze,

a gente se acha na verdade um bobo,

é natural, e, de resto, que fazer?

E que deixar de fazer, o que é pior?

A não ser viver, a não ser chegar

a ser o que a gente é entre milhões

de pães, entre milhares de vinhos, entre centenas de bocas,

entre o sol e o seu raio que é de lua

e entre a missa, o pão, o vinho e a minha alma.

 

Hoje é domingo e, por isso,

me vem à cabeça a ideia, ao peito o pranto

e à garganta algo enorme que aperta.

Hoje é domingo, e isso

tem muitos séculos; de outra maneira,

seria, talvez, segunda-feira e me viria ao coração a ideia,

ao cérebro o pranto,

e à garganta, uma espantosa necessidade de afogar

o que agora sinto,

como um homem que sou e que sofri. p. 232-233

 

VALLEJO, Cesar. Poesia completa. Tradução de Thiago de Mello. Rio de Janeiro: Philobiblion; RioArte, 1984.

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