“A obra de um poeta da grandeza de Cesar Vallejo (1892-1938) só pode ser entendida na coerência e amplitude que fazem de sua vida e de sua obra uma só totalidade. Em sua íntima inteireza. Na variedade dos recursos formais que encontrou, para tratar temas tão diversos: a vida familiar (e dentro dela, centro dela, a permanente figura da Mãe), o amor, a terra, o trabalho, o tempo, o índio, mas também a necessidade de absoluto, a busca de sentido e o desamparo da condição humana. Poeta de uma raça, de um povo, de uma cultura, intérprete autêntico da alma peruana, Vallejo acima de tudo é o atormentado cantor do homem ferido pela ferocidade do mundo contemporâneo.” Thiago de Mello
Os Arautos Negros
Há golpes na vida, tão fortes... Eu não sei!
Golpes como do ódio de Deus; como se diante deles
a ressaca de todo o sofrimento
se empoçasse na alma... Eu não sei!
São poucos; mas são... Abrem fendas escuras
no rosto mais fero e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de bárbaros átilas;
ou os arautos negros que nos manda a Morte.
São as quedas profundas dos Cristos da alma,
de alguma fé adorável que o Destino blasfema.
Esses golpes sangrentos são as crepitações
de algum pão que se queima na boca do forno.
E o homem... Pobre... pobre! Volve os olhos, como
quando alguém bate as mãos por trás de nós;
vira os olhos loucos, e tudo que foi vivido
se empoça, como charco de culpa, no olhar.
Há golpes na vida tão fortes... Eu não sei! p. 39
O POETA À SUA AMADA
Amada, tu te crucificaste nesta noite
sobre os madeiros curvados de meu beijo;
e tua pena me disse que Jesus chorou
e que existe uma sexta-feira santa mais doce que esse beijo.
Nesta noite estranha em que tanto me olhaste,
a Morte esteve alegre e cantou em seus ossos.
Nesta noite de setembro celebrou-se
minha segunda queda e o mais humano beijo.
Amada, morreremos os dois juntos, muito juntos;
se secará aos poucos nossa excelsa amargura;
e nossos lábios defuntos tocarão a sombra
Já não haverá censuras em teus olhos benditos;
nem te ofenderei de novo. Numa sepultura
abraçados dormiremos, como duas crianças. p. 48-49
A CEIA MISERÁVEL
Até quando estaremos esperando o que
não nos é devido... E em que curva estiraremos
o nosso pobre joelho para sempre! Até quando
a cruz que nos sustenta não fechará as suas asas.
Até quando a Dúvida nos brindará brasões
pelo que padecemos... Já muito nos sentamos
à mesa, com a amargura de uma criança
que à meia noite chora de fome, desvelada...
E quando estaremos com os outros, na margem
de uma eterna manhã, ninguém sem pão.
Até quando este vale de lágrimas, ao qual
Nunca pedi que me trouxessem.
De bruços,
todo banhado em pranto, repito cabisbaixo
e vencido: até quando a ceia vai durar?
Existe alguém que bebeu demais e se burla
e aproxima e afasta de nós, como escura colher
de amarga essência humana, a sepultura...
E sabe ainda menos
esse escuro até quando vai durar a ceia. p. 70
O TÁLAMO ETERNO
Amor é forte só quando se acaba.
E a tumba será uma grande pupila
em cujo fundo sobrevive e chora
essa angústia do amor, como num cálice
de doce eternidade e negra aurora.
Os lábios para o beijo já se encrespam
como algo cheio que transborda e morre;
e em conjunto crispante
cada boca renuncia em nome da outra
uma vida de vida agonizante.
E quando penso assim, é doce a tumba
onde todos enfim se compenetram
em u mesmo fragor;
é doce a sombra em que todos se abraçam
para um encontro universal de amor. p. 71-72
OS DADOS ETERNOS
Para Manuel González Prada, esta emoção bravia e seleta, uma das que, com mais entusiasmo, me aplaudiu
o grande mestre.
Deus meu, estou chorando o ser que vivo;
quanto me dói te haver tomado o pão;
mas este pobre barro pensativo
não fermenta uma crosta do teu flanco:
e tu não tens Marias que se vão.
Meu Deus, se tu tivesses sido um homem,
hoje saberias ser Deus;
tu, porém, que estiveste sempre bem,
nada mais sentes de tua criação.
Mas o homem, sim, te sofre: o Deus é ele!
Hoje que há chamas no meus olhos bruxos
como nos de um condenado,
Deus meu, acenderás as tuas velas,
e jogaremos com o velho dado...
Talvez, oh jogador, lançada a sorte
do universo inteiro,
as olheiras da Morte surgirão
como dois azes fúnebres de lodo.
Deus meu, e nesta noite surda, escura,
não poderás jogar, porquanto a Terra
é um dado corroído e já redondo
de tanto haver rolado na aventura,
que já parar só pode num buraco,
no buraco de imensa sepultura. p. 74
OS ANÉIS FATIGADOS
Há ganas de voltar, de amar, de não ausentar-se
e ganas de morrer, combatido por duas
águas contrárias que jamais serão um istmo.
Desejos de um grande beijo que amortalhe a vida,
que acaba na África de uma agonia ardente,
suicida.
Desejos... de não ter desejos, Senhor;
eu te aponto com o meu dedo deicida:
vontade de não haver tido coração.
A primavera volta, volta e partirá. E Deus
curvado de tempo, se repete e passa, passa
carregando a espinha dorsal do universo.
Quando as têmporas tocam o seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado no punhal,
dá vontade de ficar plantado neste verso. p. 74-75
CHUVA
Em Lima... Em Lima está chovendo
a água suja de uma dor
tão mortífera. Está chovendo
da goteira de teu amor.
Não finjas que estás dormindo,
recorda o teu trovador;
que eu já compreendo... compreendo
a humana equação do teu amor.
Estronda na mística música
a gema tempestuosa e pérfida,
o sortilégio do teu “sim”.
Mas cai, cai o aguaceiro
no ataúde do meu caminho,
onde viro osso para ti. p. 76
XLIX.
Murmurando de inquietude, atravesso,
com o traje longo de sentir, as segundas-feiras
da verdade.
Ninguém me busca nem me reconhece,
e até eu mesmo já me esqueci
de quem serei.
Certo guarda-roupa, só ele, nos conhece
a todos nas portas brancas
das partidas.
Esse guarda-roupa, somente ele,
ao voltar de cada facção,
de cada candelabro,
cego de nascimento.
Eu também não descubro ninguém, sob
este humus que iridesce as segundas-feiras
da razão;
e não faço mais que sorrir a cada ponta
das grades, na enlouquecida busca
do conhecido.
Bom guarda-roupa, abre-me
tuas brancas folhas;
quero reconhecer pelo menos o 1,
quero o ponto de apoio, quero
saber ao menos que estou.
Nos bastidores, onde nos vestimos,
não há, não há ninguém: nada mais do que portas
abertas de par em par.
E sempre as roupas caindo
sozinhas, de cabides,
como índices grotescos que assinalam,
e partindo sem corpos, vazias,
até o matiz mais prudente
de um grande caldo de asas com suas causas
e limites fritos.
E até o osso! p. 118-119
LVI
Todos os dias amanheço às cegas
a trabalhar para viver; e tomo o café-da-manhã,
sem provar uma só gota, todos os dias.
Sem saber se consegui, ou nunca mais,
algo que salta do sabor
ou é somente coração, e que, já de volta, lamentará
até onde isto é o de menos.
O menino cresceria cheio de felicidade
oh! Auroras,
ante o pesar dos pais que não podem nos deixar
de arrancar de seus sonhos de amor a este mundo;
ante eles que, como Deus, de tanto amor
pretenderam-se até criadores
e nos amaram até nos fazer dano.
Franjas de invisível trama,
dentes que perfuram desde a neutra emoção,
pilares
livres de base e coroação,
na grande boca que perdeu a fala.
Fósforo e fósforo na escuridão,
lágrimas e lágrima na nuvem de poeira. p. 123-124
HOJE EU GOSTO DA VIDA MUITO MENOS...
Hoje eu gosto da vida muito menos,
mas ainda gosto sempre de viver: eu já dizia.
Quase toquei a parte de meu todo e me contive
com um tiro na língua atrás de minha palavra.
Hoje me apalpo o queixo em retirada
e nestas momentâneas calças eu me digo:
tanta vida e jamais!
Tantos anos e sempre minhas semanas!
Enterrados meus pais com sua pedra
e seu triste estirão que não se acaba;
irmãos de corpo inteiro, meus irmãos,
e enfim meu ser de pé, e de colete.
Gosto imensamente da vida,
mas, está claro,
com minha morte querida e meu café
e vendo as castanheiras frondosas de Paris
e dizendo:
Este é um olho, aquele também; esta é uma fronte, e aquela... E repetindo:
Tanta vida e jamais me falha a canção!
Tantos anos e sempre e sempre e sempre!
Disse colete, disse
tudo, parte, ânsia, disse quase, para não chorar.
De verdade sofri naquele hospital que fica ao lado
e está bem e está mal haver olhado
de baixo para cima meu organismo.
Sempre gostarei de viver, ainda que de barriga,
porque, como ia dizendo e me torno a dizer,
tanta vida e jamais! E tantos anos,
e sempre, muito sempre, sempre sempre! p. 178
OS NOVE MONSTROS
E, desgraçadamente,
a dor cresce no mundo a cada instante,
cresce a trinta minutos por segundo, passo a passo,
e a natureza da dor é a dor duas vezes
e a condição do martírio, carnívoro, voraz,
é a dor duas vezes
e a função de erva puríssima, a dor
duas vezes
e o bem de ser, nos doer duplamente.
Jamais, homens humanos,
houve tanta dor no peito, na lapela, na carteira,
no copo, no açougue, na aritmética!
Jamais tanto carinho doloroso,
jamais tão perto o longe malferiu,
nunca o fogo jamais
fez tão bem seu papel de frio morto!
Jamais, senhor ministro da saúde, foi a saúde
mais mortal
e a enxaqueca tirou tanta fronte da fronte!
E o móvel teve, em sua gaveta dor,
o coração, na sua gaveta, dor,
a lagartixa, na gaveta, dor.
Cresce o infortúnio, irmãos homens,
mais veloz do que a máquina, dez máquinas, e cresce
com a besta de Rousseau, com nossas barbas;
cresce o mal por razões que não sabemos
e é uma inundação com próprios líquidos,
com barro próprio e própria nuvem sólida!
O sofrimento inverte posições, dá espetáculo
no qual o humor aquoso é vertical
ao pavimento,
o olho é visto e esta orelha é ouvida,
e esta orelha dá nove campanadas na hora
do raio, e nove gargalhadas
na hora do trigo, e nove sons fêmeas
na hora do pranto, e nove cânticos
na hora da fome e nove trovões
e nove látegos, menos um grito.
A dor nos agarra, irmãos homens,
por detrás, de perfil,
e nos entoca nos cinemas,
nos crava nos gramofones,
nos descrava dos leitos, cai perpendicularmente
a nossos tíquetes, a nossas cartas;
e é tão grave sofrer, mesmo rezando...
De consequências
da dor, existem alguns
que nascem, outros crescem, outros morrem,
e outros que nascem e não morrem, outros
que morrem sem haver nascido e outros
que não nascem nem morrem (a maioria).
E também por efeitos
do sofrimento, estou triste
até a cabeça, e mais triste até o tornozelo,
de ver o pão, crucificado, o nabo
ensanguentado,
a cebola chorando,
os cereais, em geral, feitos farinha,
o sal desfeito em poeira, a água fugitiva,
o vinho um ecce-homo,
e tão pálida a neve, e tão árdego o sol!
Como, irmãos humanos,
não vos dizer que já não posso e
já não posso com tanta gaveta,
tanto minuto, tanta
lagartixa e tanta
inversão, tanto longe e tanta sede de sede!
Senhor ministro da saúde, que fazer?
Ah, desgraçadamente, homens humanos,
há, meus irmãos, muitíssimo a fazer. p. 184-185
SUCEDE QUE O LUGAR ONDE ME PONHO
Sucede que o lugar onde me ponho
as calças, é uma casa onde
tiro a camisa em alta voz
e onde tenho um chão, uma alma, uma mapa de minha Espanha.
Agora mesmo eu falava
de mim comigo, e botava
sobre um pequeno livro um pão enorme
e depois fiz o traslado, trasladei,
querendo cantarolar um pouco, o lado
direito da vida para o lado esquerdo;
mais tarde me lavei todo, o ventre,
briosa, dignamente
me voltei para ver o que se suja,
raspei o que me leva tão perto
e ordenei bem o mapa que
cabeceava de sono ou chorava, eu não sei.
Minha casa, por desgraça, é uma casa,
um assoalho por acaso, onde vive
com sua inscrição minha colherzinha amada,
meu querido esqueleto já sem letras,
a navalha, um cigarro permanente.
Deveras, quando penso
no que é a vida,
não posso deixar de dizer a Georgette,
a fim de comer algo agradável e sair
pela tarde, comprar um bom jornal,
guardar um dia para quando não haja
e uma noite também, para quando haja
(assim se diz lá no Peru – me escuso);
do mesmo modo, sofro com grande cuidado,
a fim de não gritar ou de chorar, já que os olhos
possuem, independentemente de nós, suas pobrezas,
quero dizer, seu ofício, algo
que resvala na alma e cai na alma.
Já tendo atravessado
quinze anos; depois, quinze, e, antes, quinze,
a gente se acha na verdade um bobo,
é natural, e, de resto, que fazer?
E que deixar de fazer, o que é pior?
A não ser viver, a não ser chegar
a ser o que a gente é entre milhões
de pães, entre milhares de vinhos, entre centenas de bocas,
entre o sol e o seu raio que é de lua
e entre a missa, o pão, o vinho e a minha alma.
Hoje é domingo e, por isso,
me vem à cabeça a ideia, ao peito o pranto
e à garganta algo enorme que aperta.
Hoje é domingo, e isso
tem muitos séculos; de outra maneira,
seria, talvez, segunda-feira e me viria ao coração a ideia,
ao cérebro o pranto,
e à garganta, uma espantosa necessidade de afogar
o que agora sinto,
como um homem que sou e que sofri. p. 232-233
VALLEJO, Cesar. Poesia completa. Tradução de Thiago de Mello. Rio de Janeiro: Philobiblion; RioArte, 1984.
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