J. G. de Araújo Jorge (1914-1987)
Felicidade é a gente poder olhar para trás e encontrar esse vago mundo em “sol menor” que se chama infância. Adivinhação da vida. Bem sei que, com muita gente, acontece essa coisa estranha: tornar-se adulto sem ter sido criança. Ou, o que é pior: ter sido criança sem ter tido infância.
A infância, para mim, não é apenas e simplesmente uma idade, mas justamente aquele mundo de pequeninas coisas que tornam inconfundível na lembrança um tempo de alegria, um tempo em que conhecemos a felicidade sem ao menos nos apercebermos dela.
Uma vez escrevi: “Infância mesmo / a gente só pode ter / depois de crescer. / Porque antes / a gente não sabe.”
Não é uma pena que a gente só descubra a infância depois que ela passou? Que ela seja como um sonho de que só temos consciência quando acordamos, já adultos? Ah, se pudéssemos retomar o sonho, tão próximo e tão distante, interrompido pela vida, para revivê-lo plenamente, com a consciência, com os sentidos despertos.
Ocorrem-me agora aqueles versos: “Mamãe – palavra azul, cor da distância, / quem não pode algum dia pronunciá-la, / nasceu, cresceu… mas nunca teve infância…”
Mas não quero referir-me somente aos que não conheceram seus pais, os que nasceram órfãos, os que nunca souberam o que significa um lar, mas aos que não tiveram a oportunidade de experimentar tantas e infinitas alegrias colhidas com liberdade e amor.
Os que nunca souberam pronunciar a palavra infância com todas as suas letras; não tiveram companheiros de aventuras; não sabem o sentido de coisas simples e inesquecíveis como bolas de gude, piões, papagaios, balões… Sou um homem feliz porque tive infância. E quantas vezes tenho fugido para ela, tentando reabastecer o coração de esperanças e ilusões. Sim: posso encontra-la viva, intensa, apenas volto o rosto, em cada curva da lembrança.
Por isso tenho escrito sobre suas recordações e sobre sua eterna presença. Releio outro poema, ainda inédito: “Ah, a infância, esse país de lenda / sem a ameaça da morte.”
Me lembro da minha infância: trago-a intacta dentro de mim, posso quase tocá-la com as mãos. Nela fui rei e moleque. Ficaram em meu corpo suas marcas e cicatrizes e me orgulho delas como um combatente de suas medalhas. Cada uma tem uma história, encerra uma aventura. Vivi todos os seus riscos, junto aos companheiros. Ainda ouço a voz de minha mãe me repreendendo, quando voltava para casa:
– Já não disse que não quero você com aqueles moleques?
E quantas vezes ouvi também outras mães chamando por seus filhos e repreendendo-os com as mesmas palavras.
Me lembro de minha infância. Esbocei dela dois pequenos retratos no livro A Outra Face. Um, com oito a dez anos, em Rio Branco, no Acre, garoto solto, de beira-rio (sem o lirismo casimiriano), tomando banho nos igarapés, tirando alfenim na engenhoca, comendo cacau maduro na floresta; outro dos 11 aos 15 anos, aqui no Rio, em Botafogo, metido em “peladas”, e pescarias nas pedras atrás do morro da Viúva.
Fui rico de infância: tive uma, no interior, livre, em contato com a natureza, aprendendo com os bichos e as coisas; outra, na cidade grande, já sabido, apavorando as tias, desencaminhando os primos; capitão de moleques.
O velho rio é a moldura da primeira, sublinha a sua paisagem. Pergunto por ele num poema ainda por publicar: “Onde estás, rio Acre, de Rio Branco,/ rio vermelho que o tempo azulou,/ que corres para a distância/ e que foges de mim? Rio Acre da minha infância/ que sempre vais/ de onde eu vim…”
No livro Amo! há outras reminiscências, em tantas perguntas: “Onde estão aqueles olhos cheios de desejos puros / e que mesmo rebeldes / olhavam para os céus?/ E aquela alma inquieta, como os caminhos / nos campos, os varadouros/ e os igarapés alegres da floresta?/ E aqueles lábios que não conheciam o sabor dos beijos / mas mordiam os bagos branquinhos e doces de ingá/ e a polpa suculenta dos cajus? Onde está o meu primeiro amor/ a menina de cabelos negros/ e de olhos da cor do rio/ que nunca será esquecida?”
E a resposta inexorável:
“O tempo ladrão roubou/ de parceria com a vida…”
Me lembro de tudo. E quero fixar nesta página os traços do retrato mais distante, que ficou no Acre. Primeiro, a paisagem: a casa grande, coberta de zinco, com um largo alpendre aberto para as mangueiras, cercada pelo milharal. E meu pai:
O “velho” pigarreando
de chinela, de pijama,
despacha papéis na sala.
O anspeçada no alpendre
o milharal com penachos,
as saúvas carregando
como fardos, grãos de milho;
arma o tempo, baixa o tempo,
barrica cheia entornando
cantando embaixo da calha.
Que bom o banho na chuva!
Depois a visão do engenho:
Tempo bom! Engenho rude
boi rodando, boi rodando,
– que pena no olhar do boi!
Moenda geme sozinha,
garapa sempre escorrendo,
tachada de mel virando
rapadura se fazendo,
cana raspada prontinha
alfenim branquinho, puro
que nem o sonho de Eudóxia.
Ao mesmo tempo, as recordações do Grupo Escolar 7 de Setembro, primeira escola, curso primário da vida:
Festa no Grupo Escolar:
eu, apache, ela, duquesa,
pulseirinha feito cobra
que o preso fez na cadeia,
tem meu nome, o nome dela,
– primeira algema de amor.
E a vida livre: “Sanhaçu voa na mata/ baladeira estica, estica,/ pedra parte, não vem mais.”
Lição de coisas: “O touro/ e a vaca pastam no campo;/ o cavalo e a égua cruzam/ nos terrenos da Intendência/ à vista de D.Zefa/ e do padre Bernardeli./ A molecada faz roda/ seu padre faz que não vê.”
E a festa na vila, a “chata” que apitava lá embaixo, na curva do rio, junto da cadeia, anunciando a civilização. “Sino tocando, tocando,/ foguete no ar estalando/ vestido novo, de seda,/ chata trouxe de Manaus;/ cara pintada, cabelo/ com fita grande, parece/ que borboleta pousou/ na cabeça da Nininha.”
Roupa branca, meia branca,
camisa branca, sapato
branco, tudo branco,
parece até comunhão
mas não é, é festa só.
Meu Deus, quanta coisa, quanta
coisa mesmo se passou.
Será que isto tudo é meu
ou foi alguém que contou?
ARAÚJO JORGE, J. G. de. No Mundo da Poesia. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1969. p. 69-74
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