sexta-feira, 7 de agosto de 2020

RETRATO DA INFÂNCIA

 J. G. de Araújo Jorge (1914-1987)

Felicidade é a gente poder olhar para trás e encontrar esse vago mundo em “sol menor” que se chama infância. Adivinhação da vida. Bem sei que, com muita gente, acontece essa coisa estranha: tornar-se adulto sem ter sido criança. Ou, o que é pior: ter sido criança sem ter tido infância.

A infância, para mim, não é apenas e simplesmente uma idade, mas justamente aquele mundo de pequeninas coisas que tornam inconfundível na lembrança um tempo de alegria, um tempo em que conhecemos a felicidade sem ao menos nos apercebermos dela.

Uma vez escrevi: “Infância mesmo / a gente só pode ter / depois de crescer. / Porque antes / a gente não sabe.”

Não é uma pena que a gente só descubra a infância depois que ela passou? Que ela seja como um sonho de que só temos consciência quando acordamos, já adultos? Ah, se pudéssemos retomar o sonho, tão próximo e tão distante, interrompido pela vida, para revivê-lo plenamente, com a consciência, com os sentidos despertos.

Ocorrem-me agora aqueles versos: “Mamãe – palavra azul, cor da distância, / quem não pode algum dia pronunciá-la, / nasceu, cresceu… mas nunca teve infância…”

Mas não quero referir-me somente aos que não conheceram seus pais, os que nasceram órfãos, os que nunca souberam o que significa um lar, mas aos que não tiveram a oportunidade de experimentar tantas e infinitas alegrias colhidas com liberdade e amor.

Os que nunca souberam pronunciar a palavra infância com todas as suas letras; não tiveram companheiros de aventuras; não sabem o sentido de coisas simples e inesquecíveis como bolas de gude, piões, papagaios, balões… Sou um homem feliz porque tive infância. E quantas vezes tenho fugido para ela, tentando reabastecer o coração de esperanças e ilusões. Sim: posso encontra-la viva, intensa, apenas volto o rosto, em cada curva da lembrança.

Por isso tenho escrito sobre suas recordações e sobre sua eterna presença. Releio outro poema, ainda inédito: “Ah, a infância, esse país de lenda / sem a ameaça da morte.”

Me lembro da minha infância: trago-a intacta dentro de mim, posso quase tocá-la com as mãos. Nela fui rei e moleque. Ficaram em meu corpo suas marcas e cicatrizes e me orgulho delas como um combatente de suas medalhas. Cada uma tem uma história, encerra uma aventura. Vivi todos os seus riscos, junto aos companheiros. Ainda ouço a voz de minha mãe me repreendendo, quando voltava para casa:

– Já não disse que não quero você com aqueles moleques?

E quantas vezes ouvi também outras mães chamando por seus filhos e repreendendo-os com as mesmas palavras.

Me lembro de minha infância. Esbocei dela dois pequenos retratos no livro A Outra Face. Um, com oito a dez anos, em Rio Branco, no Acre, garoto solto, de beira-rio (sem o lirismo casimiriano), tomando banho nos igarapés, tirando alfenim na engenhoca, comendo cacau maduro na floresta; outro dos 11 aos 15 anos, aqui no Rio, em Botafogo, metido em “peladas”, e pescarias nas pedras atrás do morro da Viúva.

Fui rico de infância: tive uma, no interior, livre, em contato com a natureza, aprendendo com os bichos e as coisas; outra, na cidade grande, já sabido, apavorando as tias, desencaminhando os primos; capitão de moleques.

O velho rio é a moldura da primeira, sublinha a sua paisagem. Pergunto por ele num poema ainda por publicar: “Onde estás, rio Acre, de Rio Branco,/ rio vermelho que o tempo azulou,/ que corres para a distância/ e que foges de mim? Rio Acre da minha infância/ que sempre vais/ de onde eu vim…”

No livro Amo! há outras reminiscências, em tantas perguntas: “Onde estão aqueles olhos cheios de desejos puros / e que mesmo rebeldes / olhavam para os céus?/ E aquela alma inquieta, como os caminhos / nos campos, os varadouros/ e os igarapés alegres da floresta?/ E aqueles lábios que não conheciam o sabor dos beijos / mas mordiam os bagos branquinhos e doces de ingá/ e a polpa suculenta dos cajus? Onde está o meu primeiro amor/ a menina de cabelos negros/ e de olhos da cor do rio/ que nunca será esquecida?”

E a resposta inexorável:

“O tempo ladrão roubou/ de parceria com a vida…”

Me lembro de tudo. E quero fixar nesta página os traços do retrato mais distante, que ficou no Acre. Primeiro, a paisagem: a casa grande, coberta de zinco, com um largo alpendre aberto para as mangueiras, cercada pelo milharal. E meu pai:

 

O “velho” pigarreando

de chinela, de pijama,

despacha papéis na sala.

O anspeçada no alpendre

o milharal com penachos,

as saúvas carregando

como fardos, grãos de milho;

arma o tempo, baixa o tempo,

barrica cheia entornando

cantando embaixo da calha.

Que bom o banho na chuva!

 

Depois a visão do engenho:

 

Tempo bom! Engenho rude

boi rodando, boi rodando,

– que pena no olhar do boi!

Moenda geme sozinha,

garapa sempre escorrendo,

tachada de mel virando

rapadura se fazendo,

cana raspada prontinha

alfenim branquinho, puro

que nem o sonho de Eudóxia.

 

Ao mesmo tempo, as recordações do Grupo Escolar 7 de Setembro, primeira escola, curso primário da vida:

 

Festa no Grupo Escolar:

eu, apache, ela, duquesa,

pulseirinha feito cobra

que o preso fez na cadeia,

tem meu nome, o nome dela,

– primeira algema de amor.

 

E a vida livre: “Sanhaçu voa na mata/ baladeira estica, estica,/ pedra parte, não vem mais.”

Lição de coisas: “O touro/ e a vaca pastam no campo;/ o cavalo e a égua cruzam/ nos terrenos da Intendência/ à vista de D.Zefa/ e do padre Bernardeli./ A molecada faz roda/ seu padre faz que não vê.”

E a festa na vila, a “chata” que apitava lá embaixo, na curva do rio, junto da cadeia, anunciando a civilização. “Sino tocando, tocando,/ foguete no ar estalando/ vestido novo, de seda,/ chata trouxe de Manaus;/ cara pintada, cabelo/ com fita grande, parece/ que borboleta pousou/ na cabeça da Nininha.”

 

Roupa branca, meia branca,

camisa branca, sapato

branco, tudo branco,

parece até comunhão

mas não é, é festa só.

 

Meu Deus, quanta coisa, quanta

coisa mesmo se passou.

Será que isto tudo é meu

ou foi alguém que contou?

 

ARAÚJO JORGE, J. G. de. No Mundo da Poesia. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1969. p. 69-74

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