terça-feira, 3 de novembro de 2020

TRÊS POEMAS DE FARIAS DE CARVALHO

 Meu outro mundo

 

Há entre mim e o mundo que me cerca

um outro, diferente, mais perfeito,

cheio de coisas simples, puras, – rosas,

estrelas e crianças saltitantes.

 

Nele não cabem marcos, nem bandeiras

que justifiquem ódios e agressões,

nem tambores de guerra, nem canções

para marcar o passo de assassinos;

 

porque meu mundo é um supermundo, reino

dos que encontraram a fonte e se banharam

de amor, de graça e se fizeram puros;

 

dos que têm o poder, pela renúncia,

de receber um golpe e devolvê-lo

sob a forma de um beijo ou de uma flor! p. 67

 

 

Canto negro

 

Este Clamor que o vento traz na voz

e chega a derramar-se no silêncio;

este sacolejar de mãos ossudas

crispadas sobre o tempo e sobre os mundos;

 

este berrar de pequeninos seres

grudado nesses peitos que já foram;

este bater de corpos mulambentos

chafurdando na lama dos prostíbulos;

 

este, é o canto dos injustiçados!

Tremei, senhores donos do universo,

que ele, vindo do bojo dessas noites

 

que dormem, podres, nos porões da história

vos tragará, para explodir, depois

na madrugada nova, que já tarda... p. 68

 

 

O maior Poema

 

O maior poema do mundo

é este que estou ditando

pela boca que não tenho

ou se tenho ninguém vê.

 

Vale a palavra muda

que inventei mas não disse.

Vale o anjo nadando

com asas sujas de nada

o nada que sabe a tudo

mas que esta boca que tenho

não pôde ainda provar.

 

Onde estará minha boca

não esta, porém a outra

que o meu Senhor me mandou

quando eu sem ser já me ia

fazendo o que agora sou

e que teimo em não saber?

 

Fica a palavra muda

ficam as asas do anjo

e fica o céu por escrito;

olhos, se existem

que leiam!

 

CARVALHO, Farias de. Pássaro de cinza. Manaus: Valer, 2000.

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