João Veras
São habituais dois prazeres que sustentam quem produz arte. O de criar e o de mostrar. Duas necessidades quase siamesas. Do particular para o coletivo. Há quem acredite que um não tem existência sem o outro e que, por isso, um pode impedir que o outro exista. Penso diverso. Um vai sempre existir enquanto o outro não necessariamente. Um livro de literatura existirá mesmo que “calado” numa gaveta tímida, numa estante solitária, num sebo perdido. Já o seu leitor, não! Este pode esperar, talvez para sempre. E, enquanto espera – ou ignore - ele não será, não existirá. Um real. Outro potência. Nesse sentido, o que dizer de uma literatura como a acreana (a exemplo de todas carimbadas como marginais diante dos cânones), que não se pode afirmar que não exista, mesmo sem ser lida e considerada socialmente?
Antes da internet, um livro pronto e acabado imaginava consagrar a efetiva existência do outro, seu leitor. Um livro saído da gráfica foi para quem? Não importa saber o nome mas o fato dele existir efetivamente por ter deixado a gaveta de seu autor e “vazado” no mundo. Falo, sobretudo, daquele tipo de livro despossuído da determinante retaguarda do mercado – este que sabe mais de caminhos financeiros que literários, como o de levar, de aformosar sua cara, disseminar e até pagar por boa crítica e, naturalmente, de vender, portanto, fazer circular sustentado no marketing tal qual qualquer produto.
Agora, com essa rede louca de virtualidades que adentra tudo, não se depende mais de um livro de papel para dar vida aquele encontro, se a criação está agora na mão, no imediato da invenção, de quem quer que seja em qualquer tempo e lugar do mundo. Podendo, ainda, o criador vivo, receber, de forma objetiva e automática, a resposta de quem o acessou, seu leitor. Vivemos no tempo em que a circulação possibilita o imediato consumo instantâneo. E também da resposta pública sem atravessador. Não há mais espaço para gavetas para quem não quer fazer de sua criação uma espécie de diário lacrado ou que seja impedido pelas condições adversas do mundo da indústria editorial e das políticas de cultura da colonização estética.
Por que estou dizendo isso? Porque estou pensando na escritora acreana Leila Jalul. Escrita de primeira qualidade, de uma rara imaginação criativa e rico testemunho memorialista, como toda boa literatura, mas que é pouco conhecida, quase anônima no Acre, sua terra, e quase que completamente ignorada fora. Uma escritora considerada aos costumes daquele tratamento “normal” (melhor dizendo, normalizado), dedicado às artes ditas periféricas do brasilcentrismo onde só é visível (o que passou a significar portador de qualidade), o que não vem das margens, esse tipo de expressão estética que vive abafada pela força do colonialismo cultural interno que impõe, desde os centros, uma educação estética de “fora pra dentro”, o que faz normatizando por decreto colonial certos tipos de gosto, de conceito/concepção e vidas culturais.
Leila, vivida e nascida filha dos livros e mãe de alguns (já lançou, inclusive por conta própria, portanto sem o auxílio do mercado e do estado, várias obras de contos e crônicas), talvez pensando nestas dificuldades que colocam a sua existência literária em questão, resolveu continuar agindo. Para ela, de fato, não basta só escrever.
Nesse passo, ultimamente, tem exercitado diminuir ainda mais a extensão de sua narrativa (me refiro ao tamanho), isto é, passou a produzir minicontos, esse tipo de prosa que cabe numa imediata passada d’olhos sem paginar jamais. Escolha feita talvez por imposição do meio que acaba de eleger para divulgar sua criação, as redes sociais, como o facebook.
A escritora, com isso, tenta fazer jus – mas sem abrir mão da qualidade de sua pena, reinventando-a – ao ambiente da pressa e da pressão frente a tanta informação que atravessa, a cada segundo, os olhos de quem resolve adentrar nessa teia de superposições de hiper descartáveis dados, informações, imagens e imaginações, na qual a tendência é a de que somente a curta “objetividade” é premiada pela atenção.
Mas isso de se divulgar pela internet não é novo para ela. Antes, já fizera leitores em blogs, esses espaços virtuais que hoje quase ninguém usa mais. Pulando de blogs e livros de papel para redes sociais virtuais, estaria ela, com esse movimento, buscando fazer fechar esse elo criação/leitor? Certamente que sim. Inclusive por que tem agora nas mãos a máquina de fazer isso. Penso que, desta forma, Leila se posiciona frente aquele dilema de obra sem consumo posto aqui no início. Ação que se expressa no caso como um movimento sublime de uma escritora em defesa da literatura, o que significa em defesa da própria existência como literata que é.
Agora, com as redes sociais e com os mini contos, penso ser possível se por abaixo dois argumentos usualmente adotados como desculpa de quem não quer e não gosta de ler literatura os quais se expressam, de um lado, pela dificuldade de acesso à obras que não constam das prateleiras do mercado editorial brasilcentrista e, de outro, pelo tamanho dos textos (a extensão da escrita)...
Com isso, aquela distancia tão comum nos processos editoriais ditos tradicionais perde força quando a relação entre a obra e a sua recepção são instantâneas. É quando, suponho, acaba a angústia, própria de todo criador, de saber se a sua criação tem receptividade (mesmo que calada). A potência perdeu para o real. Quem vai dizer que não pode ler Leila, agora?
Todavia, o que ainda pode insistir é aquela barreira – que tem determinado de forma importante a existência ou não do elo em questão – consubstanciada na colonizadora mentalidade de que, se não vem “de fora”, é literatura menor ou não é literatura. Mas, frente a isso, Leila não tá literalmente (nem) aí! Né https://www.facebook.com/leilamaria.jalulbretz?
*João Veras é músico e autor, entre outros, de “Seringalidade: o Estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta” (Valer, 2017) e “A Audiência dos Mortos: sobre colonialismo cultural no Acre” (Nepan, 2020).
João Veras e sua já conhecida tomada de responsabilidade. Leila.merece toda nossa "escuta. Que a gente a mereça! É o que desejo. Parabéns aos envolvidos
ResponderExcluirJoão Veras e sua já conhecida tomada de responsabilidade. Leila.merece toda nossa "escuta. Que a gente a mereça! É o que desejo. Parabéns aos envolvidos
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