Aos que creem na liberdade e erguem livres aos céus as suas mãos,
– Aos homens cristãos
se é que ainda há cristãos sobre a face da Terra!
I
Senhor!
A minha alma é pagã e eu sou ateu!
Sou aquele no entanto que te compreendeu
no sentido profundo dos ensinamentos
que espalhaste no mundo.
Eu prego os sentimentos
porque um dia morreste entre ladrões na cruz!
Falo de paz e amor, de pensamento e luz
e a palavra que escrevo em seu âmago encerra
um protesto à violência, ao despotismo, à guerra,
e aos vis e sempre vis mercadores do templo!
O teu vulto sereno e esplendido contemplo
com o mesmo olhar consciente, simples e sincero,
com que leio Platão, com que admiro Homero,
com esse olhar que demoro sempre sobre o vulto
de um Sócrates ou um Nietzsche!
É eterno este meu culto
pelos que têm luz própria, e são astros, são sóis,
e dão rumos na sombra tal como os faróis;
pelos que foram grandes, pelos que são grandes,
os que marcam na história os relevos dos Andes
sobre as planícies chãs, os desertos vazios;
pelos que, gigantescos como os grandes rios,
passam por muitas terras sem olhar fronteiras
e unem povos e raças sem erguer bandeiras;
pelos que, como os céus infinitos, profundos,
na imensidão do azul contêm todos os mundos,
e os que afinal criaram para os pigmeus
o cabresto da fé e o chicote de um deus!
E é por esta razão, Senhor, e é só por isto
que não creio em Jesus mas falo em Jesus Cristo!
II
Não preciso pensar em punições supremas
para que seja um bom, nem ponho entre dilemas
a minha ação moral; faço o bem pelo bem,
sem recear a deuses, sem temer ninguém,
porque tanto a esse Deus dos visionários temo
como ao fogo do inferno e às caretas de um demo!
Sem esperar por prêmios ou temer castigos
vou praticando o bem; chamo aos homens de amigos,
e se a razão que tenho é certa e não me engana
afirmo que é excelente a natureza humana
e é para a sua fonte.
Essa água da nascente
é a água milagrosa que está em nós latente,
– nela fui encontrar a origem da moral.
Bebendo-a, é que instintivamente vejo o mal
e o bem. Por isso prego sem temer, não minto:
mais moral do que um deus é a pureza do Instinto!
Um deus se abastardiza, um deus pode afinal
render-se ao poderio louro do metal
quando aqueles que são os apóstolos bons
vão mudando de timbre as suas pregações
na sociedade de hoje onde tudo se vende!
O Instinto, não! O Instinto puro não se rende.
Dentro do homem mais torpe, vil e corrompido,
se retrai; em si mesmo se fecha, escondido,
mas vive sempre, e pode afinal, de repente,
como a flor que rompeu de invisível semente
vir abrir suas pétalas brancas e puras
sobre a lama, – que é lama o ser dessas criaturas!
Creio, este há de ser talvez nosso trabalho,
Colher por entre a lama, as pedras e o cascalho,
– as almas (porque uma alma, tal como um diamante,
precisa ser polida para ser brilhante),
e depois descobrir essa oculta pureza
que é o cristal interior de nossa natureza!
Livrando assim da ganga mística e lodosa
os Seres, e polindo-os todos, afinal,
– havemos de encontrar muita pedra preciosa
guardando na aparência bruta e desgraciosa
quanta cintilação sonora de cristal!
III
Senhor!
Eu sou aquele que não reconhece
no homem que hoje a teus pés ergue uma falsa prece
um discípulo teu!... Conheço a tua história;
sei que tu foste pobre, e para a tua glória
não nasceste em palácios cravejados de ouro
como nascem os reis!
O teu grande tesouro
trouxeste-o no teu peito como nós, e os sábios
ao balbucio humilde e suave dos teus lábios
quedavam-se em silêncio... E se a história não falha,
o teu berço, Jesus, era feito de palha,
e descerraste o olhar na tosca manjedoura
que aumenta a tua glória e que em nada desdoura
o teu grande destino!... Os pobres, os pequenos,
tiveram sempre a luz dos teus olhos serenos
e ouvindo a tua voz tão cheia de conforto
propagaram até que deste vida a um morto,
– e assim ficou na história o Lázaro da lenda!
E desde então, Senhor, há essa eterna contenda
entre os que veem em ti um sonhador humano
deixando-se morrer no estoico desengano
de um Sócrates, que ergueu a taça de cicuta
e sem tremer morreu; e os que, na tua face,
serena ante a impiedade hostil da força bruta
(como se nela um halo de luz se estampasse)
Chamaram-te de Deus!
Não importa, Senhor,
importa é que morreste pelo nosso amor!
IV
As eras que em sua ânsia incontida consomem
vidas, seres e coisas, como um deus ou um homem,
hão de sempre guardar aquela trajetória
que os teus passos marcaram na alma e na memória
do mundo, – na ascensão do Calvário e da Dor!
Não sei se tu me escutas ou me vês, Senhor!
Minha voz é pagã, meu coração é ateu,
no entanto ela te exalta, e ele te compreendeu!
Não entro nem visito a imensa catedral
que não é tua casa! – E nem comungo o mal
dos Judas que hoje ainda rondam tua mesa
e querem te trair!
Nasceste num presepe
e essa cruz que se ostenta eu vestia-a de crepe,
– para mim já morreu!
Já não diz da beleza
da obra que tu pregaste e da grande verdade
dessa filosofia eterno de igualdade
que fizeste brotar do coração humano!
Compreendi-te, Jesus, por isso não me engano
com os que trazem teu nome à boca, – todos são
os Judas em que em teu tempo vendem a oração
que ontem por entre os pobres, como um lenitivo,
davas ao coração mais morto do que vivo
sem cobrar um ceitil...
Senhor! A água da fonte,
que tão pura nasceu entre as pedras do monte
pequenina e escondida, e que era clara e doce,
hoje é turva e pesada, é amarga e envenenou-se!
V
Eu não creio, Senhor, mas se é verdade e é certo
que tu ressuscitaste, e com o teu peito aberto
pelas lanças romanas te elevaste aos céus,
ouve o aviso que solto nestes versos meus:
– que não te lembres nunca de voltar aqui,
porque o que hoje te adora, o que fala de ti,
diante da exprobração do teu desgosto imenso
sobre uma nova cruz deixar-te-ia suspenso
e da tua palavra ainda faria pouco!
E outros te chamariam de demente e louco
e outros te chamariam comunista e ateu!
Se ao entrares na igreja dos vitrais, como eu
apontasses o luxo, a riqueza, o exagero;
se sentisses profundo e amargo desespero
ouvindo citações em teu nome; se enfim
voltasses a este mundo, ao encontrá-lo assim
tu não compreenderias mais o teu último idioma
nem mandarias Pedro retornar a Roma!
Cobririas teu rosto, e ante a trágica ideia
de espalhares a luz; talvez, como em Pompeia,
atirasses também o fogo, e o próprio mundo
sepultasses aos pés de um vulcão num segundo!
Ou quem sabe, Senhor, se em silêncio choravas
e ao invés de jogares sobre os homens, lavas,
com a grandeza infinita do teu coração
ofertasses ainda um último perdão,
– e ante a inutilidade do teu sacrifício
rolasses do Calvário para um precipício!
VI
Senhor!
Não seu se sou cristão, mas acredito
nessa voz que no búzio imenso do Infinito
há séculos vibrou e há séculos ressoa!
Essa voz que, bem sei, foi simples e foi boa,
e foi pobre e sincera, – é quem traça o caminho
por onde ando a sonhar, e onde a sonhar, sozinho
prego o que tu pregaste!
E hei de seguir, adiante,
se às vezes abatido, outras vezes confiante,
mas sem voltar jamais!
Eu também quero o mundo
Como uma só família!
E um desejo profundo
de amar e de ser bom, e esse culto à beleza,
são a essência da minha inquieta natureza!
Também falo de amor! Pelo amor também velo
e nesta exaltação tenho pelo belo,
nessa ânsia de criar, nessa paixão de artista,
sorrio com desprezo à alma pequena e egoísta
da vida que me cerca...
E então me desiludido
tal como tu, Senhor, dos homens e de tudo!
E fujo... quero a terra só, o isolamento,
para dar a liberdade a este meu sentimento
e gritar para os céus minha incompreensão!
É então, no desespero desta fuga, é então
que às vezes penso em ti, Senhor!
E o céu lá no alto
é a catedral azul onde canto e me exalto
e onde rezo estes versos todos que compus!
As palavras que solto, eu só posso entendê-las,
vibram no ar não em sons, mas em jatos de luz,
acredito que vão mais longe que as estrelas,
mais além, aonde os céus sem estrelas são nus!
Há um consolo, Senhor, que me acalma e me anima
quando fito o teu vulto branco e legendário
nas cores dos vitrais, nos óleos dos retratos:
– é que a estrada da dor caminha para cima
e mais vale subir e morrer no Calvário
que sentar-se e viver no trono de um Pilatos!
VII
Dos jornais: “Os sinos das igrejas romanas repicaram em festa, por ordem do Papa, à vitória de Mussolini sobre a Abíssinia.”
Senhor!
A tua história que ficou no meio
leio-a com tal ardor e convicção, que odeio
os que com a tua efígie esplêndida e sublime
perpetram e repetem pela Terra o crime
que Roma se imputou –.
E é por isso talvez
que combato o romano que se fez burguês,
e para que afinal o mundo me ouça e veja
quebro as imagens falsas de uma falsa igreja!
Não entoo com eles cânticos ou hinos,
renego as suas cruzes, desconheço os sinos
que hoje soltam no espaço o metal dos seus sons!
Os sinos que aplaudindo o ensanguentar das terras
entusiasmam servis para o pasto das guerras
e se fundem depois no bronze dos canhões!
Que dirias, Senhor, se visses a epopeia
daquela multidão de negros da Eritreia,
indefesos e nus como os cristãos de outrora,
dando carne às metralhas famintas de agora
e em contorções morrendo inflamados aos gás?!
Que dirias, Senhor, se ao longe, por detrás
destes quadros de sangue (onde a Roma de Nero
ressurgiu com mais tinto esplendor, mais esmero
na maldade feroz) ouvisses como um bando
de loucos, os teus sinos soltos, badalando,
no alto das catedrais que ostentam tua cruz?!
Acredito, Senhor, – por consolo supus
que num rasgo de dor dilacerante e intenso,
dissesses para o mundo o que eu sinto e o que eu penso,
e arrancando um por um os sinos que bateram,
e fechando os portões das ricas catedrais
gritasses:
– estes sinos todos já morreram!
– e estas igrejas todas já não vivem mais!
VIII
Que dirias, Senhor, se a tua fé sublime,
a que te fez sofrer e ainda hoje nos redime,
encontrasses assim deturpada em seus fins?
O teu tempo de outrora é a casa dos festins
onde a tua figura, em púrpuras vestida,
sem sentido e sem alma, e aos poucos pervertida
fala uma língua morta a um mundo fariseu,
– porque a tua palavra há mil anos morreu!
Um dia tu quiseste igualar os destinos
dos homens, e chamaste os pobres pequeninos,
crianças que sem ninguém te cercavam nas ruas...
Que dirias, Senhor, se hoje as igrejas tuas
inacabadas sempre por fora, e por dentro
vestidas de ouro, apenas servissem de centro
aos que vendem no altar os teus restos finais,
entre baixos sermões e enormes castiçais?
Senhor, ouso indagar-te: – que dirias, tu,
morto sem teres nada, o corpo quase nu,
se te visses envolto nessa liturgia
que um Midas ambicioso certo não teria?!
Acredito que entrasses mesmo, sem notar
Que essa era a tua casa... e aquele, o teu altar!
IX
A minha alma é pagã, Senhor, e eu sou ateu!
Sou aquele no entanto que te compreendeu,
e propaga as belezas dos ensinamentos
por cujos são princípios tantos sofrimentos
tiveste de curtir; sou aquele que ainda hoje
muito embora da vida e dos homens se enoje
continua na crença de que cedo ou tarde
chegaremos a ti...
É que no mundo ainda arde
a chama que acendeste, – a chama rubra e ardente,
que eum muitos corações crepita intimamente!
Não é minha nem tua, a falsa religião
das sacras barbarias de uma Inquisição,
que se antepondo à ciência inutiliza as ânsias
do progresso, a embuçá-la em sombras e ignorâncias;
e ainda aplaude a não senil que os filhos teus
incita ao ódio e ao crime em nome de algum deus!
Tu disseste, Senhor: “Não matarás!...” Parece
que escuto a tua voz como um rumor de prece
e penetro o sentido do teu misticismo!
Hoje, tu lutarias contra o imperialismo
que reduz certos povos como os de outras eras,
às condições de vida em que vivem as feras!
Teu gesto se ergueria contra a prepotência,
pelo direito ao lar, ao pão, pela existência,
e pelo bem maior que encontramos na vida:
– a nossa liberdade... E a tua voz perdida
seria igual à minha, a falar para o caos.
Ao silêncio dos vis, e à incompreensão dos maus!
X
Tenho um ódio de morte a qualquer tirania!
Amo a terra, amo o sol, amo o clarão do dia
que ilumina e que aquece os homens em comum
sem preterir ninguém, sem desprezar nenhum!
Afirmo que é sagrada a liberdade humana;
a justiça, imortal; e eterna, e soberana,
a razão que elucida o cérebro fecundo
dos que vem de longe construindo o mundo!
Tenho um ódio de morte à césares e reis,
que esquecem no poder a força ideal das leis
e cegos, – na expansão de ambições sanguinárias
exploram sem piedade o trabalho dos párias,
e ao toque de clarins e em bárbaros festejos
satisfazem a ferro e fogo os seus desejos!
Tenho um ódio de morte aos homens das boleias
que atrelam aos seus carros multidões plebeias
e de chicote em punho, a açoitar os seus povos,
arrastam, com a mentira, a inconsciência dos novos!
Aos déspotas sem lei, aos tiranos e aos vis,
aos que armam sobre a força hedionda dos fuzis
os palanques vistosos de um poder nefasto
e preparam com a morte o sanguíneo repasto
que não lhes mata a fome de domínio!... Odeio
os que para seus fins engendram qualquer meio,
e jogam contra o fogo, e à ceifa da metralha
(tal como se atirassem vão montões de palha),
nações inteiros, povos jovens e felizes,
enchendo-lhes o peito e a alma de cicatrizes!
XI
Eu não sei por que vim e não sei por que falo,
sei que não tenho à fronte, a aureolar-me, um halo
de luz, para iludir, com retoques grosseiros
os que são meus irmãos, irmãos e companheiros...
minha palavra é clara e nua, desconhece
os cicios suspeitos que se dizem prece,
não digo entre falsos clarins e trombetas
dos que falam grifando a voz com baionetas!
Falo de Paz, sem crer no entanto em Utopias,
porque creio na Paz e creio em novos dias.
A humanidade sofre (eis a verdade atroz)
da indigestão de deuses e ilusões de heróis:
obedece a fantasmas e adora visões,
confunde cores, formas, e mistura sons,
e folhea de bronze as imagens tacanhas
dando a montes de barros o nome de montanhas!
XII
Eles querem que eu cale, Senhor, é o receio
pela voz que se eleva e desconhece o freio
de qualquer interesse, e arranca a hipocrisia
que cheira a bastidor de altar, a sacristia,
e diz alto, e dizendo bem alto de tudo,
dá-lhes certo a impressão de quem fica desnudo
ante um olhar estranho.... Odeiam-me por isso.
Pouco importa! Sou livre e não nasci submisso!
E se um pouco afinal de mim mesmo conheço,
sei que não trago ao peito pendurado um preço
nem nunca o meu ideal joguei ao “quem dá mais”;
nem vendo a minha fé, e nem serei capaz
de erguê-la em meu sentir sobre o alicerce indigno
da exploração alheia!
É em vão! Não me resigno
ao silêncio! E talvez, imprevidente e incauto,
cada grito que solto é cada vez mais alto!
E se me ouves, Senhor, se escutas este grito
lá da distância azul, na ilusão do Infinito,
tu que encarnaste um dia a perfeição e o Todo
e sentiste o maligno efervescer do lodo
da incógnita criação, – por certo não te assombras
– pois matou-te esse horror que têm à luz às sombras!
Caminho – sigo à frente –, e me embaraço e perco,
tonto do odor que sobe do estagnado esterco,
mas ainda encontro forças, ao fitar, tranquilo,
o sol rompendo a nuvem que tentou cobri-lo
e apagá-lo dos céus.
O sol que triunfante
desaparece aqui para surgir adiante!
Sigo à frente, Senhor, e hei de avançar assim
já que sinto esta chama acesa dentro de mim,
e se tal como tu, for vencida a luta,
com pena da planície onde há sangue e onde há pus,
erguerei sem tremer a taça de cicuta
ou buscarei eu mesmo os braços de uma cruz!
JORGE, J. G. de Araújo. Cânticos. Rio de Janeiro: Vecchi, 1962. p. 157-207
* O poema “Cântico dos Cânticos” foi escrito em janeiro de 1937.