João Veras
A cena é inusitada. Manhã de sábado. Ontem. Uma sessão de cinema de um curta independente (o que quer dizer feito sem auxílio de dinheiro público e esquema comercial de distribuição) estrelado por um ator acreano, numa sala de cinema da rede Araújo no shopping Via Verde. Foi uma concessão rara da indústria. Também do filme que não é nenhuma distração senão um grande incômodo. A única coisa normal na cena, que durou 27 minutos – tempo do filme – é o público. Quase ninguém para a capacidade da sala (a menor delas). Quase ninguém das artes locais. Do cinema, nem pensar. Todos tão parcos. Ainda exíguos para fazer. Ainda escassos para consumir. Ainda minguados para resistir juntos. Tem sido este o estado de posição normalizado pela colonização cultural que nos tem colocado naquela condição pela qual o vício invencível é dar as costas ao semelhante enquanto se acotovela para beijar os pés do estranho, o colonizador. Conheço bem esses lugares. O ano de 1500 não acabou.
Não vou perder tempo para o inusitado. Por que este sobre o qual me refiro ainda é daquele tipo que não passa em si de um evento. Da exceção. Do olhar exótico que passa. Enquanto o seu contrário, o mercado de circulação de filmes continuará centrado num produto alheio às nossas realidades, o que constrói e mantém nossas mentalidades na subalternidade política e estética etc. Lutemos para que este modelo de inusitado se acabe. Ele, em sua violência, terá fim. O melhor agora é visibilizar a sua vítima, isto é, a obra que estava ali gloriosa na sessão.
Centelha – roteiro, direção e montagem do cineasta carioca Renato Vallone – é um curta metragem gravado em Rio Branco e estrelado pelo ator acreano Cleber de Barros Moura, com participação de Karine Guimarães. É um filme belíssimo tanto quanto de um vigorosíssimo incômodo pela sua estética fílmica, pela sua substância política e escolhas éticas, tudo ainda tão inusual não só para o espaço do shopping, também para o construto mental político pelo qual temos sido tão bem educados para se comportar diante do poder sobre as coisas do nosso mundo.
O filme nos seus 27 minutos é grandioso. Aqui me limitarei a um ou dois aspectos, entre os inumeráveis que carrega. É só para dar uma pequena aproximação pela lente de quem se sentiu profundamente tocado, atravessado.
O filme é uma batalha técnica que é política. A do movimento imagético na sua contenda para nos fazer ver o tanto que está frente aos nossos olhos enquanto “preferimos” a cegueira. É uma luta de quem busca tornar o micro em macro. O invisível em visível. Daí a escolha técnica do enquadramento. Tudo é zoom nele. Tudo é na cara. Ampliado, tudo transborda na tela de tão perto. A câmera ali como se quisesse engolir a imagem. E engole. Por onde não é possível deixar de ver as vísceras da condição humana. Uma peleja do cineasta atrás de tornar visível, física e abstratamente, a condição de miserabilidade concreta e da dignidade existencial de um homem velho abandonado. O infeliz, como é o país colonizado há mais de 500 anos.
Centelha é a ficção no corpo da realidade e vice-versa. É o mapa da dor às escâncaras.
Onde está a distinção ali? O personagem é um ser humano na sua casa, na sua condição, na sua vida, nos seus sonhos, nas suas visões, nas suas necessidades, nas suas relações, nos seus delírios. O ator é o seu animal de estimação. O ator não nega a sua realidade. Não tem como. E o cinema se faz nela. Na realidade enquanto tal. O ator é um artista imperceptível na sua comunidade. Daí ser preciso virar ficção para ser real. A figura do grande imerecido desvalor cultural.
Cleber é um gigante que ninguém consegue ver. Um fadigado numa sociedade de tantos. Cada um na sua sólida e desvalida solidão. O artista é um ser impossível em lugares como o Acre, onde a pedagogia da indiferença impera. Mas é o ser humano o personagem que se anuncia diante da câmera. E ele se revela para também metaforizar o símbolo da vida indigna.
É a arte e o povo num só corpo. Tudo está em um. Sem ambivalência. É quando o filme vence. Por isso ele é um delírio de tanta realidade. A luta é a bela mulher insólita vista pelo homem em estado de re-existência. A luta é o outro que aparece para te ver. A luta é o cinema. A luta é feminina. É o desabandono, mesmo como faísca que clareia num átimo de tempo e apaga. É o Brasil que para ser visto só muito zoom lambuzado na cara. A luta é Cleber. Essa vida como a arte apulso. É o filme de Renato Vallone.
Vale muito a pena assistir. É uma experiência rara. E eu disse muito pouco a respeito.
João Veras, 29.08.21
João Veras é músico, poeta e produtor cultural. Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Autor, entre outros, de "Seringalidade: o Estado da Colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta" (Valer, 2017) e "Audiência dos mortos: sobre colonialismo cultural no Acre" (Nepan, 2020) .
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