Foi em 1877 que
aconteceu a grande seca no nordeste que, até hoje, não deixa de ser lembrada.
Aos poucos, ela foi
matando as plantas e as criações, de forma que os agricultores não encontraram
outra saída a não ser reunirem as suas famílias e rumar em direção à cidade, em
busca de sobrevivência.
As cidades ficaram
lotadas de povos vindos dos arrabaldes.
Também na cidade,
essa gente passou privação. A assistência dada pelo governo era trabalho, mas
não para todos, pois era grande o número de pessoas desabrigadas.
Depois de algum
tempo, voltou a chover. O povo, amedrontado com acontecido, recusava voltar
para roça, pensando não só na perda das criações e plantações, mas também na
perda de pai, parentes e irmãos. Nem todos pensaram assim; uma minoria voltou
às suas cabanas.
Hoje, lembramos
alguns fatos dessa época, aproveitando histórias de velhos nordestinos que, em
tempos de criança, foram vítimas desse acontecimento.
Como exemplo, temos as histórias contadas por Angélica da Silva que, na época da seca, tinha 14 anos de idade. Seu pai, Joaquim Serra Grande, e sua mãe, Antônia Aprígio da Silva, morava na serra de Baturité no Ceará.
Dizia que, já é 1875,
o povo, para conseguir água, tinha que andar de três a quatro horas de viagem.
Roupa não se lavava, apodrecia no corpo. Também apareceu uma doença de nome
“cola”, que dava disenteria e matava, em menos de 24 horas, os já enfraquecidos
pela fome. O povo até andava com o nome escrito num papel, dentro do bolso, que
era para que quando fosse encontrado morto se soubesse quem era.
Também tinha uma
doença chamada “pele de lixo”. Quando a pessoa é atingida por ela, aos poucos
ia largando a pele do corpo, e não havia cura, morria no maior sofrimento.
Nessa época, o
remédio mais usado era o “específico”, que eles tomavam para curar todo tipo de
doença. É bom saber que existiam vários tipos de “específicos”, os para
crianças e adultos, os contra-venenos e para curar doenças.
Na pior seca,
Angélica recebeu em casa a visita do seu padrinho, e ele lhe disse:
- Minha filha,
procure sair o mais breve possível para a beira-mar, porque está morrendo muita
gente de fome de sede.
Deu a ela, então, uma
novilha e um saco de farinha para comer na viagem.
Aconteceu que na
véspera da viagem, noite Joaquim Serra Grande pegou a carne quase todo deu no
pé. Mas vocês não deram muita importância pois ela era muito ruim para família.
Também não
desmancharam viagem, e foi assim que Angélica, sua mãe e seus irmãos menores,
Tangino, Miguel e Joaquim, se despediram das cabanas e se mandaram, estrada a
fora.
Da Serra de Baturité,
onde Angélica morava, até chegar à beira-mar, tinha que andar mais de 10 dias a
pé.
A água, arranjaram
com os fazendeiros e, assim mesmo, era regrada.
Dizia a ela que fazia
dó. Aqui e acolá, encontravam uma pessoa morta à beira da estrada e cachorros
escavando raízes para saciar a fome.
Teve um dia que Angélica esmoreceu, com sede; seus irmãos deixaram tudo quanto levavam e saíram correndo estrada afora, à procura de água, a qual, por sorte, encontraram.
Angélica, ao tomar a
água ainda passou mal, pois tomava o líquido e vomitava, sendo que só da
terceira vez é que segurou a água no estômago.
A verdade é que a Angélica escapou, com todos os seus, e foram ter mão na cidade,
enquanto Joaquim Serra Grande talvez tenha até morrido, pois ninguém mais deu
notícia dele.
Na época da seca, o
governo dava passagem para os que quisessem ir para a Amazônia, ou para
qualquer outro lugar, pois era grande número de pessoas em busca da sobrevivência.
Angélica, que ficou
no Ceará, presenciou todo o movimento da seca. Dizia a ela que, na cidade, só
existia uma mulher solteira - a Maria Carlos, mas, depois da seca, apareceu um
grande número. Essas mulheres se vendiam até a troco de bolachas, e Angélica
mesmo foi uma que se perdeu com 14 anos de idade. Depois da cerca, alguns
voltaram para roça.
Em alguns lugares, as
vacas parirão de dois bezerros de uma vez. Quando isso aconteceu, em seu sermão
o povo achou que era o fim do mundo, mas ficaram contentes quando o Padre
Cícero falou que Deus era bom e estava fazendo isso para recuperar o que eles
tinham perdido. Então, depois de algum tempo, as vacas voltaram a ter parto
normal.
Também o Padre
Cícero, em seu sermão, dizia que aquela grande seca era castigo, devido ao povo
ser muito preconceituoso. Como, de fato, eles mantinham uma ordem rígida, a
moça tique que casar com gente da família e, se não encontrasse um parente,
ficava “pra titia”. A verdade é que o acontecimento da seca quebrou uma grande
parte dessa tradição.
Angélica ficou com os seus na cidade. Sofreram muito porque, nessa época, tudo era muito difícil. Passado algum tempo, ela casou com um senhor de idade, de nome Sales Guerra. Juntos, construíram família e tiveram dois filhos, Francisco e Francisca.
Teve uma época em que
eles estavam mal de vida e resolveram ir para a Amazônia, para o seringal
Maripuá, no rio Purus. Chegando lá, Sales não quis trabalhar como freguês.
Dizia ele:
– Eu quero ser é
seringalista.
O certo é que deixou
Angélica com os dois filhos no barracão, embarcou numa canoa e entrou no rio
Juruá, em busca de fazer explorações, mas por lá os índios deram sumiço nele.
Antes de viajar,
Sales já tinha sido avisado de que as explorações eram perigosas, mas ele era
ambicioso e teimoso. Foi sozinho, e sozinho ficou para sempre.
Angélica ainda ficou
seis meses no barracão esperando o Sales, mas o patrão, não querendo sustentar
Angélica e os seus dois filhos, armou uma cilada. Fez uma carta falsa em nome
de Sales, dizendo que ele não tinha feito nada na exploração de seringa, mas
que, em compensação, tinha arranjado um bom emprego em Manaus, e que ela fosse
para onde ele estava.
Angélica, ao receber
a carta, deu saltos de alegria, abraçada a seus filhos; o patrão se encarregou
de conseguir passagens, e eles viajaram. Chegando em Manaus, ficou um dia e uma
noite a bordo do navio, e Sales nunca apareceu. A verdade é que ela chegou a
dormir três noite pelas ruas da cidade, passando fome com os filhos pequenos,
até que resolveu viver de lavagem de roupas. E assim foram mais de dois anos de
sofrimento.
Angélica era muito
devota e sempre pedia a Deus um meio de melhorar de vida. Sendo assim,
aconteceu. Ocorreu que passou um parente seu por Manaus e a trouxe para a
colocação São Pedro, no rio Acre.
Depois de três meses,
ela casou com o seringalista de nome João Pedro da Silva, dono do seringal
Triunfo, e, daí em diante, não passou mais necessidade. João Pedro da Silva,
por sinal, também foi vítima da seca de 77, quando contava com a idade de sete
anos e morava no bairro União, no Ceará.
Ambos, Angélica e
Pedro, faleceram. Angélica, em 1946, e João Pedro, em 1956. Ela com 83 anos e
ele com 86.
MELO, Hélio. História
da Amazônia: “Do seringueiro para o Seringueiro”. Brasília: Senado Federal,
Centro Gráfico, 1986. p. 35-44
* As ilustrações também são de Hélio Melo.
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