João Veras
Para Ronaldo Rhusso
É afirmar o óbvio dizer que a Covid-19 tem
deixado marcas profundas nas nossas vidas individuais e sociais. O seu
contexto-efeito, essa pandemia que não quer acabar, vai mudando nossa forma de
viver ante a plena insegurança da vida que insiste e de tanta dor que tem
causado.
A arte produzida neste
período não tem como deixar de revelar como os artistas compreendem, enfrentam
e reproduzem, em seus artefatos, esse tempo.
Três artistas plásticos
do Acre – Danilo de S’Acre, Ueliton Santana e Darci Seles - estão realizando,
até 17 de fevereiro, no Salão de Exposição do Sesc-Centro, uma coletiva, a que
nomearam de Afluentes Aquareláveis.
Todavia, o mote do
evento, pelo que se avista a princípio, nada tem a ver com esse tempo pandêmico
em que estamos vivendo. Estão só apresentando suas experiências com uma técnica
de pintura, a da aquarela. Estão, portanto, só falando do processo, dos
materiais, da forma. Suas afluências – concentrações – ao mundo da técnica de
se pintar aquarela. É o que parece.
Adentrando nos temas
que o cartaz do evento indicia, também não se ver referência temática
relacionada diretamente ao que se passa de tão absurdo. Parece que não estão
interessados em retratá-lo em suas obras. Observando numa distância temporal,
eles parecem dizer ou que nada acontece ou que, sobre o que acontece, não é
motivo para se importarem. Suas preocupações seriam outras: fazer experiências
técnicas na arte de seus ofícios estéticos...
Isto seria uma espécie
de fuga, uma negação? Precisamos observar com mais acuidade o que está aos
olhos. Há algo a se revelar por trás do sorriso de Mona Lisa? Quero saber.
O que percebo é que não
será exatamente por meio do que tematizam as obras o que irá cumprir o papel
desanuviador que me interessa aqui. Nesse sentido, não é a toa que o título da
exposição – Afluentes Aquareláveis - trata justamente da técnica. Por isso,
penso que será precisamente por ela e seus resultados concretos na tela – assim
como em todo o ambiente/contexto da galeria - o que irá revelar a percepção que
os três artistas têm desse momento em que vivemos agora. Se de fato o
consideram.
Podemos começar a interpelar pelo cartaz (foto 1). Como o vejo, ele, em si, diz muito.
É um cartaz cuja
informação do evento se mostra literal. Do tipo seca. Fundo escuro com imagens
separadas de três das obras da exposição, uma de cada expositor. Título da
exposição. Nome dos artistas. Data e local de sua realização. Como quem diz: é
isso que você vai ver lá. Um cartaz por demais objetivo, direto, claro,
didático, sem meias palavras. E não é
para ser assim? Sim! No entanto, não vi nele sedução, um apuro estético. Falo
de fealdade. E me perguntava: porque ele haveria – como um cartão postal, um
convite, uma conquista - de ser feio?
Ainda no cartaz, vi que
as imagens das obras trazem uns tons meios borrados, enodoados, encardidos,
induzindo falhas. Ainda não sabia dizer se pela “má qualidade” da foto ou da
própria tela, o que dava a ideia de “mal acabadas” ou de efeitos não previstos
como toda tela enodoada parece indicar.
Esclareço que, por esta
minha primeira impressão, eu estava tecnicamente negligenciando o fato de que o
que caracteriza os efeitos da aquarela como técnica são as tensas nuvens que se
movem transparentes em campos espaciais de cores fracas, meio fortes, insossas,
literalmente aguadas, no conjunto. Então, eu, particularmente, talvez por isso
- por achá-las “mal acabadas” - não estava apreciando aquarelas como deveria.
Vi uma terceira razão,
tão subjetiva quanto. As três obras do cartaz são taciturnas. A imagem abstrata
e fria numa impermanência de traços e cores que se desintegram sombrios (a de
Danilo). O perfil de um(a) menino(a) negro(a) de expressão fortemente soturno
como quem chora (a de Darci). Uma mulher sem rosto em posição corporal fechada
como quem está triste, insegura, numa atitude de espera (a de Ueliton). Na
exposição, esta obra de Ueliton sofre alteração. Desta feita, a mulher do
cartaz ganha na parede um rosto de traços indígenas e uma melancolia ainda mais
flagrante.
Eu estava, já ali
diante do cartaz, incomodado com a sua forma/disposição/conteúdo. Parei no
incômodo. Passou. Não fui à abertura da exposição. Não quis correr risco. A
pandemia continua a toda. Fui depois. Eu precisava colocar em questão a
impressão que tive ao ver o cartaz de divulgação. Queria interpelar no espaço
da galeria. Ele estaria representando, de fato, a exposição ou foi só uma “má
escolha” de quem o produziu?
Confiro. Concluo. Fato. O cartaz representa com rigor o sentimento da exposição. Foram as escolhas de quem o fez baseadas com justeza no espirito comum das obras em sua relação com o espirito do tempo em que vivem os artistas. Porque digo isso? Vamos à galeria.
A galeria (foto 2) se
apresenta inteira nos seus quatro quantos com fundo de cor escura recebendo as
obras linearmente enfileiradas em toda a sua extensão. Sinto uma urgente
impaciência no processo de sua montagem. Grande parte das obras não está
emoldurada. Quase um desleixo? Vejo a galeria como um vão sem movimento. De
disposição espacial apática. Uma preguiça com tom de desesperança. A coletiva
não tem programa, prospecto ou qualquer orientação textual. No seu espaço,
nenhuma palavra além das peças plásticas. O que não queriam nos dizer se não
pelo todo? E uma das obras estampa como pista o comovente título “Poéticas das
ilusões felizes IV” (De Danilo). Ilusão como delírio, burla, decepção.
Esperança vã.
Tateando o espaço vejo
telas “borradas”, “aguadas”, transluzentes de abstratas perspectivas
taciturnas... Quase sem gente - sem felicidade (em Danilo); de pinceladas tão
fortes como gritos cortantes em tons indo para os escuros lambuzados... De
vidas e paisagens isoladamente distantes (em Uelinton), e de tons luminosos
demais - bem calados de tanto - em seus corpos mofinos de uma erótica frustrada
(em Darci).
Tudo isso não é senão
um estado pandêmico em espírito?
Ninguém escapa do tempo
em que vive. Não importa se em movimento ou parado. Não importa se o ignora.
Não é uma questão de não querer estar nele. O tempo não abandona, não
menospreza nada e todos estão inexoravelmente nele incrustados. De uma forma ou
de outra, inapelavelmente, todos nós estamos imersos no agora, o tempo
pandêmico. Por isso quando nos manifestamos, desejando ou não fugir dele, ele
se apresenta incontestável.
Pela minha percepção
das percepções dos artistas - a minha leitura delas em suas leituras do tempo -
eis o estado/ordem da pandemia impresso em Afluentes Aquareláveis.
O cartaz é fiel. A
exposição, arte. Feio é o tempo.
João Veras
10/02/22
Gostei de sua leitura. Também me intriguei quando vi o cartaz e fui lá conferir. Quando vamos em uma galeria sempre esperamos algo de impactante seja pelas obras, seja por seus dispositivos e recursos de visualização que possam torná-las atraentes. Fui numa tarde, sem movimento, o prazo já havia expirado e o SESC resolveu estender, pouca visitação por conta da pandemia? Senti um ar de melancolia, solidão, desinteresse. As obras "poéticas das ilusões" de Danilo pareciam dizer tudo. Vi um "Q" de desânimo nos artistas e vi um "Q" de felicidade. Estamos vivos! A arte resiste em sombras!
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