terça-feira, 20 de setembro de 2022

Revista O Cruzeiro: AS DUAS METADES DO ACRE

 

AS DUAS METADES DO ACRE

O último capítulo da Epopeia Bandeirante – Conquista e incorporação do Acre – Uma história dividida ao meio como a região em que processou – O combate de Nuevo Iquitos – Plácido de Castro e Taumaturgo de Azevedo.

 

Por Gustavo Barroso

(Da Academia Brasileira de Letras – Diretor do Museu Histórico)


Ainda está para ser feita devidamente a história da conquista do Acre, última página da nossa epopeia bandeirante, capítulo final da nossa Marcha para o Oeste, escrita com letras de sangue pelos filhos do Nordeste, muito especialmente do Ceará. Em geral, quando se fala da entrada do Acre na História do Brasil, traça-se este esquema: Acre, Bolívia, Plácido de Castro e Rio Branco. Plácido de Castro é o herói epônimo da região, o polarizado da resistência armada ao boliviano, a quem a argúcia do Barão no Tratado de Petrópolis arranca definitivamente o território. Mas este é um mundo de águas, terras e florestas, tal a sua extensão, de maneira que, sem o auxílio da geofísica dessa região, não poderemos compreender os sucessos históricos que a integraram para sempre no todo brasileiro. E, em consequência, a sua geopolítica nos levará ao traçado complementar de outro esquema: Acre, Peru, Taumaturgo de Azevedo, Rio Branco.

Vejamos agora o porquê:

O ilustre Dr. Manuel Onofre de Andrade, atualmente Promotor em Goiás, profundo conhecedor do assunto, em trabalho inédito de definição da verdade histórica, escreveu-me: “Não se trata de demolir um dos ídolos do Acre, Plácido de Castro; mas é justo de início ponderar o seguinte: o nosso mais antigo território se divide em duas metades incomunicáveis, a bacia do Purus-Acre, onde hoje se situa a capital, e a do Juruá-Tarauacá. É claro que que a vitória de Plácido de Castro apenas assegurou a posse do Brasil em uma dessas metades. Note-se ainda que a zona acreana tomada por suas armas se limita com a Bolívia, enquanto a região do Juruá tem por vizinhança o Peru, Departamento de Loreto. Logo, ficará exposta a seus próprios recursos tão extensa faixa de terras. Por um erro de chancelaria, anterior ao inexcedido Barão do Rio Branco, chegara ele a ser entregue oficialmente à República Peruana. Para que se tenha exata ideia do que é o Acre, bastará o depoimento da competente Comissão de Engenheiros, investigadores da possibilidade de depósitos de petróleo no Rio Moa, da mesma Bacia Juruaense, em relatório que prende a atenção do mais culto leitor, em edição de 1938: “O Território do Acre é a única unidade da Federação que tem cem por cento de matas cobrindo a sua superfície. Acha-se todo ele localizado na Planície Amazônica, drenado por duas importantes correntes: Rios Juruá Purus, suas únicas vias de acesso. Fica, assim, o Território naturalmente dividido em duas regiões distintas, cada qual com sua vida própria, tendo seus problemas ligados aos das vias naturais de escoamento, portanto é absoluta e fatal a falta de comunicações terrestres entre as duas bacias.” E acrescenta o douto relatório: “Para se ir de sua sede – Rio Branco a Cruzeiro do Sul, no Alto Juruá, deve-se descer o Rio Acre, alcançar o Purus, chegar a Manaus e aí aguardar transporte para subir o Juruá e alcançar enfim o ponto de destino numa viagem de cerca de dois meses.” Ora, se essa foi a rota dos ilustres engenheiros patrícios para atingir o Rio Moa acima da cidade de Cruzeiro do Sul, é evidente que os brasileiros situados na outra metade acreana jamais poderiam socorrer tão grande trecho no ano de 1904 a luta e a vitória foram dos responsáveis militares e de seus voluntários pela bacia adentro do Rio Juruá e seus afluentes.”

As palavras do Dr. Manuel Onofre de Andrade e a exposição da Comissão de Engenheiros, com uma claridade verdadeiramente cartesiana na sua argumentação, nos mostram a imensidade acreana dividida em dias partes estanques, de vez que a penetração realizada pelos seringueiros sempre se fizera subindo os rios e se ramificando pelos seus afluentes, de modo que o recesso das terras entre as grandes bacias fluviais permanecia indevassado. Fui contemporâneo, na minha adolescência, passada no Ceará, das grandes migrações de sertanejos para os igarapés amazônicos. Lembro-me bem, quando ainda menino de colégio, da seca de 1898, que quase despovoa o Estado para estaquear de ossadas de heróis anônimos os pântanos do Amazonas e do Acre. Em 1899, o Grande Rodolfo Teófilo, hoje tão esquecido, publicava em Fortaleza o seu formidável romance “O Paroara”, no qual descreve com as tintas da verdade a triste e silenciosa epopeia dos seringais. E até mesmo conheci um desses grandes bandeirantes da penetração naquele Inferno Verde, que, certa vez, entrara pelo Rio Amonea com 800 cearenses, dos quais sobraram unicamente dez, contando com ele próprio. Era o famoso Alexandre de Oliveira Lima, popularmente chamado Lixandre Liveira Lima, que, por isso, marcada sua borracha com três LLL, e apelidado o Barão da Boca do Amonea, tal seu poderio naquelas paragens.

Desta sorte, compreendendo o Acre nas suas duas metades, incomunicáveis pelo interior das terras, compreender-se-á que o processo histórico da luta por sua incorporação ao todo nacional, tanto quanto o da penetração seringueira, teve de ser condicionado a essa diferenciação. Do que se conclui que temos sempre, em jornais e livros, referido e glorificado a conquista da bacia Purus-Acre, esquecendo quase completamente a do Juruá-Tarauacá. Torna-se necessário, pois, uma síntese que nos dê de fato a visão panorâmica total.

Esta é a tese pela qual se bate o Dr. Manuel Onofre de Andrade, colhendo o depoimento de sobreviventes idôneos daqueles acontecimentos. Diz, por exemplo, o farmacêutico Mário de Oliveira Lobão, que chegara a Cruzeiro do Sul, no Juruá, em 24 de outubro de 1904, sendo testemunha da luta em prol da incorporação ao Brasil daquela metade do Acre:

De ordem do Coronel Gregório Taumaturgo de Azevedo, sendo Comandante do 15.º Batalhão de Infantaria o Coronel maranhense, Cipriano Alcides dos Santos, foi confiada a direção da avançada pelo rio Amonea ao Capitão sergipano Francisco de Ávila e Silva. Para isso, a 25 ou 26 de outubro de 1904, partiram da localidade já denominada Invencível os gaiolas ou navios fluviais “Moa”, da firma Melo & Cia., comandado por Alexandre Sussuarana e tendo como prático Heitor Bentes de Sousa e “Contreiras”, da propriedade de Hermínio Contreiras de Oliveira, tendo como Capitão, Luís Martins e como prático, Benvindo Luís e Romão Solimões, ambos levando 50 soldados do Exército sob as ordens do Capitão Francisco de Ávila e Silva, acompanhado pelo Delegado de Polícia, Tenente Guapindaia. Participava da expedição o jornalista português Fran Pacheco, nomeado pelo Coronel Taumaturgo, Secretário da Prefeitura do Alto Juruá. A finalidade da expedição era expulsar ou prender na região do Amonea os cobradores de impostos do Peru, que apoiados num destacamento do Exército, arrecadava dinheiro dos nossos seringalistas ali localizados e até se tinham estabelecido num lugarejo a que chamaram Nuevo Iquitos, atual Vila Taumaturgo.

A 2 de novembro de 1904, de acordo com a testemunha já nomeada, os vapores chegaram à Praia do Feijó, onde o “Contreiras” passou a navegar na frente do “Moa”, reforçado com mais 10 homens. Assim chegaram no dia 4 ao Seringal Minas Gerais, de Luís de Melo, fronteiro a Nuevo Iquitos. Ali, o Tenente peruano D. Severo Ramirez exigiu os impostos do Comandante do “Contreiras”, sendo aprisionado com as 4 praças que o acompanhavam. E, logo, o “gaiola” rumou para o Rio Tejo sob a fuzilaria do destacamento inimigo que ocupava a barranca marginal. Não houve vítimas a lamentar e os expedicionários alcançaram à tarde o seringal de Francisco Bonifácio da Costa, na foz do Tejo.

Tinha os peruanos no local 80 homens bem armados e municiados, dispondo de metralhadoras, sob as ordens do General Suarez. Os dois “gaiolas” não puderam combinar um ataque à posição inimiga, devido a ter o “Moa” encalhado e a dificuldades outras de navegação, em virtude da baixa das águas. Mas o destacamento brasileiro em batelões e canoas penetrou os igarapés, desembarcou e tomou posição para atacá-la por três lados: no seringal fronteiro, Minas Gerais, na margem direita do Juruá e por trás de Nuevo Iquitos. Muitos seringueiros armados reforçaram as 50 praças de infantaria. O capitão Ávila ficou no seringal, o Tenente Mateus na barranca do Juruá e o ex-Cadete da Escola Militar de Fortaleza, Oséas Cardoso na terceira face do ataque. Intimados a capitular, os peruanos recusaram e começou o fogo de parte a parte, que durou até as 5 horas da manhã do dia 5 de novembro. Então, cercado e maltratado pela fuzilaria certeira dos seringueiros, o Coronel Ramirez rendeu-se com as honras da guerra, recolhendo-se ao Departamento de Loreto. Os peruanos perderam 9 homens e tiveram muitos feridos. Os brasileiros perderam somente um e tiveram poucos feridos. O farmacêutico Lobão, que viajava no “Contreiras”, foi quem os socorreu com os medicamentos que levava.

Ao Dr. Manuel Onofre de Andrade, o Comandante Heitor Bentes de Sousa, que servira como prático num dos “gaiolas” da expedição, corroborou nas linhas gerais o depoimento acima, acrescentando que, na luta armada contra as tropas peruanas, o seringalista Francisco Bonifácio da Costa armara e sustentara 100 voluntários, e nela participaram com brilho o jornalista Carlos Chauvin e vários cadetes que tinha sido expulsos por indisciplina da Escola Militar de Fortaleza, como esses: Gastão Souto, Francisco Januário de Assis e Urbano Müller, irmão do Ministro Lauro Müller, que faleceu como Tabelião no Rio de Janeiro.

O relatório sobre a expulsão pelas armas dos soldados peruanos que transpuseram os limites do Rio Breu e se adentraram em terras já brasileiras como as do Amonea, conquistadas pelos cearenses de Lixandre Liveira Lima, Barão da Boca do Amonea, foi escrito e apresentado ao Governo Federal pelo próprio Coronel Taumaturgo de Azevedo. Ele conta a empresa realizada naquelas paragens e põe sobretudo em relevo os serviços do Capitão Francisco de Ávila e Silva e do Tenente Fernando Guapindaia de Sousa Brejense, no combate de Nuevo Iquitos, que durou até a capitulação de Ramirez, 22 horas. No mesmo documento, declara ufanar-se, e com razão, de dois acontecimentos: “O de ter sido o originador da Questão do Acre, em 1885, pela qual me bati, despendi e sofri, e de haver cumprido o dever patriótico de expulsar do Território, a 5 de novembro de 1904, os intrusos que nele campeavam havia mais de dois anos”.

Eis as razões por que se bate o Dr. Onofre de Andrade, a fim de que seja feita justiça histórica à ação do General Taumaturgo de Azevedo na incorporação do Acre ao Brasil, sem prejuízo da glória incomparável de Plácido de Castro, pois que diversas e distantes são as regiões do Território em que ambos atuaram. Na verdade, como engenheiro militar, na última década da Monarquia, Taumaturgo de Azevedo fora demarcador oficial daquelas terras e com tal ardor protestara contra a entrega das mesmas aos nossos vizinhos, que as disputavam, que, por isso, o submeteram a Conselho de Guerra. Levara a questão à imprensa e publicara um livro, “O Acre”, que chamou para o assunto a esclarecida atenção de Rui Barbosa e de Rio Branco. O ilustre militar governou o Amazonas, o Piauí e a cidade do Rio de Janeiro com honestidade e proficiência, presidiu a Comissão de Limites com o Peru, traçou a planta da cidade de Cruzeiro do Sul de que foi Prefeito, comandou a Brigada Policial do Distrito Federal e, nos últimos tempos de sua vida, deu à Cruz Vermelha o melhor de seus esforços.

É essa figura que não deve ficar esquecida na história da Conquista e Incorporação do Acre ao Brasil.

 

 

BARROSO, Gustavo. As duas metades do Acre. O Cruzeiro (Revista), Rio de Janeiro, 13 setembro de 1952, ano 24, n. 48, p. 29-31; 82.

Nota: “As duas metades do Acre”, de Gustavo Barroso, também encontra-se, às páginas 21 à 28, transcrito no opúsculo “Amazônia: o papel decisivo do Mal. Taumaturgo de Azevedo na questão do Acre” (1968), de Manuel Onofre.

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