terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

SOBRE PARA “AQUÉM OU PARA ALÉM DE NÓS”

Isaac Melo

 

Richard Rorty, filósofo estadunidense, com a sua proposta de uma filosofia da cultura, entendia que o filósofo deveria estar disposto a dialogar com as várias áreas das ciências humanas, principalmente com a literatura e a história. Sobretudo a partir da pós-modernidade, a filosofia desceu do pedestal, onde, por longos séculos, reinou inconteste, como a mãe de todas as ciências. Para Rorty, é preciso chegar à filosofia por outros caminhos que não o habitual, como a literatura, o cinema, a arte, etc. 

É neste sentido que penso o livro de Neiza Teixeira: “Para aquém ou para além de nós: uma contribuição do pensamento “primitivo” ou “bárbaro” para o pensar do futuro” (Valer, 2022, 3ª ed.). A riqueza da diversidade das narrativas míticas indígenas brasileiras, sobremaneira as amazônicas, apesar de relativamente conhecidas, são, todavia, parcamente estudadas, ainda mais, sob a ótica filosófica.

Neiza mergulha a fundo nessas fontes primitivas do pensamento mítico indígena, sobretudo a partir do recorte dessana, mais especificamente, aquelas oriundas da obra “Antes o mundo não existia”, de Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, publicada pela primeira vez em 1980, considerado o primeiro livro brasileiro escrito e ilustrado por um indígena. A autora, com muita competência, manuseia os conceitos fundamentais da filosofia, para extrair deles, os elementos essenciais com que vai tecer a analítica de seu trabalho.

Nesse sentido, é que a filósofa discute o conceito de mito, recorrendo e discutindo alguns dos principais nomes da tradição filosófica acerca do tema, até a culminância do conceito de “mito vivo” ou dos povos que vivem o “mito vivo”. Por isso, ela afirma: “O espaço amazônico, como outros espaços do interior do Brasil devem ser olhados com respeito e com cuidado, pois nesses lugares a Memória, essa que nos interessa, ainda reside, onde, por fortuna do destino, ainda existem povos que vivem o “mito vivo” (p. 117). Não, diria, talvez, por “fortuna do destino”, mas pela secular luta e resistência desses povos.

Os mitos são essenciais para a memória ancestral dos povos, e, de certa forma, gerador de identidade. Em cada um de nós habita uma memória ancestral. De modo que, o extermínio dos povos indígenas é o extermínio da memória do mundo: “o que vivenciamos hoje é mais aterrador do que o vivido pelos povos anteriores ao pensamento racional, uma vez que, se não permitirmos a sobrevivência dos “nossos primitivos”, estaremos eliminando, para sempre, a Memória do nosso mundo. Pensar essa possibilidade é monstruoso. É desolador.” (p. 122)

Se a ciência ocidental, ou pelo menos um certo modelo de ciência, foi responsável, pela dessacralização da natureza, o mito restabelece essa sacralização necessária. Entre outros, Neiza exemplifica a partir da deusa Dessana Yebá Buró, a mãe da humanidade, quando afirma que “o indígena Dessana é um ser cultural por excelência e de que a criação do seu mundo, um trabalho completamente efetivado pelos deuses ou pelos heróis civilizadores, inviabiliza que ele possa desenvolver, ao contrário de nós, a liberdade de criar e transformar o mundo, engendrando, assim, uma maneira de ser e de estar que resulta na construção de um mundo dessacralizado. O mundo de uma sociedade “tradicional”, estruturada no “pensamento bárbaro”, funda-se na sua criação, portanto, tornando-se ontológico e, ao mesmo tempo, sagrado” (p. 213)

A ciência não prescinde do mito, assim como o mito não é impedimento para a ciência. Neste sentido, para a autora, “estudar o mito como objeto próprio e relacioná-lo com outras culturas é uma maneira de encontrarmos uma via segura e um ponto fixo entre eles, desfazendo os preconceitos e o etnocentrismo, que vêm, ao longo dos tempos, embaçando a nossa visão, quando o tema é re-conhecer os povos que foram ou são diferentes de nós ou que fazem um percurso que não é o nosso” (p. 250).

Ao analisar a compatibilidade entre os mitos gregos, dessana e genésico, Neiza nos afirma que “é necessário que a cultura ocidental, firmada sobre a crença na Ciência, procure outras formas de pensamento, diferentes das suas e que não nos cheguem como conhecimentos exóticos, mas como saberes que podem trazer algo verdadeiramente importante para a nossa vida prática.” (p. 255)

Nesse tempo, que continua de violência extremada contra os povos indígenas, como o genocídio que o Brasil e o mundo testemunham contra os Yanomami, que vivem o mito vivo, “Para aquém ou para além de nós” é uma leitura que se faz necessária. É um livro de alteridade. De pertença e de reconhecimento do outro. Uma obra que afirma que é possível e “sustentável uma forma mito-poética de ver o mundo”.

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