Isaac Melo
Richard Rorty, filósofo estadunidense, com a
sua proposta de uma filosofia da cultura, entendia que o filósofo deveria estar
disposto a dialogar com as várias áreas das ciências humanas, principalmente
com a literatura e a história. Sobretudo a partir da pós-modernidade, a
filosofia desceu do pedestal, onde, por longos séculos, reinou inconteste, como
a mãe de todas as ciências. Para Rorty, é preciso chegar à filosofia por outros
caminhos que não o habitual, como a literatura, o cinema, a arte, etc.
É neste sentido que penso o livro de Neiza
Teixeira: “Para aquém ou para além de nós: uma contribuição do pensamento
“primitivo” ou “bárbaro” para o pensar do futuro” (Valer, 2022, 3ª ed.). A
riqueza da diversidade das narrativas míticas indígenas brasileiras,
sobremaneira as amazônicas, apesar de relativamente conhecidas, são, todavia,
parcamente estudadas, ainda mais, sob a ótica filosófica.
Neiza mergulha a fundo nessas fontes primitivas
do pensamento mítico indígena, sobretudo a partir do recorte dessana, mais
especificamente, aquelas oriundas da obra “Antes o mundo não existia”, de
Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, publicada pela primeira vez em 1980,
considerado o primeiro livro brasileiro escrito e ilustrado por um indígena. A
autora, com muita competência, manuseia os conceitos fundamentais da filosofia,
para extrair deles, os elementos essenciais com que vai tecer a analítica de
seu trabalho.
Nesse sentido, é que a filósofa discute o
conceito de mito, recorrendo e discutindo alguns dos principais nomes da
tradição filosófica acerca do tema, até a culminância do conceito de “mito
vivo” ou dos povos que vivem o “mito vivo”. Por isso, ela afirma: “O espaço amazônico,
como outros espaços do interior do Brasil devem ser olhados com respeito e com
cuidado, pois nesses lugares a Memória, essa que nos interessa, ainda reside,
onde, por fortuna do destino, ainda existem povos que vivem o “mito vivo” (p.
117). Não, diria, talvez, por “fortuna do destino”, mas pela secular luta e
resistência desses povos.
Os mitos são essenciais para a memória
ancestral dos povos, e, de certa forma, gerador de identidade. Em cada um de
nós habita uma memória ancestral. De modo que, o extermínio dos povos indígenas
é o extermínio da memória do mundo: “o que vivenciamos hoje é mais aterrador do
que o vivido pelos povos anteriores ao pensamento racional, uma vez que, se não
permitirmos a sobrevivência dos “nossos primitivos”, estaremos eliminando, para
sempre, a Memória do nosso mundo. Pensar essa possibilidade é monstruoso. É
desolador.” (p. 122)
Se a ciência ocidental, ou pelo menos um certo
modelo de ciência, foi responsável, pela dessacralização da natureza, o mito
restabelece essa sacralização necessária. Entre outros, Neiza exemplifica a
partir da deusa Dessana Yebá Buró, a mãe da humanidade, quando afirma que “o
indígena Dessana é um ser cultural por excelência e de que a criação do seu
mundo, um trabalho completamente efetivado pelos deuses ou pelos heróis
civilizadores, inviabiliza que ele possa desenvolver, ao contrário de nós, a
liberdade de criar e transformar o mundo, engendrando, assim, uma maneira de
ser e de estar que resulta na construção de um mundo dessacralizado. O mundo de
uma sociedade “tradicional”, estruturada no “pensamento bárbaro”, funda-se na
sua criação, portanto, tornando-se ontológico e, ao mesmo tempo, sagrado” (p.
213)
A ciência não prescinde do mito, assim como o
mito não é impedimento para a ciência. Neste sentido, para a autora, “estudar o
mito como objeto próprio e relacioná-lo com outras culturas é uma maneira de
encontrarmos uma via segura e um ponto fixo entre eles, desfazendo os
preconceitos e o etnocentrismo, que vêm, ao longo dos tempos, embaçando a nossa
visão, quando o tema é re-conhecer os povos que foram ou são diferentes de nós
ou que fazem um percurso que não é o nosso” (p. 250).
Ao analisar a compatibilidade entre os mitos
gregos, dessana e genésico, Neiza nos afirma que “é necessário que a cultura
ocidental, firmada sobre a crença na Ciência, procure outras formas de
pensamento, diferentes das suas e que não nos cheguem como conhecimentos
exóticos, mas como saberes que podem trazer algo verdadeiramente importante
para a nossa vida prática.” (p. 255)
Nesse tempo, que continua de violência
extremada contra os povos indígenas, como o genocídio que o Brasil e o mundo
testemunham contra os Yanomami, que vivem o mito vivo, “Para aquém ou para além
de nós” é uma leitura que se faz necessária. É um livro de alteridade. De
pertença e de reconhecimento do outro. Uma obra que afirma que é possível e
“sustentável uma forma mito-poética de ver o mundo”.
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