O Banquete de Platão, representado por Anselm Feuerbach (1873), Alte
Nationalgalerie, Berlim.
“De que pai ele [Eros] provém”, lhe perguntei; “e
de que mãe?”
“É longa a história”, me falou; “mas, apesar
disso, vou relatá-la. No dia em que nasceu Afrodite, os deuses aprestaram um banquete,
achando-se presente entre eles Poros ou Expediente, filho de Métis ou Invenção.
Já no fim do banquete, chegou Pobreza, com a intenção de aproveitar aquela
oportunidade única para mendigar, e se colocou perto da porta. Nesse entremeio,
Expediente, embriagado de néctar – pois ainda não se conhecia o vinho – penetrou
no jardim de Zeus e logo adormeceu pesadamente. Então, Pobreza, espicaçada por
sua própria indigência, pensou na possibilidade de ter um filho com Expediente:
deitou-se-lhe ao lado e concebeu Eros. Assim, tornou-se Eros companheiro e
servidor de Afrodite, por ter sido gerado no dia do seu nascimento e por ser
Afrodite bela e ele naturalmente amante das coisas belas. E porque filho de Expediente
e de Pobreza, tocaram-lhe os seguintes predicados: Para começar, é sempre pobre
e está longe de ser delicado e belo, conforme crê o vulgo. Ao revés disso: é
áspero, esquálido e sem calçado nem domicílio certo; só dorme sem agasalho e ao
ar livre, no chão duro, pelas portas das casas e nas estradas. Tendo herdado a
natureza da mãe, é companheiro eterno da indigência. Por outro lado, como filho
de tal pai, vive a excogitar ardis para apanhar tudo o que é belo e bom; é
bravo, audaz, expedito, excelente caçador de homens, fértil em ardis, amigo da
sabedoria, sagacíssimo, filósofo o tempo todo, feiticeiro temível, mágico e
sofista. Por natureza, nem é mortal nem imortal, porém num só dia floresce e
vive, ou morre para renascer logo depois, quando tudo lhe corre bem, de acordo,
sempre, com a natureza paterna. O que adquire hoje, perde amanhã, de forma que
Eros nunca é rico nem pobre e se encontra sempre a meio caminho da sabedoria e
da ignorância. E a razão é a seguinte: nenhum dos deuses se dedica à Filosofia
nem deseja ficar sábio – pois isso ele já é – tal como entre os homens não
precisa filosofar quem já é sábio. Por outro lado, os ignorantes também não se
dedicam à filosofia nem procuram ficar sábios. A ignorância apresenta esse
defeito capital: é que, não sendo nem nela nem boa nem inteligente,
considera-se muito bem-dotada de todos esses predicados. Quem não sente
necessidade de alguma coisa, não deseja vir a possuir aquilo de cuja falta não
se apercebe”.
“Nesse caso, Diotima”, lhe perguntei, “quem é
que se ocupa com a Filosofia, se não o fazem nem os sábios e nem os ignorantes?”
“Até para uma criança”, me respondeu, “é claro
que são os que se encontram entre uns e outros, estando Eros incluído nesse
número. A sabedoria é o que há de mais belo. Ora, sendo Eros amante do belo,
necessariamente será filósofo ou amante da sabedoria, e, como tal, se encontra
colocado entre os sábios e os ignorantes. A razão desse fato, vamos encontrá-la
na sua origem: ele descende de um pai sábio e rico em expedientes, e de uma mãe
nada inteligente e de acanhados recursos. Essa, meu caro Sócrates, é a natureza
de tal demônio. Não é de admirar a ideia que fazias do Amor. Pelo que posso
concluir do que disseste, imaginavas que o Amor fosse apenas o indivíduo amado,
não o que ama. Por isso, quero crer, ele se te afigurava tão belo. Pois, em
verdade, aquilo que amamos é, realmente, belo, delicado, perfeito e bem-aventurado.
Porém o amante é de natureza muito diferente, conforme te expliquei”.
PLATÃO. O Banquete. Texto grego John Burnet; tradução
Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: ed.ufpa, 2011. p. 151-153 (§ 203 b, c, d, e
e § 204 a, b, c)
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