O JARDIM DO PALÁCIO
No princípio
tuas iris
- águas
onde boiaram
minhas iris
- algas
sob arcos
árabes: tuas
duas pálpebras
Agora
varando arcos,
águas, ardo
- silêncio –
entre as palavras p. 30
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A CASA
Ventre-casa de onde saímos
para entrar na casa-ventre de
quatro paredes onde chegamos.
Um entre, onde ficamos em
convívio: pai, filho, espírito, espanto
quando um a um de nós caímos
no tumulto do mundo, largados
à miragem de estar sozinho,
até ver a imagem no espelho
que reflete o invisível, até ouvir
o indizível chamado para
voltar ao ventre, casa
sem uma única parede entre as estrelas
de onde, talvez, nunca tenhamos saído p. 36
֎
TRAVESSIA
Um dia para atravessar – sol
entre duas noites imensas,
tendo como companhia o corpo,
este pequeno animal que não
te pertence e que, sem nada
perguntar, se oferece, devotadamente,
ao tempo, deus também é
o próprio corpo em silêncio
Um dia para transpor tendo por alimento
a poeira da estrada que se estende
branca, do nascente ao poente e
que, lentamente, transforma-se em
riacho negro que passa sob a
ponte suspensa da Via Láctea
Ir, à outra margem, de acordo
com o que a própria ida engendra
Ora com o silvo das serpentes sob o passo
Ora andando sobre as águas do poema p. 38
֎
Considerando a frio, imparcialmente,
que o homem é triste, tosse e, no entanto
se acomoda em seu peito avermelhado,
que ele nada mais é do que compor-se
de dias, que é lúgubre mamífero e se penteia,
considerando isso e lembrando que o dia
é um punhado de pó de estrelas
que a noite, com sua pá, atira
sobre as pálpebras de sono,
que o céu tem som violeta sobre os
cabelos deste homem que trafega no poente
com cheiro de pólvora nas mãos
e que este homem, quando penetra
em sua amada, quer, talvez, voltar
Que o Sol é a solidão às claras
que a lua é um búzio numa toalha gralhazul
gargalhando o destino em crateras
que a sombra que nasceu comigo
espera de meu corpo um gesto que
ele possa, com amor, repeti-lo
Que o silêncio dos noivos é a voz do Amor
procurando uma boca por abrigo
e que as palavras dos que não se entendem
não são mais palavras mas sanguessugas na
língua
Quem, entre dentes, a Roda da Fortuna mastiga o
Fracasso
e que o diabo bebe as suas fezes sorrindo ao
meu lado
Lembrando que amanhã, pela manhã talvez,
o mar venha desfazendo meus membros de areia e
me fazendo lembrar que, ao mesmo tempo,
não lembro de nada, a não ser de um ventre p.
44
֎
RESIDÊNCIA
Ao pisar o jardim da casa
cuidado para não afundar
os pés até os tornozelos fincando
fundas raízes no chão, apegado ali,
estátua plantada entre flores,
não haverá como ir ao mar
quando assolado pelo verão,
nem voltar ao calor do leito
se flagelado pelo inverno
Vivemos partindo de uma morada
que se ergue em todo lugar com
telhas de nuvens e paredes de vento
Não há o que abandonar quando,
caracol inverso, levamos a casa dentro p. 64
֎
Feito Ishmael em Moby Dick,
sempre que sinto na boca uma
amargura crescente, sempre
que há em minha alma um
novembro úmido e chuvoso
é tempo de fazer-me ao mar.
E munido de quase nada, só
da palavra que é puro sopro,
através dela inflo a vela e parto
em dois o ar e a água que levam
a asa da alma e o casco do corpo
ao encontro do belo monstro
que acena do horizonte com seu
olhar verde e vivo: o Desconhecido,
o sempre bem vindo irmão-
gêmeo da criação, ladrão do fogo
lançando envolto em nuvens
pelas frestas dos aposentos
o seguinte clarão: toda a água
em volta da casa já está estagnada,
pasto para hordas de mosquitos.
E, ouvindo isto, feito Ishmael
parto em dois o mar – poema
sempre a um passo do abismo p. 70
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A SOMBRA DA AUSÊNCIA
O corpo vai, a sombra fica.
Um eco sem voz que assombra
a sala, a mala sendo arrumada
para a viagem, que, dia-a-dia
se faz um pouco sem saber se
é volta ou ida – O copo quebra,
o sabor fica, a aura de um hálito
em torno à boca que se intensifica,
quando um conhecido fantasma
passa pelos terraços da memória
e evoca um nome, um aroma, uma
hora perdida entre as folhas secas
de um outono que se deteriora
conforme a mão do inverno o toca.
O céu se ensombra, o azul fica.
Em alguma dobra das pálpebras
da íris, dos cílios, sua luz habita p. 82
MOURO, Antônio. Silence river (Rio silêncio).
Translated by Stefan Tobler. Todmorden (Inglaterra): Arc Publications, 2012.
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Silence river (Rio silêncio), do poeta e
tradutor paraense Antônio Moura, edição publicada pela editora inglesa Arc
Publications, em 2012. O livro, em 2008, recebeu o Prêmio John Dryden,
na John Dryden Translation Competition (Londres – Inglaterra), com tradução vertida
para o inglês por Stefan Tobler. A 1ª edição de “Rio Silêncio” é de 2004, pela Lumme
Editor, de São Paulo.
Antônio Moura é autor, entre outros, de “Dez”
(1996); Hong Kong & outros poemas (1999); A sombra da Ausência (2009) e A
outra voz (2018).
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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