CATARINA
Peri Augusto
Libório ouvira falar
muito da Zona Franca de Manaus. Contavam prodígios. Fazia-se fortuna do dia
para a noite O dinheiro corria fácil como no apogeu da borracha. Por isso
sonhava em mudar-se para o Amazonas. Até que um dia tomou coragem. Liquidou o
pequeno comércio que mantinha e que pouco lhe rendia, em Itapipoca, no interior
do Ceará.
Transferiu-se para
Manaus com pequeno capital e a família, constituída da esposa Catarina e dos
filhos Francisco, Vicente e Bárbara. Tão logo chegou, estabeleceu-se com armarinho,
na Rua dos Barés. O negócio não dava para fazer for- tuna. Mas quebrava o galho
e oferecia melhores compensações do que no sertão cearense.
Se prosperou no
comércio, Libório não foi bem de saúde. Velha e mal curada hepatite, contraída
em sua terra, voltou a se manifestar, deixando-o em precárias condições
físicas. Catarina revelou-se, então. Tomou a frente do armarinho e mostrou-se
tão eficiente como no lar.
Quando Libório foi
chamado para o reino do outro mundo, antes de completar um ano na capital
amazonense, Catarina fez-lhe o enterro. Sem muitas lamúrias e poucas velas.
Dedicou-se com o auxílio dos dois filhos ao negócio da Rua dos Barés. Quem a
observava de longe, sem verter lágrimas e sem lamentar a morte do marido,
julgava-a leviana. Sem sentimentos. Mas interiormente sentia a falta do esposo
e mantinha-se fiel. Cultivava uma fidelidade fanática ao falecido.
Apesar de moça e em
condições de contrair segundas núpcias, pois atrativos não lhe faltavam, ela
empregava-se de corpo e alma aos negócios comerciais. Eram a sua e a
sobrevivência dos filhos. As reclamações do sexo muito frequentes ela as sufocava
com chá de erva cidreira, receita que aprendera em sua terra de origem como
calmante.
Catarina não via a vida
passar. Só olhava para seu comércio. Pechinchava o preço das mercadorias,
quando ia comprá-las, nas importadoras e vendia-as no varejo, com grande margem
de lucro. Às vezes ganhava cem por cento. Os fornecedores, dada a seriedade
dela nas transações comerciais e da admiração que inspirava, desde que o marido
morrera, concediam-lhe favores. Davam-lhe prazos dilata- dos, fora das normas.
Catarina era entretanto de pontualidade exemplar. Antes da data de vencimento
de um título, liquidava-o. Sob suas rédeas o armarinho progredia mais do que
nas mãos do finado Libório.
Se era rígida no mundo
dos negócios o era mais ainda na disciplina familiar. Os dois rapazes trabalham
com ela no armarinho. A filha encarregava-se dos afazeres domésticos.
Francisco, o mais velho, que já atingia a maioridade, não ousava sequer fumar
um cigarro na frente dela. Os métodos de Catarina eram censurados. Acusavam-na
de retrógada e de viver no século passado. Dura e inflexível. Não admitia que
se imiscuíssem na sua filosofia de vida.
Se alguém a aconselhava
a botar Bárbara na escola, moça que tinha apenas rudimentares conhecimentos de
leitura adquiridos no grupo escolar de Itapipoca, respondia que mulher devia
ser educada na dureza do lar para saber tratar do marido quando casasse. Se
faziam alusão ao procedimento dos filhos com as moças do bairro, mandava que “amarrassem
suas cabritas porque seus bodes estavam soltos”. Era uma parada a Catarina!
Chamavam-na
pejorativamente de “Paraíba”. Mas ela não ligava para o que dela dissessem. Só
se preocupava com o armarinho e a família. Não tinha satisfações a dar a ninguém.
Nem aos parentes do Ceará escrevia. Aos domingos, à noitinha, com Bárbara na
frente e os outros filhos atrás, dirigiam-se à igreja para ouvir a santa missa.
E triste do filho que inventasse qualquer pretexto para não comparecer ao
ofício religioso.
Bárbara no ardor dos
seus dezesseis anos tinha certas ardências interiores. Muito mais violentas do
que as reclamações sexuais da mãe. O pior é que desconhecia o chá milagroso
para servir de lenitivo. Quando os ímpetos do sexo chegavam, principalmente
quando antecediam os dias perigosos, ficava doidana, como que perseguida pelo
demônio. Roçava-se pelos objetos e móveis da casa. No banheiro por ocasião dos
banhos nem o sabonete livrava-a daquele tormento. Não havia calmante que lhe
servisse. Um fogo abrasador. Não tinha coragem de expor suas perturbações à mãe
para evitar o sermão costumeiro como acontecia com coisas menores.
Estava Bárbara num
desses dias de angústia, quando teve que ir à quitanda, na esquina da rua onde
morava, a do Rosário, no Bairro de São Raimundo. Ia comprar as frutas
recomendadas pela mãe. No caminho encontrou um motorista de caminhão que
pilheriou com ela. Gostou do galanteio, mas fez-se indiferente. Na volta tornou
a encontrá-lo e ouviu novos gracejos. Riu e prosseguiu no seu caminho. No fundo
achou o moço bonito e sentiu-se lisonjeada por despertar desejos.
O motorista, de nome
Romualdo, natural de São Paulo, estava com seu “Mercedes” no conserto, numa
oficina da Rua do Rosário. Como o trabalho demorou mais de uma se- mana, teve
tempo de informar-se sobre a vida solitária de Bárbara. Ficou conhecendo-a em
todos os detalhes. Enquanto a mãe e os irmãos trabalhavam na Rua dos Barés, ela
ficava em casa, sozinha. Diante das informações, sob o pretexto de pedir um
copo d’água, Romualdo bateu à porta da casa. Não se sabe explicar se por
inexperiência ou se por ingenuidade. Se pela lábia do motorista ou se pelo fogo
que a consumia. O certo é que a moça ficou enfeitiçada por Romualdo. Três dias
depois, enquanto aguardava o conserto do carro, o paulista se insinuou e
terminou frequentando a casa como se fosse íntimo. Nem a advertência do pessoal
da mecânica sobre a ferocidade de Catarina fê-lo recuar. Bárbara que em parte
tinha o temperamento voluntarioso e decidido da mãe, entregou-se ao paulista e
acalmou as comichões do sexo.
No dia em que o
caminhão ficou pronto, Romualdo viajou para São Paulo. Levou Bárbara em sua
companhia. Quando se soube da fuga, se grande foi a surpresa, maior foi o
escândalo. Na rua não se falava noutra coisa. Mais por pirraça à mãe de
Bárbara, uma vizinha narrou posteriormente as visitas e a fuga a Catarina. Esta
ficou com mais raiva dela do que da filha por não lhe ter revelado os fatos
antes. Guardou a mágoa no âmago do coração e com o desgosto e a vergonha ficou
mais trancada do que era.
Decorrido um mês da
fuga, Catarina recebeu carta de Bárbara. Narrava suas desditas. Dizia ter sido
seduzida por um homem casado que a abandonara no município de Dourados, em Mato
Grosso. Só não estava passando fome porque empregara-se como doméstica numa
casa de família. Confessava-se arrependida e pedia para voltar. Após a leitura
da missiva passou-a aos filhos. Sem dizer uma palavra de comentário. Depois de
lê-la, no conhecimento da dramática situação de Bárbara, o mais velho sugeriu:
Mãe, vamos buscar a mana.
A coitadinha tá
sofrendo ponderou o mais novo. Não foi a resposta fria e seca de Catarina. Se
ela nasceu para quenga, quenga será.
E não admitiu que se
tocasse mais no assunto.
AUGUSTO, Peri. Catarina e outras estórias
curtas de amor. Manaus: Editora Calderaro, s/d. p. 7-12
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