Albert Camus (1913-1960) escreveu quatro peças: Calígula, O Mal-Entendido, Estado de Sítio e Os Justos. Estado de Sítio estreou no teatro Marigny, de Paris, em 27 de Outubro de 1948. A peça é composta de um prólogo e três partes. O prólogo mostra os habitantes de Cádiz (Espanha) amedrontados com a aparição de um misterioso cometa. A primeira parte apresenta a vida normal da cidade, com suas alegrias, preocupações, misérias, artinhas. A segunda mostra os absurdos de uma burocracia levada ao extremo, criada para gerar o desentendimento entre as pessoas. Por fim, a derrota final da Peste, acossada pelo povo que Diogo incita à rebelião. Em Estado de Sítio temos o anseio de liberdade representado pela cidade de Cádiz, a ternura de Diogo pelo povo comum, com todas as suas mesquinharias e suas acanhadas generosidades e a aversão a qualquer totalitarismo e aos programas niilistas.
No trecho abaixo, diante do corpo de Vitória, sua amada, Diogo propõe à Peste trocar a vida dele pela da moça. Todavia, a Peste (símbolo dos ditadores) sugere trocar a vida dos dois em troca do domínio absoluto sobre a cidade. Diogo recusa-se, afirmando que ele não se julga com o direito de sacrificar o bem-estar do povo para conquistar a sua felicidade pessoal. A Peste procura ainda convencê-lo a não se sacrificar em nome de uma gente tão pequena e covarde, que nem sequer tem condições de apreciar com justiça tamanha nobreza de sentimentos. São inúteis os convites e as críticas, Diogo deixa-se morrer...
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DIOGO
É duro morrer.
A PESTE
É duro.
DIOGO
Mas é duro para todos.
A PESTE
Imbecil! Dez anos do amor desta mulher valem mais do que um século da liberdade destes homens.
DIOGO
O amor desta mulher é meu reino, meu, apenas. Posso fazer dele o que quiser. Mas a liberdade desses homens pertence-lhes. Não posso dispor dela.
A PESTE
Ninguém pode ser feliz, sem fazer mal aos outros. É a justiça desta terra.
DIOGO
Não nasci para consentir nessa justiça.
A PESTE
Quem te pede para consentir? A ordem do mundo não mudará, ao sabor de teus desejos. Se queres mudá-la, deixa teus sonhos e toma conhecimento de tua realidade.
DIOGO
Não. Conheço a receita: é preciso matar, para suprimir o assassínio; violentar, para reparar a injustiça. Há séculos que isso dura! Há séculos que os senhores de tua raça apodrecem a chaga do mundo, sob o pretexto de curá-la – e, no entanto, continuam a vangloriar-se de sua receita, uma vez que ninguém lhes riu na cara!
A PESTE
Ninguém ri, porque realizo. Sou eficaz.
DIOGO
Eficaz, claro! E prático. Como o machado!
A PESTE
Basta, pelo menos, olhar os homens. Sabe-se, então, que toda justiça é bastante boa para eles.
DIOGO
Depois que as portas desta cidade se fecharam, tive todo o tempo para olhá-lhos.
A PESTE
Então, já sabes que eles te deixarão sempre só. E o homem só deve morrer.
DIOGO
Não. É uma tese falsa. Se eu fosse só, tudo seria fácil. Mas, por bem ou por mal, eles estão comigo.
A PESTE
Belo rebanho, na verdade. Mas cheira mal.
DIOGO
Sei que eles não são puros. Eu também não o sou. Além disso, nasci entre eles. Vivo para a minha cidade e para a minha época.
A PESTE
A época dos escravos!
DIOGO
A época dos homens livres!
A PESTE
Espantas-me. Em vão os busco. Onde estão eles?
DIOGO
Em tuas prisões e em teus cemitérios. Os escravos estão nos tronos.
A PESTE
Veste teus homens livres com o uniforme de minha polícia e verás em que eles se transformam.
DIOGO
É verdade que lhes acontece serem convardes e cruéis. É por isso que não têm, mais do que tu, o direito ao poder. Homem algum tem bastante virtude para que se lhe possa ser permitido o poder absoluto. Mas é por isso também que esses homens têm o direito à compaixão que te será recusada.
A PESTE
A covardia é viver como eles vivem: pequenos, necessitados, sempre na mediocridade.
DIOGO
É na mediocridade que eu os amo. E se não for fiel à pobre verdade que partilho com eles, como o seria ao que tenho de maior e de mais solitário?
A PESTE
A única fidelidade que conheço é o desprezo. (mostra o Coro, prostrado, no pátio.) Olha! Vale a pena
DIOGO
Só desprezo os carrascos. Faças o que fizeres, esses homens serão maiores do que tu. Se lhes acontece, uma vez, matar, é na loucura de um instante. Tu, não. Tu massacras segundo a lei e a lógica. Não troces de suas cabeças curvadas, pois há séculos o cometa do medo passa por cima deles. Não rias de seu ar de temor: há séculos eles morrem e seu amor é dilacerado. O maior de seus crimes terá sempre uma desculpa. Mas não encontro desculpas para o crime que, em todos os tempos, têm cometido contra eles e que, para arrematar, tiveste a idéia de codificar nessa imunda ordem que é a tua. (A Peste avança para ele.) Não baixarei os olhos!
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CAMUS, Albert. Estado de Sítio / O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (p. 135-139)
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