Voltaire
Certo dia Azora regressou de um passeio muito irada e com grande exclamações.
– O que você tem, minha querida esposa? Quem a colocou nesse estado?
– Ah! Você ficaria como eu, se visses o que presenciei. Fui levar conforto à viúva Cosru, que faz dois dias construiu um túmulo para seu jovem marido, perto do córrego que banha as redondezas. Na sua aflição, havia prometido aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto corressem a seu lado as águas do córrego.
– Pois então! Aí está uma louvável mulher, que amava de verdade seu marido!
– Ah! Se você soubesse no que ela se ocupava quando fui visitá-la!
– No quê, minha bela Azora?
– Ela estava mandando desviar o córrego.
E Azora estendeu-se em tais insultos, explodiu em recriminações tão violentas que em nada agradou a Zadig tanta ostentação de virtude.
Tinha este um amigo, chamado Cador, que era um daqueles jovens aos quais sua mulher atribuía mais virtudes e méritos que aos outros; confiou-lhe os seus pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente. Azora, que havia passado dois dias no campo em casa de uma amiga, voltou no terceiro dia. Criados em lágrimas anunciaram-lhe que o marido tinha morrido de repente naquela noite e que, não ousando levar-lhe essa terrível notícia, acabavam de enterrá-lo no túmulo de seus pais, no fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos e jurou morrer. À noite, Cador pediu licença para lhe falar, e os dois choraram. No dia seguinte, choraram menos, e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo havia lhe deixado a maior parte da sua fortuna, e deu a entender que, para ele, a maior felicidade seria compartilhá-la com Azora. A mulher chorou, irritou-se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar; conversaram com mais confiança. Azora fez elogio ao defunto; mas confessou que em vida Zadig possuíra alguns defeitos dos quais Cador era isento.
Durante a ceia, Cador quixou-se de uma violenta pontada no baço; a mulher, nervosa e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, para ver se alguma não seria boa para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em Babilônia; dignou-se até tocar no ponto onde Cador sentia dores tão fortes.
– Você costuma ter muitos desses cruéis ataques? – perguntou-lhe, cheia de compaixão.
– Às vezes eles me levam à beira do túmulo, e só há um remédio que me alivia: é aplicar no local o nariz de um homem falecido na véspera.
– Estranho remédio! – espantou-se Azora.
– Não mais estranho – retrucou Cador – do que os saquinhos do sr. Arnoult contra apoplexia.
A esse raciocínio, juntamente com os extraordinários méritos do rapaz, rendeu-se afinal a mulher. “Em todo caso”, pensou ela, “quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael lhe impedirá a passagem só porque ele terá o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira?”. Pegou, então, uma navalha; foi até o túmulo do marido; regou-o de lágrimas e aproximou-se para cortar o nariz de zadig, que encontrou deitado no túmulo. Zadig levantou-se, defendendo o nariz com uma das mãos e reprimindo a navalha com a outra.
– Senhora – disse ele –, não brade tanto assim contra a viúva Cosru: o plano de me cortar o nariz é o equivalente ao de desviar um córrego.
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VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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