Desde que saiu de sua terra, por mais que tenha se esforçado, Dona Violeta Cardoso não achou mais rumo nem prumo. Seu estado passou a ser depressivo, a viver sob fortes medicações e a cultuar a tristeza. Deixou amigos e irmãos longe e isso não lhe traz de volta a alegria. A idade lhe está pesando toneladas.
Em terras novas, perto de seus filhos e netos, sente-se desesperadamente só. É que os filhos, depois que formam família, viram outra entidade. Via de regra, sim.
Os dias de Dona Violeta, na lerdeza das medicações, resumem-se a ficar numa cadeira na cozinha, onde marcou território, ou no quarto, dormindo a perder de vista. Uma situação quase vegetativa, poder-se-ia afirmar. Aqui, acolá, atacada por algum tipo de aborrecimento ou de saudade, chora silenciosamente.
Casa de Vidro, 1951, Lina Bo Bardi. |
Dia desses um dos seus meninos acabou de construir sua bela mansão envidraçada e para lá mudou-se. Não se trata de uma simples mansão, mas uma mansão com três cozinhas, assim dispostas: a primeira e mais completa, nos moldes das construções americanas, é integrada com o grande salão de estar. Um balcão de mármore que serve de bar, iluminado com lustres coloridos, guarda o painel onde estão embutidos fornos elétricos, geladeira e freeze de aço inoxidável e um fogão que não levanta chamas, desses para lá de atuais. Tudo de extremado bom gosto e modernidade.
A segunda cozinha, menos luxuosa, faz parte da área da piscina, o chamado "espaço gourmet". Ali estão uma churrasqueira elétrica e todos os elementos necessários à feitura de grandes churrascadas. Por fim, lá no fundão, junto com a lavanderia, está a terceira cozinha, também dotada de todos os equipamentos e eletrodomésticos. Segundo os donos da casa, é nela que a empregada cozinhará e fará a “sujeirada”, evitando, desta forma que circule pelo corpo da casa não somente o cheiro da comida, como o da empregada, também.
Embora assustada com a suntuosidade, Dona Violeta Cardoso nada falou. Nem elogios, nem críticas. Desgostosa, bastante envergonhada, ficou quando soube que uma das serviçais havia sido demitida “por justa causa”, pelo simples fato de, na hora do lanche, haver oferecido uns salgados e um copo de refrigerante a um braçal, quase idoso, que carregava os objetos mais pesados da mudança. Esse simples gesto, no severo julgamento dos donos da casa, foi interpretado como um enxerimento próprio das mulheres da vida e que não sabem o que é se dar ao respeito. Daí a demissão.
Ao tomar conhecimento de tudo, ainda na cozinha, Dona Violeta chorou. Não sabe se de vergonha, de tristeza ou de revolta. Nada falou e, quando recolheu-se ao quarto, passou a lembrar um tanto de sua vida, de sua história e de sua mãe. Eram tantas as dificuldades...
Durante toda a noite, sem ter com quem desabafar, lembrou do quanto eram chuvosos os meses de outubro, novembro e dezembro, na cidade onde nasceu. O mercado ficava desasbastecido de tal forma que, mesmo tendo dinheiro na mão, não havia o que comprar. Dona Dolores, ou Dozinha, como era chamada, sempre dava um jeito. Previdente, para aguentar um tanto do inverno, mantinha na despensa uns enlatados de fiambre, apresuntado e corned beef, da Wilson; salsichas da Swift e camarões salgados da Leal Santos.
Já que a noite foi longa, não deixou de recordar dos pastéis ocados de Dona Dozinha, servidos aos domingos. A massa era bonita, os fritados enormes, mas a carne era rala. Por ideia própria, Violeta arrumou um jeito de enchê-los com o arroz de xerém, lambuzado com manteiga de nata e banana frita. Bastava abrir um buraco na quina do pastel e, com uma colherinha de chá, colocar aquela pasta no seu interior. Aí, sim, o de vento tornava-se um pastelão. Bastou isso e todos os seus irmãos passaram a imitá-la. Só de lembrar o fato, salivou e até pareceu sentir o cheiro bom da fritura dos pastéis de sua mãe.
Quase sempre o almoço virava uma festa. As lembranças vinham aos borbotões e Violeta até sorriu quando lhe veio à mente o dia em que Cristina e Norma, mãe, filha e lavadeiras da casa, aproveitando a estiagem chegaram com as roupas lavadas no justo horário do almoço. Dona Dozinha, sem pestanejar, deu um dos seus pastéis para Cristina e pegou um dos de Violeta para a Norma. Naquele mesmo domingo, por sorte, Cristina presenteou Dona Dozinha com uma franga de primeira pena e a tadinha (da franga), virou uma bela canja para o jantar. Como eram bonitas as lavadeiras que caminhavam léguas com as roupas cheirando a raiz de priprioca ou a colônia vim-de-cá. O que ia sujo de lama voltava limpíssimo, à custa da força dos seus braços e destreza das suas calejadas mãos.
Já amanhecia o dia quando Violeta voltou a lembrar e lamentar o fato ocorrido na mansão envidraçada e que resultou na demissão sumária da serviçal que ofereceu salgados e refrigerante ao braçal idoso que ajudava nas tarefas mais pesadas.
Neste momento sentiu vontade de, na primeira oportunidade que tivesse, contar aos netos sobre os pastéis de sua mãe e na grandeza que representa a divisão do alimento. Fizesse isso, talvez até pudesse evitar que as crianças passassem a crer que a pobreza é criminosa ou que a bondade reside nas pessoas bem aquinhoadas e que possuem mansões envidraçadas que dispõem de três cozinhas. Não, não é possível fazer isso. Desde sempre já foi avisada pelos pais que a educação das crianças é exclusiva deles, sem interferências de avós.
Na casa de Dona Dozinha, com uma cozinha só, que dispunha de um fogareiro de barro feito com tambor de óleo e uma trempe de ferro, apesar das poucas opções e da falta de ter o que comprar, havia o espírito da solidariedade e o respeito ao próximo, por mais pobres que fossem esses próximos. Seria bom contar isso para os netos. Mas...
Antes de entregar-se ao sono, cansada da tristeza e da viagem que fez no tempo, Dona Violeta pareceu ouvir sua mãe Dozinha dizendo a tão repetida preleção de que “O pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada!”.
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Publicado originalmente no site Lima Coelho.
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