Profª. Inês Lacerda Araújo
Atos gratuitos não são livres como pensava Albert Camus. Eles podem ser terríveis. Há tipos de violência que decorrem de comandos políticos absurdos, incompreensíveis, parece que vão além de nossa humanidade.
Há na história do comunismo stalinista um desses episódios de violência que revoltam e chocam, infelizmente pouco divulgado.
Em reportagem recente, a TV5 Monde abordou a história narrada na obra l'Île aux cannibales (A Ilha dos Canibais), de Nicolas Werth. O subtítulo é: uma deportação-abandono.
Em 1933, em plena época stalinista na ex-URSS, perseguia-se e deportava-se para a Sibéria todos os suspeitos de não colaborarem com o Partido Comunista.
Bastava que a pessoa circulasse sem o passaporte ou que tivesse alguma atitude suspeita para ser declarado inimigo do Estado.
No documentário em que se entrevistaram pessoas que viveram ou souberam desses castigos, e com filmes da época em que encarregados da deportação se dizem incapacitados de atender na ilha tantos deportados (6000 pessoas em poucos meses), a crueldade do regime stalinista se expõe, ela é estarrecedora.A ilha em questão fica em um rio perdido na imensidão da Sibéria.
Um caso exemplar:
Uma mãe chega em Moscou, na estação de trem, pede à filha de 12 anos que vá comprar pão. A menina é chamada de vagabunda, agarrada e deportada para a ilha.
Não havia como abrigar e nem alimentar tantos deportados. Os guardas matavam os que ousavam fugir a nado, alguns se agarravam a troncos e eram também caçados e mortos.
A brutalidade dos guardas e comandantes era inominável. Alguns comandantes questionavam se havia necessidade de tanta brutalidade, mas nunca questionavam a necessidade de deportar.
O que fazer com os prisioneiros se não havia comida? Um comandante diz:
"Deixem-nos sair, eles que pastem!"
E outro: "Para vocês eu sou Stálin!"
A fome e a degradação, a impossibilidade de fuga, o desespero, tudo isso induziu ao canibalismo entre os prisioneiros. Os alvos mais fáceis eram as mulheres e crianças. Eram amarradas ao tronco de árvores, e partes do corpo arrancadas, as mais fáceis de comer...
É fundamental recuperar em livros e documentários o descalabro de regimes ditatoriais. É importante lembrar e informar que pessoas inocentes, vítimas de um ditador cruel, foram levadas a um ato a que apenas situações extremas constrangem.
Levou muito tempo para que os crimes de Stálin ficassem conhecidos. É incrível que mesmo quando já haviam sido divulgados (sem condenação alguma!) ainda houvessem intelectuais "esclarecidos" que apoiavam e justificavam o regime e o partido que o sustentava.
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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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