Estamos num dia qualquer do ano de 1960-DC.
Tarde cedo, na velha banheira da casa do dentista Dr. Angelim, cedida para que morássemos eu e mamãe, escutei um grito rouco chamando meu nome. Fechei a velha torneira enferrujada, pulei fora do banho e, sentada no vaso sanitário de tampa amarelada pelo tempo, fiquei a bater queixo. Estaria louca?
Tarde cedo, na velha banheira da casa do dentista Dr. Angelim, cedida para que morássemos eu e mamãe, escutei um grito rouco chamando meu nome. Fechei a velha torneira enferrujada, pulei fora do banho e, sentada no vaso sanitário de tampa amarelada pelo tempo, fiquei a bater queixo. Estaria louca?
A chamada do grito rouco soou novamente, mais desesperada, até: - “Sumaia! Sumaia!”
Só mamãe estava em casa, dormindo e roncando em sua rede branca, coberta tão somente por uma pequena toalha xadrez que lhe escondia os seios. Acordei-a aos pulos, segundo ela, mais branca que uma vela e disse-lhe firmemente: - “Mãe, titio Callilla morreu! Gritou por mim um grito de muita dor. Levante, vamos até à casa dele!”
Mal acabei de falar, ouço a voz de Joshua em tom aflito. Abri a porta e fui falando: - “Titio morreu? Fala, Joshua, ele morreu? Como?
Joshua baixou a cabeça, triste e envergonhado como nunca o tinha visto. Deduzi, sem dificuldades: titio, viciado em sexo que era, morreu de quatro no ato, fazendo amor. Deixamos mamãe entregue à sua preguiça, com os peitos de fora, e zarpamos para os cômodos onde moravam titio e Joshua a três quadras dali.
A expressão “ninho de amor” nunca foi tão cabível para dizer daquele ambiente onde viviam os pombinhos Callilla, de quase 60 anos e Joshua, de apenas 18, mal e mal completados. Tudo cheirava a almíscar e alfazema. A mesa pequena, forrada com toalhinha branca de crochê, estava impecavelmente arrumada para o lanche. Um raminho de Lilases dentro de um copo d’água, dois pratos de sobremesa de cerâmica barata, dois jogos de talheres de alumínio e duas taças verde-garrafa de cristal grosseiro.
Devido à solteirice e para não criar indagações, dormiam em camas separadas. Sobre as camas, além das cobertas com dobraduras especiais, os robes de chambre de cores neutras. No chão, entre as camas, uma passadeira de feltro marrom. Sobre ela e lado a lado, as fofas pantufas dos apaixonados.
Encontramos o morto despido e ainda morno. Sua compleição gigante impediu que o franzino Joshua pudesse sozinho vesti-lo e colocá-lo sobre uma das camas. Não foi a mais bela cena que vi. Nem nos filmes havia visto! Da região do prazer uma imagem bizarra. Aquilo se assemelhava a uma camélia azulada e murcha. Limpa, porém.
Desviramos o corpo, esticamos-lhe as pernas e, após vestir-lhe uma camisa social de listras, adquirida nas Lojas Garcia e ainda com o selo e alfinetes nas mangas e colarinho, entrelaçamos suas mãos sobre o abdome. Uma calça de gabardine preta, do tempo que era mais magro, foi-lhe, a bastante custo, vestida. Conseguimos eu e Joshua, deixá-lo decente e bem apessoado. Meias e sapatos pretos não nos exigiu esforços. Empoamos seu rosto para tirar o grosso da oleosidade e aspiramos um perfuminho for men por todo o seu inerte corpo. Ao final, deixei sobre a cama a boina que titio mais usava. Deveria levá-la junto, fosse para onde fosse. Era sua marca registrada. Pronto! Estava pronto! Pronto para chegar ao Reino.
Durante toda a ritualística da preparação Joshua chorou. Em várias passagens, muitas, até, beijava o rosto de titio Callilla. Uma demonstração de afeto que nunca havia presenciado. Nem em filmes. Com aquela meiguice, não! Era a maior e mais pura demonstração de ternura de um menino por um velho.
- Joshua, vá chamar o Niasi Sharife e o Elifas Chaar. Diga-lhes do acontecido e peça-lhes que providenciem o restante do serviço funerário. Fizemos a nossa parte. Contenha o choro e não dê explicações desnecessárias. Pense que titio morreu por ter chegado a sua hora e que da hora ninguém pode passar.
Puxei a cabeça de Joshua até meu colo, beijei sua testa e ordenei fosse encontrar os amigos e conterrâneos de titio.
Nenhum homem foi tão bem atendido no depois da morte como o velho Callilla. No salão onde funcionava uma espécie de clube libanês, em alto estilo, foi velado, elogiado por sua destreza no jogo de gamão e, enfim, pela sua bondade. Poucos parentes compareceram. Além de mim e de mamãe, mais ninguém. Se é que apareceu, duvido muito, entrou e saiu como um relâmpago. Do único irmão vivo, meu avô Anuar, foi a falta mais sentida, notada e comentada com sotaque de repreensão. Por quê? Era a pergunta que não queria calar!
No final da manhã do outro dia, debaixo de uma fina garoa, o corpo de titio Callilla desceu para a clausura eterna de uma gaveta. Joshua estava para além do choque. Estava em letargia. Nem chorava, nem de mim desgrudava. Passamos no ninho de amor, pegamos alguns dos seus pertences e fomos para minha velha casa. Deixei-o descansar, assimilar a morte e sentir o vazio da perda.
Somente quase na hora de dormir é que decidi abordá-lo. Tomou um caldo de frango reforçado com aveia feito por mãe Fayma, bebeu uma dose de Maracujina e desabou em pranto. Refeito, perguntou-me quem tinha sido titio Callilla. Estava ávido por respostas e ofegante por carinhos. Por que vovô não foi ao enterro do irmão? Seria por conta da sua desviada escolha sexual? Seria por culpa dele? Não via motivos para culpas, então, por quê?
Decidi ser melhor abreviar o momento das declarações de culpas e das demonstrações de comiseração. Abrindo o jogo, falei:
- Escute Joshua, não há culpas. Entenda de uma vez por todas que você foi importante na vida de tio Callilla. Talvez tenha sido a melhor experiência amorosa dele. Saiba que ele morreu feliz e amado. Titio era maronita e vovô mulçumano sunita. Maronitas e mulçumanos - sunitas e xiitas - travavam uma batalha, silenciosa ou barulhenta que fosse, sem dia e hora para terminar. Não era uma guerra religiosa, apenas, como podia parecer. Era guerra pelo poder. A coisa tem se modificado, mas persiste. As batalhas vão desde a divisão territorial até por causa de uma simples esfiha.
Joshua, menino, fica certo de uma coisa: se o fato de um homem gostar de outro homem for coisa do demônio, quem menos contou nesse caso foi o demônio. É briga de gente grande!
- Sumaia, obrigado! Muito obrigado! Que Deus abençoe você. Sua explicação tirou um enorme peso da minha alma, da minha consciência e do meu coração.
- Que Allah cuide de você, Joshua! Que prossiga no seu rumo, garoto! O caminho será longo. Logo aparecerá um novo amor, tomara que da sua idade! O que sentia e demonstrava por titio eram resultados de afeição e agradecimento. Que sabe dizer do amor?
Independente da talagada do calmante de folhas, sem mudar de posição, Joshua dormiu um sono quieto, típico dos inocentes. Mal acordou, no outro dia, quis saber mais sobre a origem de titio.
Embora o assunto não despertasse em mim nenhuma alegria, pelo contrário, atendi aos apelos de Joshua. Disse-lhe sobre a origem da discórdia: vovô e titio eram apenas filhos do mesmo pai. Meio irmãos, portanto. Minha bisa Zainab morreu de parto do vovô e este acabou sendo acabado de criar por Sulema, a nova esposa.
Sulema, por sua vez, veio a ser a mãe de duas meninas – Johara e Yaminah - e de titio Callilla. Ser criado por madrasta, expliquei para Joshua, nem sempre é um mau negócio. Sulema criou vovô com todo carinho do mundo. Deu a ele o mesmo que deu aos filhos, sem qualquer diferenciação. Assim contava vovô.
Na juventude dos dois meninos é que começou o racha. Titio ficou amigo de uma patota maronita e bandeou-se para o outro lado da fé. Fica difícil para os ocidentais o entendimento dessa estúpida cisão, expliquei para Joshua. O certo é que, por conta do desgosto com a inimizade entre os filhos, a morte de meu bisavô foi antecipada. Titio saiu de casa e vovô assumiu as funções de administrador da fábrica de refrigerantes nos arredores do aeroporto de Beirute. Foi então que tio Callilla exigiu sua parte para iniciar um próprio negócio. Deu tudo errado. Sulema, induzida pelo filho, ordenou a venda da empresa.
- Ouvi de vovô uma história que me deixou confusa. Foi sobre o sumiço de uma miniatura do Corão, com capa banhada a ouro e de um anel com um enorme diamante que valia uma fortuna. Eram objetos que pertenciam ao falecido pai deles. Vovô sempre teve certeza que o nome do ladrão era Callilla. Este negava e o resultado foi o peso da dúvida e da desconfiança. Sulema vacilou. Entre acreditar no enteado e no filho...
Desolado, vovô ainda ficou um tempo na companhia da madrasta e das irmãs, até que, numa ação bruta e covarde, foi perseguido e quase morto pelos trogloditas amigos de meu tio. O que poderia ser uma guerra religiosa virou uma contenda familiar. O fato de Titio Callilla ter se bandeado para a ala cristã implicava mais um voto para a bandeira de seu partido no parlamento libanês. O ambiente familiar ficou insustentável. Isso motivou vovô Anuar a, no ano de 1906, creio eu, migrar para o Brasil. Em São Paulo, ajudado por patrícios, estabeleceu-se.
Seu primeiro comércio, na região do Brás, foi numa pequena loja de miudezas e armarinhos. Lojinha de uma porta só. Cresceu, cansou e entrou no ramo da hotelaria, em sociedade com dois amigos. O primeiro hotel “de luxo” e quase que exclusivo para migrantes libaneses, tinha quatro andares e ficava na Rua Líbero Badaró, então centro nervoso da comunidade sírio-libanesa. Nos redutos dos “brimos”, incluindo os judeus israelenses, ortodoxos, ou não, Joshua, não havia Faixa de Gaza. Quisessem, ou não, conviviam pacificamente, deixando as diferenças para trás.
A tranquilidade de vovô Anuar foi quebrada com a chegada inesperada de um novo hóspede. Ninguém mais, ninguém menos que titio Callilla. No início, evitando indisposições com os sócios, vovô nada falou. Por sua vontade, dependesse dele, titio não teria ultrapassado o batente da portaria. Mas ultrapassou. De gênio contrastante e espírito falante, titio abriu o bedelho e contou aos amigos de meu avô, sem nenhuma cerimônia, fatos que nunca aconteceram. Por exemplo: que vovô havia quebrado os negócios da família na tal fábrica de refrigerantes em Beirute.
Decepcionado com as inverdades ditas pelo meio irmão e pela desconfiança dos amigos na sociedade do hotel, o velho Anuar pede as contas e segue sua vida. Volta ao comércio, desta vez num restaurante. Não demorou e os antigos sócios de vovô entraram em desespero por conta das atitudes de titio. O antes hotel familiar para migrantes libaneses estava se transformado num ponto de encontro de amores proibidos. Penso eu, imagino, no tal prédio não circulavam mosquitos: os espermatozoides não permitiam intrusos e o cheiro de sêmen os afugentavam.
O apartamento que titio ocupava, fazia algum tempo, registrava um vai e vem de homens de todas as idades e nacionalidades. Seguindo o exemplo (que mau exemplo sempre é seguido) e por ele ajudados, outros habitantes do local acharam-se no direito de ali receberem mulheres e homens. Em resumo: titio era um proxeneta de marca maior. Sua renda mensal básica não vinha do suor do seu rosto, mas do das prostitutas que gerenciava.
- Quer saber mais, Joshua?
- Sim.
Não me fiz de rogada. E desatei a contar os fatos que ouvi contar pela minha avó, por meu avô e que até hoje tenho por verdadeiros.
Bem, não tardou muito, titio foi expulso do hotel. Estava apaixonado por um moleque cigano. Com aquiescência e permissão da família do moço, juntou-se à caravana e instalou-se em Campinas. Campinas já prometia ser a segunda maior e mais desenvolvida cidade de São Paulo.
Sem grandes dificuldades para a vida nômade, viveu tranquilo num trailer com o seu menino Perun, o ciganinho. Tinha conforto. Dentro do possível, o maior. Perun, filho de Katina, era bonito e rico. Titio Callila estava vivendo nas nuvens. Por um lado, sim. Precisava, ainda, não se deixar julgado um aproveitador de meninos ingênuos. Queria trabalhar para mostrar-se útil.
Por escolha e com a ajuda de Perun entrou no mercado imobiliário. Campinas florescia a passos largos e deixou meu tio passando um pouco mais do padrão dos milionários locais. Sabia ser mercador. Tinha lábia e disposição de mercador.
Aconteceu que, seguindo a lei, nômade que é nômade, não cria limo. Perun e toda a comunidade cigana desarmaram acampamento e foram para outra cidade, desta vez no Rio Grande do Sul, mais precisamente para o sulzinho, nas cercanias do Uruguai. Longe, pois! Titio Callilla preferiu deixar a trupe seguir sozinha.
O amor de Perun fez-lhe falta? Fez! Não tanta, asseguro! Titio vivia um período dourado e não lhe faltavam namorados e mais namorados. Dentre eles, uns mais tortos e outros mais tolos. O certo é que caiu. Faliu. Cada menino que teve abocanhou sua parte. Quando ficou na lona, totalmente sozinho, descobriu estar tuberculoso. Não havendo a quem recorrer em Campinas, por estar sujo na praça, pediu ajuda à Katina, mãe de Perun. Ajudado, com presteza, tratou-se em Campos do Jordão e ficou curado.
De volta a São Paulo, chapéu na mão, procurou Anuar, meu avô e meio irmão dele. Vovô ajudou, mas, por mágoa ou por bem conhecer-lhe a má índole, não quis manter nenhum vínculo ou proximidade. Ajudou como se estivesse ajudando a qualquer um que lhe pedisse auxílio. Foi essa a trajetória de titio Callila. Resumida, mas é esta a história dele.
- E sua história, Joshua? Qual é? Tem nome hebraico e cabeça chata. Quem é você?
- Sou paraibano, Sumaia. Sei que meu nome, no português, corresponde a Josué. Sou órfão e fui criado por uma família pernambucana. Gente muito boa! Só saí da convivência dela quando conheci o Callilla.
- Entendi.
- Sumaia, gostaria de ficar consigo e com Dona Fayma até que possa resolver o rumo a tomar. Posso?
- Claro, Joshua! Claro Josué!
Enquanto Joshua foi buscar seus panos, mais que rapidamente tratei de arrumar o quarto que ocuparia. Pedi para que trouxesse os alimentos perecíveis, as fôrmas de doces sírios e alguma outra coisa ou coisas que o fizessem lembrar titio. Achei que ele deveria dar continuidade na fabricação caseira dos doces e melados de aletria, amendoim e sêmola. Manter-se ocupado, sempre, é uma das boas saídas para amainar as lembranças dos mortos. Ou desaparecidos!
Missão cumprida! Joshua já não apresentava a cara de tédio que as pessoas estampam depois da passagem dos entes queridos. Ficou sereno. No cair da noite, enquanto mamãe fazia suas orações, Joshua me entregou uma caixinha de marchetaria, linda, diga-se, com trava e cadeado dourados. Dentro dela, em perfeito estado de conservação, estavam a miniatura do Corão de capa dourada, uma bela cruz cravejada de brilhantes e um enorme anel chapeado, de estranhíssimo desenho e que mais parecia uma arma. Um tijolo, diria.
- Sumaia, por direito, estes objetos pertencem ao seu avô. Quanto antes, agora, se possível, preciso entregá-los. Se o Callilla os deixou por tanto tempo guardados, se não os vendeu no período das vacas magras, outra razão não existe senão a de devolvê-los ao legítimo dono.
- Deixe-me que faça isto. Vovô Anuar, talvez, nunca se sabe, não se sinta confortável diante de você. Vou lá agora.
Vovô jantava.
Pacientemente esperei que jantasse, andasse e arrotasse. Seu ritual digestivo era sempre o mesmo: vinte voltas e vinte arrotos debaixo do caramanchão da videira. Somente após a oração de agradecimento da refeição é que pude tomar chegada. Imaginei que vovô ficaria acometido por algum tipo de emoção ao ver aqueles objetos do passado. Qual nada! Segurou o Corão, apertou-o contra o peito, falou uns halabidalahs e devolveu-me a caixa, dizendo: - “Entregue ao menino. Ele precisará disso! Diga-lhe que mande derreter o ouro do anel e a pedra aparecerá. Não preciso de diamantes. Menos ainda de cruzes!”
Assim foi feito. Assim estava escrito!
Nota da autora – No processo eleitoral do Líbano, pelo que consta, os votantes, incluindo os ateus, precisam ter filiação nas correntes religiosas existentes. É confusa esta vinculação político-religiosa. Há muito mais, mais que muito, para entender as relações humanas do Oriente Médio. Os conflitos parecem eternos. Não quero crer que, no Brasil, as coisas se encaminhem para tal. Seria um desastre!
*Publicado originalmente no site Lima Coelho.
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*Publicado originalmente no site Lima Coelho.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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