Adicionado ao sofrimento físico, como se não bastasse, era o seringueiro acometido por agravante da tormenta moral dos débitos, superiores aos créditos na maioria das vezes, vindo a bordo dos Regatões ou amarrados aos lápis dos Guarda-Livros dos barracões. Quando chegava ao seu destino, ali já se achava, incluso em um espectro de cadastro, a anotação de que aquele incauto aventureiro era um devedor e não sabia.
Não apenas no Purus, que demanda ao Acre e ao Iaco, mas também no Juruá, as árvores seringueiras destacavam-se em sensível abundância, o que levaria a corrente imigratória proliferar-se, pontilhando as margens ribeirinhas de pequenas habitações, denominadas de tapiris, que estendiam-se por toda a área acreana.
A vida ribeirinha, a mais rudimentar e a mais comum seria quase impossível ser vivida se não estivesse próxima a um rio, igarapé, lagoa, onde, apesar de remota, a canoa era o único meio de comunicação de que podiam dispor seus habitantes como arrimo e parte integrante do seu viver.
O regatão, nome usado em Portugal para os mercadores de alimentos, prosseguiu para o Acre o que já fazia desde o Maranhão ao Amazonas.
As canoas dos regatões, cobertas de palha ou de madeira, possuíam uma cabine e duas portas, uma avante e outra para ré, cheias de prateleiras para o transporte de mercadorias, que variavam da carne-seca ao feijão, do pirarucu ao sabão, do açúcar à chita, da espingarda à agulha, do fósforo à corda de viola, do barbante ao alfinete, do cigarro ao pó de arroz.
Regatão, o mascate da Amazônia - final da década de 1960 - de Carlos Henrique
Brek Fote: História Multimídia de Xapuri |
Fazia o regatão a sua vida dentro do barco. Ali comia, dormia e ainda fazia o seu comércio, partindo a seguir à procura de novos fregueses, visando, no princípio, a trocar suas mercadorias pela borracha e pela castanha, porque poucas eram às vezes em que o dinheiro entrava na transação.
Escreve Tavares Bastos: “A canoa do regatão é uma loja ambulante, indispensável naqueles desertos imensos”.
Os regatões brasileiros e lusos logo vieram a ter a concorrência dos sírios e libaneses, que se diziam “compadres” de todos os prováveis compradores. Embora falando mal o português, cercavam sua clientela de um sem número de gentilezas e amabilidades.
Ainda acerca dos regatões, D. Antonio, Bispo do Pará, em carta ao Ministro do Império, em 1865 diz: “Os regatões, negociantes de pequeno trato, que em canoas penetram até os mais remotos sertões para negociarem com os índios. É difícil imaginar as extorsões e injustiças que a mor parte deles cometem aproveitando-se da fraqueza ou ignorância destes infelizes. Vendem-lhes os mais somenos objetos por preços fabulosos, tomam-lhe a força ou a falsa fé os gêneros, quando muitos compram-nos a vil preço e muitas vezes embriagam os chefes das casas para mais facilmente desonrar-lhes a família. Enfim não há imoralidade que não pratiquem esses cupidos aventureiros”.
Apesar de todas as acusações feitas contra os regatões, não se pode negar, em sã consciência, a importância econômico-social de seu trabalho. Suas atividades em benefício daquelas populações isoladas em palhoças ou malocas à beira dos rios, igarapés, lagos e furos não podem ser esquecidas. Vítimas, muitas vezes, de quem se considerava prejudicado pelo puritanismo da época ou por inveja de alguns, a eles se imputavam todos os males e todos os erros de um comércio condenável. Os seringalistas, ou patrões dos seringais, detestavam os regatões, pois eles chegavam a convencer os seringueiros a desviarem borracha do seringal, em troca de suas bugigangas.
Em batelões como este os regatões ajudaram a escrever a história da Amazônia. Foto: Jornal Página 20 |
Na realidade, tudo indica que eles também ajudaram no engrandecimento da Amazônia, na descoberta de tantas tribos, no escoamento da produção das povoações acreanas, sobretudo.
Contudo, as reais vítimas não só deles, mas de seus próprios patrões, foram os ingênuos seringueiros.
Por considerarem os casados mais dispendiosos, pois necessitavam de mais passagens, para começar as despesas, os patrões seringalistas recomendavam aos agenciadores a preferência pelos solteiros. Entretanto muitos casados se submetiam a embarcar sozinhos para, depois de alguns anos mandar buscar as famílias. Aí, quando algum deles falecia, invariavelmente endividado, o patrão, a título de caução da dívida, apossava-se da mulher. Um detalhe: a maioria dos seringueiros era de solteiros e viúvos. Portanto, não faltava pretendente para disputar a viúva. Porém, para tal, havia de sanar todo o débito do falecido.
Na estrutura do seringal observava-se dois grupos, de uma certa forma, unidos pelo objetivo do ganho industrial e comercial: o do patrão e o do seringueiro.
Aquele, situado numa exata sucessão hierárquica, era seguido pelos seus auxiliares diretos, formados pelo gerente, o guarda-livro e ainda os canoeiros e os mariscadores (ou pescadores).
O seringueiro era o homem que já chegava ao seringal com a esperança de retornar rico à sua terra natal. Isto realmente aconteceu, a começar pelo primeiro colonizador do Acre, João Gabriel de Carvalho e Melo, que saiu do Ceará, mais precisamente da serra de Uruburetama em 1854, deixando mulher e uma recém-nascida, para somente retornar em junho de 1876 e assistir ao casamento da filha, agora afortunado e com novos horizontes para conquistar aquela área da Amazônia. Outros, porém, viam-se perdidos ante as intempéries e os percalços da vida que levavam, a exemplos dos Chicos Bentos, seus Trindades, Toinhos e Manés Lopes.
E assim segue a humanidade nos seringais do Acre, pela força motriz humana a fabricar borracha, levando, porém, no peito e na alma, o pensamento naquela que também despertava cobiça em razão de instintos sexuais reprimidos. E ali enraizavam-se.
Mas o desejo de obter o mínimo de saldo pode-se dizer que era imenso, difícil, porém, não impossível.
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* José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano. Reside em Brasília e escreve o blog FELICIDACRE.
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