A VOZ DOS BOSQUES, CAPOEIRAS E FLORESTAS
Luiz Felipe Jardim*
A VOZ DAS SELVAS
Foto: Gleilson Miranda / SECOM |
Quando a Rádio Difusora Acreana foi criada em 1944, 22 anos após a primeira audição pública de rádio no Brasil, havia no Território do Acre pouquíssimos aparelhos receptores para sintonizar as ondas sonoras da nova emissora.
Os receptores de então eram compostos de válvulas enormes, de complexos mecanismos que os fazia muito caros e os tornavam muito grandes e de difícil portabilidade.
Além disso - ou exatamente por isso - o Brasil estava em guerra contra o Eixo, e os cintos da economia estavam fortemente apertados para o livre consumo.
Apesar de tudo, a ZYD9 RDA é inaugurada com bastante expectativa, e efusivas comemorações.
Com sua programação inicialmente inspirada na Rádio Nacional e em congêneres de grande alcance territorial, a Rádio Difusora Acreana vai aos poucos delineando suas identidades, criando hábitos entre os ouvintes, sintonizando-se com seu público, influenciando o comportamento social, enfim, difundindo cultura internacional, nacional e influenciando e estimulando a produção e difusão de culturas acreanas.
Em 1948, é inventado o transistor, o que provocará, rapidamente, grandes revoluções no universo das comunicações via rádio.
O tamanho do rádio receptor, p ex. que era o de um móvel mediano, chegou a um diminuto quase que de bolso logo 4 anos depois.
E o seu preço caiu em proporções quase iguais o que ampliou a popularização do rádio em áreas como as da Amazônia, onde a presença da Televisão ainda inexistia e inexistiria ainda por longo tempo.
Nesse mesmo espaço físico e sonoro, onde a Voz das Selvas nascia, crescia e aparecia, paralelamente surgia, aparecia e crescia um cinturão que passará a existir em torno de Rio Branco e ao qual chamaremos de Colônias.
São Francisco, Aquiles Peret, Cinco Mil, etc., são unidades rurais de produção, que passarão a abastecer Rio Branco de verduras, frutas, leite, carne, aves etc. Mas não só disso.
Sua população, composta na sua maioria, assim como os seringais, de pessoas do Nordeste brasileiro ou de seus descendentes, passará desde logo a ter presença marcante na composição das paisagens culturais das cidades, do Território e do Estado.
Tendo à sua disponibilidade o rádio como uma ferramenta de diálogo tanto com as cidades, como com os seringais, além de consigo mesmos, os 'colonheiros' utilizarão de maneira bastante ágil este recurso e passarão, pouco a pouco, a interferir nas feições dos programas da Rádio.
Ademais, as colônias se constituirão em pólos de interseção entre a cidade e o seringal, o que ampliará sua importância neste cenário de trocas entre essas diversas culturas em permanente movimento.
NOVAS ONDAS
Quando, em fins dos anos 60, o programa radiofônico Miscelânea Musical vai ao ar pela primeira vez, a RDA já não está sozinha no espaço sonoro das suas selvas.
Em 1966 entrara nos ares e lares acreanos, na faixa de 1350 khs, as ondas da Rádio Novo Andirá, 'uma iniciativa Vanderlei Dantas'. Iniciativa de cunho particular (ou quase...).
As feições de sua programação já estavam quase que definidas pelas feições pioneiras traçadas pela RDA, mas isso não impede a construção de particularidades, de singularidades que passam a caracterizar a nova emissora.
Apesar da natural competitividade, entre as 'co-irmãs' haverá muito mais sintonia, complementaridade, mescla de tendências e modelos de 'fazer rádio', do que antagonismos ou divergências de raiz.
Ambas as rádios, impregnadas das feições sociais locais e nacionais, dirigiam suas programações para o mesmo público. Por isso tinham programas muito parecidos.
Por este momento, segunda metade dos anos 60, a presença e a importância da Jovem Guarda no cenário nacional refletia-se também, no Estado do Acre.
Atraindo para si quase todas as tendências sociais identificadas com 'o novo', com as 'novidades' que as sociedades encontram e oferecem para as convivências entre as pessoas, a JG (mesmo que na falta de outros movimentos mais adequados a determinadas tendências e segmentos mais ‘avançados’) atuava como um símbolo que alimentava e impulsionava mudanças nos mais diversos aspectos e setores da vida social, como no falar, por ex. que sofria suas influências com o uso de novas gírias. Ou ainda, com o uso da minissaia, dançar ‘solto’ etc.
Ambas as Rádios tinham programas voltados para este público, e desfilavam nestes programas as músicas, de Deni e Dino, The Clevers, Martinha, Wanderléia, Roberto Carlos etc, que eram igualmente tocadas e entoadas por conjuntos musicais nos bailes dos clubes; em vitrolas nas festinhas das casas dos jovens; com violões nas serenatas das madrugadas; à capella nos recreios e festividades escolares, etc.
Ou seja, 'minissaia', 'gíria', e tudo o que estas coisas e congêneres pudessem representar, estavam profundamente encravadas no ‘universo de vontades' no 'nervo coletivo' de parcela significativa da sociedade acreana daquele momento, notadamente de setores urbanos que emergiam numa sociedade de economia de base extrativista em vias de substituição pela agropecuária.
Por outro lado, os programas destinados mais ao mundo rural, às nossas colônias e seringais, haviam ganhado muito espaço e força.
Além daqueles primeiros programas das 5 horas da manhã, quando as músicas executadas eram quase que exclusivamente 'sertanejas' (Luiz Gonzaga, Marinês, Teixeirinha, Barnabé, etc.), os programas do início da tarde também tinham seus alto-falantes voltados para os povos das Colônias e Seringais. Estes eram os programas de Mensagens, (“alô, alô colocação vai quem quer...”) que tinham como público alvo basicamente este segmento da população radiouvinte - e os programas de 'Melodias' (“os passarinhos amanheceram cantando mais alegremente...”) onde este mesmo segmento, embora mesclasse suas dedicatórias com razoável público da cidade, detinha a maioria das 'oferendas de melodias'.
Os programas de humor, assim como os de esportes, uniam estas duas grandes parcelas de radiouvintes. Zé Vasconcelos, Zé Trindade, Vitório e Marieta, Burraldo e, especialmente, Coroné Ludugero e Barnabé, davam o ar de sua graça, geralmente à noite (antes das piscadas de luz que avisavam que em 15 minutos a Usina pararia de funcionar), impregnando a atmosfera sonora de expressões, bordões, piadas que seriam igualmente reproduzidas ad nauseum por toda a cidade e que contribuiriam, com o tempo, para o surgimento de expressões regionais como o nosso ‘marrapá’.
A poesia produz no ser humano um tipo de sensibilização que lhe desperta a imaginação. A Rádio faz a mesma coisa só que em sentido inverso: estimula a imaginação humana que criará uma sensibilidade correspondente. Cada mensagem sonora se converterá em imagem pensada ou inconsciente e, sobretudo, após natural seleção, se fixará na sensibilidade do ouvinte.
A imaginação produzida naqueles anos por esses programas de humor irá marcar profundamente a sensibilidade dos povos dessas florestas.
MISCELÂNEA SONORA
Desde sua estréia na Rádio Novo Andirá, o programa Miscelânea Musical, fará convergir para si atenções de ampla camada das populações das cidades, colônias e seringais. Acertando em cheio na interpretação das vontades e expectativas que tinham os radiouvintes, J Conde imerge na sensibilidade acreana combinando os elementos fundamentais destes quatro tipos de programas: as ‘novidades ‘ como um linguajar mais ‘solto’ e ágil sugerido pela Jovem Guarda; o ‘noticiário’ breve, simultaneamente íntimo e público, natural das ‘mensagens’; um rítmo semelhante aos programas das 5 da manhã, que estão sempre a ‘despertar’ o ouvinte , e a alegria dos programas humorísticos.
Com esse arsenal harmonioso, J Conde levava ao seu público, além da música, do entretenimento, aspectos pouco visíveis das feições espirituais destes mesmos ouvintes quando lhes apresentava, como que num espelho sonoro, as fisionomias dos seus diversos ‘parentes’ brasileiros, do nordeste ao sul, do centro ao oeste. Por isso o programa esteve 30 anos no ar. E muito mais anos ainda teria se J Conde, o “Criatura de Deus”, aqui estivesse, vivo e ativo.
Certa vez o escritor Monteiro Lobato disse que seu programa da Rádio Nacional em fins dos anos 40, que nasceu com enorme esperança de vida, teve curtíssima duração porque o programa não se repetia, era novo e diferente a cada dia. Acho que Monteiro Lobato tinha razão.
Assim como o caminhante de longa caminhada prefere estar sobre terreno conhecido, contínuo, o radiouvinte quer ‘estar e caminhar por entre paisagens’ conhecidas, contínuas, íntimas como uma visita que muito nos compraz com sua simples e envolvente presença.
Como o programa de Monteiro Lobato, o programa Miscelânea Musical era um novo programa a cada domingo. Mas era um ‘novo’ de maneira diferente, mais ou menos assim como somos nós: os mesmos de tempos atrás, mas diferentes de quando lá atrás no tempo. Os mesmos de quando crianças, mas muito diferentes de quando crianças.
Por isso o ouvinte do programa tinha a sensação de estar sempre num espaço conhecido, íntimo, com aquela mesma pessoa que o visitava sempre aos domingos. Sempre a continuar o que haviam começado a domingos e domingos... A ‘história do Homem do Cavalo’, contada por Gilvan Chaves, e apresentada, a partir de certo momento do programa, em TODOS os domingos, ilustra bem a presença íntima que o ouvinte solicitava e mesmo exigia.
Outro aspecto interessante do Miscelânea, é o do talento que tinha seu locutor de combinar as alternâncias de momentos alegres e muito alegres, com momentos de tensão ou mesmo tristeza. Essa percepção nasce, creio eu, de uma observação intuitiva da dinâmica circense.
O bom Circo é aquele que consegue combinar de forma harmônica os estados de alegria, tensão, tristeza de seu expectador. Assim é que após a apresentação do equilibrista p. ex, surgem os palhaços para aliviar as tensões por aquele provocadas. Em seguida pode vir o domador de feras ou os trapezistas, que serão novamente seguidos por palhaços e palhaçadas para que o expectador não seja sobrecarregado de níveis de tensões indesejados.
J Conde fazia magistralmente alternâncias dessa natureza, quando, p ex., mesclava blocos de músicas tristes com a uma locução mais exageradamente alegre e com a utilização de um de seus humorados bordões como o que dizia que o ouvinte estava ‘com o rádio todo atolado no ouvido’. Essa ‘dinâmica circense’ lhe aproxima (guardadas todas a enormes diferenças e distâncias) do espírito dos programas do Chacrinha, tanto da TV como do Rádio.
Assim como o Circo e também como o Chacrinha, J Conde atraia e aproximava as diferentes tendências sociais, tanto urbanas como rurais; tanto políticas como culturais. Num clima de alegria e quase festa, mesclada com tensões, em doses razoáveis, ambos os programas resgatavam (como já disse, guardadas as enormes diferenças e incontáveis particularidades), a figura de um Velho que, extravagantemente, promove alegrias junto ao povo, surgido em Espanha e Portugal ainda na Idade Média, e que ainda sobrevive, com diversas facetas e atualizações tanto na Península Ibérica quanto em várias regiões do Brasil e América Latina. Aqui no Acre, (tirante o Rei Momo), não tivemos essa figura muito bem caracterizada como no Chacrinha, p ex. Mas o programa Miscelânea Musical e J Conde, cumprem em parte essa missão.
Outra característica do Miscelânea é a de seu cosmopolitismo. O programa levava o ouvinte a passear pelos vários espaços culturais brasileiros quase que sem perceber as radicais mudanças de paisagens. Assim o ouvinte ia do nordestino Luiz Gonzaga ao Teixeirinha, do Rio Grande do Sul; do caipira/suburbano Barnabé, ao suburbano/quase caipira Waldick Soriano. Sempre com a intimidade dos muito próximos, com a naturalidade de quem transita entre comadres, com a confiança de quem se movimenta entre iguais.
Por fim, Miscelânea Musical ampliou a participação dos ‘povos dos bosques, capoeiras e florestas’; dos bairros, colônias e seringais, no cenário cultural acreano. Ao vivo e nas cores da imaginação, levou ao ar com a força viva de suas presenças a voz do ‘colonheiro’, do barranqueiro, do seringueiro. Aqueles mesmos que, nos idos anos 40 e 50 ouviam distante o troar da Voz das Selvas nos seus espaços sonoros. Curiosos, foram se aproximando, se aproximando... Agora iam à rádio, e do Miscelânea Musical, faziam ecoar nas selvas, próximas e distantes, a sua voz, multicolorida e forte, já que esta tinha as cores que lhe dava quem a ouvia; a fisionomia que lhe dava quem a imaginava; a emoção e a força de quem a sentia...
* Luiz Felipe Jardim é advogado, professor de História, músico e compositor acreano.
Felipe Jardim é mão de ouro das letras. Tanto quanto seu saudoso pai, diga-se!
ResponderExcluirUm grande abraço para ele. Que continue escrevendo para avivar lembranças que não devem sem enterradas.
Natal de Brito, Romário Campos, Mota de Oliveira, "Cumpadi" Lico, Estevão Bimbi, Cícero Moreira e a Santa Mãe Rosa agradecem.
Leila Jalul