Leila Jalul
Enquanto escrevia este texto, a Adélia Prado, com toda a sua mineirice, entremeada comuma talhada de goianidade, dava uma entrevista ao Globo News e dizia que, quando escreve, sente os defuntos ao seu redor. São seus entes queridos que partiram, assim entendi.
Comigo está acontecendo quase a mesma coisa. Meu quarto está empestado de espíritos de porcos dizendo: “Fala de mim!”; “E eu?”;“Peraí, eu sou mais eu.” Uns me cutucam, outros apagam o que está escrito, e, pior, outros interferem nas ondas do meu provedor.
É tudo gente tinhosa. Eu, como um cavalo obediente, vou procurando atender a todos, na medida das suas necessidades. Vocês não acreditam? Agora mesmo, neste exato minuto, eles afastaram o texto para o lado esquerdo e fiquei sem entender nada. Quando é assim, não escrevo. Espero desanuviar.
Mercado Velho de Rio Branco antes. |
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado! Eu só queria contar que visitei, no dia do velório do Joaquim Macedo, pela vez primeira, o Mercado Velho revitalizado pelo menino Jorge Viana! Coisa linda. Estávamos eu, minha comadre Jorgete e sua comadre Val. Tudo comadre. Aliás, no Acre de antanhos, quem não era irmão, era primo, quem não era primo era compadre. Eram compadres e comadres. Uma máfia do caralho. Tuttibuona genti.
Mercado Velho de Rio Branco atual. |
Mas eu preciso falar do boi. No boi daquele tempo. Tem nada a ver com o de Parintins. No tempo quando açougueiro era apelidado de magarefe. No tempo das cestas de vime, da fila ou cobrinha.
E foi assim, de supetão, quando entrei no mercado revitalizado, que senti o choque elétrico na vertebral. Lá se faziam presentes duas almas de dois magarefes. Virei para a esquerda e falei: “Ali era o açougue do Zé Mourão. E ali o do Raimundo.”
Incorporei. Pensem numa cidade que, para alimentar uma população inteira, sacrificava apenas e unicamente um pobre boi por dia. Magro, quase sempre magro.
Agora vamos à divisão: o filé, pro governador. Contrafilé, pro prefeito. A alcatra pro bispo e pra irmandade, que se alimentava muito bem, diga-se de passagem. A chã-de-dentro do juiz… Já estava velho, coitado. A chã-de-fora pro provedor da maternidade. Provedor da maternidade era tanto quanto ou mais autoridade e autoritário que o governador. É mole, ou quer mais?
A fraldinha pro secretário da Fazenda, ou ele não pagava as notas de empenho da carne fornecida. As costelas e os músculos pro Hospital das Clínicas. E o cupim?Pronde foi? Foi pro dono do boi.
Ali, naquele aglomerado, estava eu. Cesta na mão, dinheiro na outra. Fazendo uma ginástica do tcham para me esgueirar das pimbas duras e aproveitadoras, que insistiam em se esfregar em mim.
Deus que proteja e que tenha em Sua Santa e Eterna Glória o meu grande protetor e amigo Boaventura dos Santos Moreira. E dê saúde e felicidade ao Seu Aureliano dos Santos Barreto, pai de minha amiga Judite. Eles me defendiam, e faziam de tudo para que, ao final do embate, entrasse na minha pequena cesta um palmo de pescoço, com carótida e tudo. E mais: dois quilos de ossos que viravam a sopinha da irmã Zarur.
Hoje, perdeu a graça. Já não sinto mais o sabor da carne de pescoço.
Agora engulo cobra.
* Crônica publicada no Blog do Altino e no site Lima Coelho.
Leila, essa crônica é demais! adorei (já conhecia de outro blog... mas me divirti tudinho de novo).
ResponderExcluirE eu menina, que ainda não deixei de engolir sapos!! rss.
Parabéns, aprendo muito com seus escritos.