sexta-feira, 27 de julho de 2012

DESTA VEZ, A ÚLTIMA

ROBÉLIA FERNANDES DE SOUZA


A casa às escuras. A luz que vem do poste da rua, espionando pelo vidro da janela, são olhos embaçados fitos nele. Caminha escorregando os pés para não topar em nada. Apalpando os móveis, correndo a mão pela parede, encontra a maçaneta. Uma porta. Faz pressão, devagarinho, torcendo, plec. Um quarto. A luz azulada fluorescente que irradia da imagem de Nossa Senhora sobre a mesinha no canto tira-lhe a respiração e o assusta. Uma visão? Foi só um segundo. Rapidamente se recompõe. Milagres não acontecem. Era só um abajur em forma de santa entre mais três ou quatro imagens. Na cama, uma senhora encolhida, como se sentisse frio, dormindo idosamente. Lembrou da mãe, àquela hora dormindo no barraco, sem proteção de santo algum. Na outra cama, do outro lado do quarto, o desgraçado do sargento, de cuecas samba-canção e meias, roncando alto. Sente medo apesar de há dias vir planejando essa invasão. No quarto não entra. Sabe que ali não encontrará o que procura. Foi só curiosidade. Afasta-se com cuidado mesmo sabendo que aqueles não acordariam. Têm o sono pesado das comilanças, da ociosidade, da despreocupação. Sono leve tem a mãe, sobressaltada, a qualquer chuva a água invadindo o barraco, a qualquer hora, uma bala perdida procurando sangue. Além disso, noite curta. O dia para ela começa às quatro para cuidar da vida, pegar duas conduções, chegar na casa da patroa antes das sete.

Tinha raiva do sargento. Sujeito ignorante, prepotente: "esses meninos são uns delinqüentes. Esses pivetes". Para ele toda mulher sem marido era vadia. Todo pobre era indigente, vagabundo.

Pela sala alcança a área da casa protegida por uma grade trabalhada, cheia de arabescos. Muitos vasos de plantas, samambaias penduradas nos xaxins, e num canto, coberta por uma toalha, a gaiola pendurada, como um troféu.

Era comum ouvir as conversas do sargento com outros aposentados que viviam, feito lagartos, tomando sol na pracinha. Assim foi que num dia em que engraxava os sapatos dele ouviu-lhe a gabolice: um pássaro. Tinha um pássaro raro, maravilhoso, vindo da Amazônia debaixo de sete capas. Na realidade poucos tinham o tal pássaro cantador, linda plumagem, custou uma nota.

Ficou tão curioso que nesse dia mesmo resolveu dar uma espiada no tal pássaro. Era só subir na amendoeira da rua, rente ao muro. Avistava o jardim, a casa, a varanda, a área. E o viu. Era um pássaro pequenino, engaiolado, sozinho! Era um pássaro triste! Era só um passarinho. Naquele mesmo dia decidiu-se:

Com cuidado pega a gaiola e vai saindo. A casa dorme, respira e ronca. Saiu por onde entrou. Pelos fundos. Os meninos já lhe tinham ensinado uns truques. Entravam nas residências e faziam pequenos furtos. Tênis, calças jeans. Um dia dois deles pegaram uma bicicleta. Foram parar na casa de detenção de menores. Desde esse dia, afastou-se da turma e já prometera à mãe que nunca mais ia roubar nada, nadinha. Dessa vez... dessa vez era a última.

Difícil era caminhar pelas ruas com aquele trambolho. E se o vissem? Livra-se da gaiola, põe o passarinho debaixo da blusa. De lá para o barraco não era longe. As ruas estavam praticamente desertas àquela hora. Atravessou a pracinha, seguiu as quadras da rua pavimentada fugindo da luz dos postes, entrou pela rua de barro. A partir dali, não tinha mais problemas. Estava em casa. Maior cuidado deveria ter para não acordar a mãe. Era capaz de levá-lo pela orelha para devolver o passarinho. Coisinha de nada ela acordava. Vai para o fundo do quintal onde começa o mato e por onde passa o canal. Pega o passarinho com cuidado e carinho. Afaga-lhe a cabeça. Pensa soltá-lo ao vôo livre - Vai amigo, agora é com você - mas acha que à noite ele não voará. Enfia-se no mato, coloca-o no entroncamento de uma árvore: - Te cuida garoto!.

Entra no barraco, como um gato. Diacho que essa porta é rangedeira.

- Zeca?

- Senhora!

- Fazendo, menino?

- Nada não, mãe. Fui só urinar.

Pela manhã, a notícia. O sargento alardeava. Deu até no jornal: "Ladrão invade casa do sargento aposentado Fulano de Tal, (64). Misteriosamente leva somente um pássaro na gaiola. Suspeita-se de uma quadrilha que rouba pássaros para vendê-los a preço de ouro a estrangeiros. Um crime inafiançável.

- Mãe, hoje vou engraxar lá pros lados da Estação. Na pracinha não tá dando nada.


*
ROBÉLIA FERNANDES DE SOUZA é da Academia Acreana de Letras. Com este conto, “Desta Vez, A Última”, na categoria Literatura, venceu o 9º Concurso Talentos da Maturidade, promovido pelo Banco Real (2008).
** Conto também publicado no site Lima Coelho.

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