Não somos assassinos. Somos primatas. Somos
das árvores. Não somos naturalmente do chão. A natureza fez a nossos
antepassados adaptando-os, anatômica e fisiologicamente, para viverem nas
árvores, alimentando-se de frutas, folhas, insetos. Carne, só alguma ou outra
vez.
Assassinos são os lobos, os felinos, os
ursos. Esses foram talhados para matar. Foram feitos com especializações para
predar, matar e se alimentar de outros animais.
Nós, ao contrário, éramos presas, mesmo que
eventuais, já que tínhamos a boa proteção das copas.
Nas árvores desenvolvemos nossa visão binária
o que nos dá bom senso de profundidade e distância; desenvolvemos boa percepção
das cores, um pressuposto para diferenciar folhas e frutos, bem como as etapas
de amadurecimento das frutas; desenvolvemos nosso gosto e nossa predileção pelo
doce que as frutas contêm. Fizemo-nos ágeis, sociáveis e de grande movimentação
e mobilidade.
Durante muito tempo vivemos numa espécie de
paraíso, onde pudemos nos desenvolver qualitativa e quantitativamente.
Qualidades e quantidade necessárias para
sobrevivermos ao que viria.
Por algum motivo, ou combinação de motivos, o
paraíso acabou. Alterações climáticas significativas, provavelmente, acabaram
com as árvores onde vivíamos e com elas nossa fonte de alimento. Fomos expulsos
do paraíso no qual nos desenvolvemos durante milhões de anos e para o qual estávamos
perfeitamente adaptados. Das árvores, caímos numa terra hostil. Num inferno
dominado pelos assassinos de savana. Os grandes caçadores: leões, leopardos... cães, com os quais teríamos que competir.
Tivemos que nos fazer bípedes. Ou nos
fazíamos assim, ou desapareceríamos. E assim fizemos. Pusemo-nos em pé. A
princípio não foi nada fácil, mas pagando um mico aqui, (para diversão e
delícia dos predadores) e outro acolá, acabamos por nos fazer hábeis em
caminhadas, em longas caminhadas e até em corridas.
Como as frutas e tubérculos já não existiam
na quantidade que precisávamos, tivemos que comer carne. A princípio, restos de
carne abandonadas por outros animais, carniça.
Depois tivemos que matar com mais frequência.
Ou fazíamos isso ou desapareceríamos. E assim fizemos. Tornamo-nos assassinos.
Cossacos Atacados pela Guarda Real Edouard Detaille |
Diferentemente dos grandes predadores, que têm
essa característica de maneira inata, nós precisamos desenvolver
artificialmente as habilidades para matar. Como primatas, temos significativas
doses de agressividade, e demonstramos isso, até com certa frequência, em frequentes
disputas, em algumas ou outras escaramuças, mas quase sempre do tipo “muito
trovão para pouca chuva’’. Nada que se compare à agressividade dos animais
naturalmente violentos. Além disso, não temos as garras e nem os dentes que têm
os especialistas para trucidar suas presas. Para superar essas deficiências,
criamos garras artificiais e fizemos facas, machados e lanças. Não temos a
velocidade de um veado, mas se usamos nossa força para dar a uma lança força e
velocidade, podemos surpreendê-lo e abatê-lo. Para isso tivemos que plantar,
cultivar e fazer crescer dentro de nós, num longo processo de hominização e
humanização, um sentido que os primatas não têm tão desenvolvido: o senso de
cooperação. Isso fez-nos mais eficientes, mais hábeis para a caça, e nos deu um
sentido de grupo, de união e dependência mútua que, além de ampliar ainda mais
nosso talento para a caça, tornou-o uma vocação, uma inclinação natural da
humanidade e dos humanos em que nos fazíamos. Talento e vocação se uniram em
nós e nos tornamos poderosos matadores.
Quando aprendemos a controlar o fogo, fizemos
uma grande revolução: apropriamo-nos do movimento mecânico, objetivo e o
transformamos em calor. Apropriamo-nos
da realidade objetiva e invisível e a transformamos em luz. Luz e calor sob o
nosso controle. Isso nos trouxe enormes transformações físicas e culturais. Por
exemplo: ao ingerirmos carne já ‘meio que digerida’ quando a comemos assada ou
cozida, tornamos desnecessário o enorme estômago que tínhamos e nos desfizemos
da parte que já não necessitávamos do nosso aparelho digestivo; diminuímos
significativamente nossa mobilidade no espaço; ampliamos o tamanho de nosso
cérebro e capacidades e habilidades manuais.
O controle sobre o fogo tornava-nos mais
protegidos contras os predadores diurnos e noturnos como os dentes de sabre e
os leopardos que estiveram sempre em nosso encalço e dizimaram milhares e
milhares de clãs de hominídeos e humanos ao longo dos milhões de anos da nossa
pré-história. O fogo nos proporcionava uma claridade adicional às noites
ampliando as possibilidades de sociabilização, aprimoramentos da linguagem,
transmissão de informações e conhecimentos em espaços relativamente seguros. Coisa
impensável pouco antes. Por destruir grande parte dos germes presentes nas
carnes, tivemos diminuídas em grande número a mortalidade e enfermidades ligadas
à ingestão de carne crua.
Não somos naturalmente assassinos. Fizemo-nos
assassinos. A necessidade urgente de nos
tornarmos caçadores, aliados a algumas características próprias, como um grande
cérebro, a rotação do polegar e a capacidade preênsil das mãos daí advinda, deu
aos nossos ancestrais uma fúria assassina que os fizeram superar os especialistas
na ‘arte’ de abater outros animais. Em pouco mais de um milhão de anos nos
fizemos assassinos mais hábeis do que os assassinos especialistas que levaram
milhões e milhões de anos sendo aperfeiçoados pela natureza para a predação. Em consequência, tivemos garantidos não só a reprodução da
humanidade como o permanente aperfeiçoamento de qualidades inatas e adquiridas.
Não voltamos ao paraíso, mas nos adaptamos ao inferno onde caímos das árvores e
nele instalávamos nosso reino e reinado.
A Liberdade Guiando o Povo Eugène Delacroix |
Mas as transformações que nos garantiram tais
conquistas evolutivas nos trouxeram sérios problemas também. Ao nos fazermos primatas
de rapina, lobos inteligentes, compulsivos perseguidores de presas - mesmo as
simbólicas que se desenvolviam paralelamente, como as brincadeiras infantis ou os
jogos de adultos - permitimos à nossa espécie fazer da nossa espécie também presa.
Inauguramos a guerra. Instauramos, no inferno em que já vivíamos um novo tipo
de relação entre sociedades da mesma espécie baseada na truculência, na
violência, como se de outra espécie fosse. A guerra. Ao compensarmos, com nossa
inteligência, nossas deficiências como caçadores desenvolvemos eficientes
métodos de ensino/aprendizagem. E nos ensinamos e aprendemos a ser cruéis com
nossos inimigos. Sejam animais de outras espécies, sejam hominídeos ou humanos.
A guerra é a face mais sombria e cruel do instinto humano da caça. No inferno
nos fizemos senhores dos felinos e dos cães que o dominavam.
Quando o ser humano se transforma em caça e o
caçador é o próprio animal humano, a selvageria não tem limites. A vítima se
transforma em ser de outra espécie e deve, por isso, ser aniquilada. Os que
dizem que a humanidade é naturalmente pacífica, mansa, estão redondamente
enganados. Somos caçadores, temos instinto de caçadores e estamos sempre no
encalço de alguma coisa, caçando. Mesmo as inocentes brincadeiras infantis são,
na sua maioria, treinamentos e aperfeiçoamentos do instinto da caça.
Esconde-esconde, manja, barra, bandeirinha envolvem elementos fundamentais da
caça: definição do alvo, perseguição, captura e premiação. Neotênico, o animal
humano levou para a vida adulta a diversão proporcionada pelos jogos infantis e
criou os esportes com os quais se diverte com ‘caças simbólicas’. Atualmente o
futebol é um dos mais poderosos substitutivos da caça propriamente dita. Esse
atributo de satisfazer parte de seu instinto de caça com substitutivos
simbólicos, como jogos, brincadeiras e outras atividades sociais que inventamos
com tal propósito, atenua os efeitos profundamente nocivos que a não satisfação
do instinto nos provocam, diluindo parte considerável das necessidades
instintivas. Mas não é suficiente para nos fazer dóceis, mansos, não violentos.
Ao nos fazermos humanos, fizemo-nos assim: caçadores, guerreiros.
Para que a espécie não perecesse diante de
tamanha agressividade e violência, teve que desenvolver poderosos inibidores do
instinto. Posturas de submissão, como
aquelas em que nos prostramos diante de um superior hierárquico; fortes
sentimentos como lealdade, fidelidade e outras mais. No entanto, o mais
importante inibidor é o espaço político. Este é, por natureza, um espaço de
representação dos interesses divergentes, contraditórios ou antagônicos. Um
espaço onde aquele que pretende manifesta e defende sua pretensão, e onde aquele
que resiste à pretensão manifesta e defende os seus interesses. Naturalmente
que um ou mais interesses acabarão por se impor aos demais. Mas de um modo
humano e ‘civilizado’ evita-se o combate físico e mortal. A palavra combate tem
origem na idéia de ‘lutar consigo mesmo’. Assim faz a nossa humanidade.
A guerra não existe somente ‘lá fora’. Está
dentro de nós. Internalizada de tal maneira, que nos tornamos indiferentes aos
que estão sofrendo as suas consequências neste momento. No Sudão, Afeganistão,
Chade, Síria, milhões de seres humanos estão sendo massacrados, humilhados,
violados, estão vivendo ‘vida de cão’ e, embora saibamos disso não nos
indignamos ou não temos suficiente indignação para nos rebelarmos. O
‘treinamento’ que fazemos para sermos sempre bons caçadores - mesmo que
simbólicos, como com a perseguição do sucesso profissional, a perseguição ao
diploma acadêmico ou aos eleitores - cria uma capa de indiferença que
neutraliza os sentimentos de piedade, a não ser que envolvam nossos interesses
pessoais ou nacionais.
Guernica (1937) - Pablo Picasso |
Estamos treinados e preparados pelo nosso
espírito de humanidade a não acabarmos com as guerras. Mas a aceitá-las e a
reproduzi-las. Guerra é Guerra. Guerra é História. Guerra é Cultura.
Dissemos acima que, quando controlamos o fogo,
fizemos uma grande revolução: transformamos o movimento mecânico em calor. Essa
revolução nos trouxe inúmeras transformações tanto físicas como culturais.
Meio milhão de anos depois, fizemos o
movimento inverso, fizemos uma nova revolução: transformamos o calor em
movimento mecânico. Inventamos o ‘movimento a vapor’. Somente se passaram
duzentos anos desde então, mas as marcas dessa revolução já se fazem presentes:
altíssimo desenvolvimento tecnológico; destruição do vírus da varíola; criação
de potentes antibióticos; carro, aviões, foguetes, pouso na lua; etc. etc. Mas
a guerra continua. Dentro de nós.
A minha esperança (que, aliás, é um poderoso
atributo do bom caçador - no Acre chamamos de ‘espera’ a modalidade de caça em
que o caçador aguarda longa e pacientemente sua presa) é que, assim como o
controle sobre o fogo contribuiu para fixarmos o instinto de caçador no
instinto do espírito da humanidade, essa nova revolução iniciada há poucos
duzentos anos, nos ajude a erradicar o instinto da caça do nosso espírito e que
possamos recuperar parte da animalidade perdida, roubada por uma humanidade
violenta, desumana. Aceitar, compreender e recuperar aspectos positivos de
nossa natural condição de animais, de primatas que somos nos tornarão mais
humanos. Paradoxalmente, só a consciência de nossa animalidade poderá
desenvolver, alargar e fazer evoluir a nossa humanidade.
Sou professor de História, sei que nunca
chegarei a ver isso, talvez nem mesmo em sonhos, mas ‘sonho’ com o dia em que
os colegas do futuro, já não falarão de Júlio Cesar, Napoleão, Plácido de
Castro ou Lampeão. A não ser como referências negativas que realmente são.
Um texto taludo e sem defeitos.
ResponderExcluirO autor e o dono do blog merecem aplausos.
Leila Jalul