Luiz Felipe Jardim
Jovem Guarda
Jovem Guarda foi um programa musical da TV Record de São Paulo levado ao ar pela primeira vez em 22 de agosto de 1965. Sob o comando de Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos, apresentado e transmitido ao vivo nas tardes de domingo, foi sucesso desde sua estreia até o seu fim, que a rigor aconteceu dois anos e meio depois, em janeiro de 1968. No Programa se apresentaram quase todos os ídolos da juventude da época como Renato e seus Blue Caps, Jerry Adrianni, Wanderley Cardoso, Martinha, Silvinha, Os Incríveis, O Vips entre outros. Tal foi o sucesso, que a marca Jovem Guarda estendeu-se e deu nome a todo um movimento de juventude que, iniciado alguns anos antes com a chegada do Rock and Roll ao Brasil prolongou-se até inícios da década de 70. Jovem Guarda deixou de ser somente o nome de um programa de TV e passou a denominar também um 'movimento' que até então era denominado Iê-Iê-Iê.
No Acre não havia TV, portanto não se assistia ao JG, mas havia grande interesse pelos seus artistas e suas canções que aqui chegavam através dos LPs e Compactos. As rádios locais passaram a ter programação voltada para esse público além de eventualmente produzirem programas de auditório onde havia preponderância de músicas da JG. Também empresários locais trouxeram artistas do núcleo e da órbita do Iê-Iê-Iê como: The Clevers, Deny e Dino, Vanuza, Nalva Aguiar, Rosemary, e já bem mais tarde, em 1973, o próprio Roberto Carlos. As apresentações destes artistas se davam geralmente no Cine Acre, Cine Rio Branco ou no Estadium José de Melo.
Jovem Guarda e Juventude
Nos anos 50 e 60 havia uma 'explosão de juventude' no mundo. Depois de uma primeira metade de séc. com duas guerras mundiais e grande extermínio de jovens, a juventude se refazia. Com um novo ‘jeito jovem de ser’, e abraçados ao Rock, dizia não às guerras, buscava novos parâmetros estéticos, questionava valores e princípios... Criava-se uma 'indústria jovem', que implicava em literatura própria, vestuário, linguagem, música e poesia próprios. Surgia uma 'nova adolescência' e uma 'nova juventude', fases em que não se é mais criança e ainda não se é adulto e em que se quer ser as duas coisas simultaneamente. Não que antes não houvesse adolescência ou juventude, a novidade estava na reivindicação do amplo direito de sê-lo e de sê-lo por mais tempo. Grande número de canções da época de todo o mundo, reivindica esses direitos. No Brasil, a JG traduzia essa linguagem e inseria particularidades suas nos seus cantos e reivindicações como, o direito de ser inconsequente (“entrei na R Augusta a 120 por hora”); de ser superficial (“... e que eu não ligo para nada”); às aventuras (“vinha voando no meu carro...”); ao namoro livre (“...casamento, enfim, não é papo pra mim”).
Vale lembrar que o crescimento da importância desses grupos etários se dava paralelamente ao crescimento de uma indústria cultural que dava a esses mesmos grupos elementos crescentes de possibilidades de atuação e de visibilidade. Dentre esses elementos o "rock" era o mais difundido e o que melhor refletia as vivências, as emoções e os desejos dos jovens de todo o mundo.
Em Rio Branco surgiram vários conjuntos musicais que tinham a formação básica dos grupos de rock. Os Brasas, Os Signos, 2001, entre outros, sendo Os Bárbaros e Os Mugs os que mais longa vida tiveram e os que mais influenciaram e atenderam à vontade musical de sua população.
Nos EUA, em 1964, 40% da população total do país tinha menos de 20 anos de idade. E mais de 50% da população, menos de 30 anos.
Rio Branco iniciou os anos 60 com 47.437 habitantes e chegou aos anos 70 com 83.977. O crescimento de 36.540 habitantes somente nestes dez anos é maior do que a população que a cidade tinha em 1950, ou seja, 28.246 habitantes. Além disso era o dobro da população de 1940 que era de 16.038. A população de Rio Branco cresceu em 10 anos mais do que crescera em 50 anos.
NEOTENIA
Uma das qualidades do ser humano é a de ser capaz de levar para a vida adulta características próprias da infância, como a curiosidade, o fascínio pela novidade por exemplo. A isso chamam de neotenia/neofilia que é algo como a permanência de caracteres infantis em animais sexualmente maduros. Essa característica foi fundamental para o ser humano quando esteve prestes a se extinguir em diversos momentos da Pré História.
A curiosidade, a busca pelo novo, pelo diferente, além da diversão, próprios da infância, também produzem cultura e ciência na vida adulta. O que fazem ator e espectador senão 'brincar de mentirinha' do tipo ‘eu finjo que sou e você finge que acredita’? O que faz o milionário jogador de futebol senão 'brincar de jogar bola'? O que faz o cientista senão 'olhar nas fendas' (nas brechas, diria o acreano) da realidade buscando realidades nuas, ocultas ou semi-ocultas?...
Na época da JG, a juventude do mundo reivindicava ferozmente o direito de ser jovem por mais tempo. É que em quase todas as sociedades do mundo e em todos os tempos, a passagem da infância para a vida adulta se dava muito cedo. As pessoas se casavam cedo e assumiam papéis de adulto muito cedo porque a mensagem biológica do crescei e multiplicai-vos incrustada no DNA é poderosíssima. Essa mensagem contribuiu, em parte, para a garantia da sobrevivência da espécie humana adaptando-a a todo o planeta.
Após a chamada Revolução Industrial, as coisas tenderam a mudar. Com o prolongamento da expectativa de vida e o desenvolvimento das ciências médicas, mais remédios, mais vacinas etc. as pessoas já não precisaram ter tantos filhos e nem casar tão cedo para ter garantida a reprodução da espécie. Como o número de filhos por casal diminuiu significativamente, o homem fez um arranjo em sua natureza promovendo um prolongamento artificial da infância. Os filhos, cada vez menos, ficariam cada vez mais tempo em casa sob os cuidados dos pais, preparando-se para a vida de adulto. Isto era novo, nunca houvera acontecido na história da humanidade em tais proporções. A humanidade se ‘infantilizava’ e reinventava a juventude. Nas décadas de 50 e 60, a juventude dava novas formas às novas fisionomias que deveria ter. A JG era uma das várias fisionomias que tinha a juventude do Brasil e do mundo.
O crescimento expressivo, nos anos 50 e 60, das publicações de revistas de História em Quadrinhos e das produções de desenhos animados para Cinema e Televisão (e da importância dos ‘vídeo games’ na atualidade, não só para crianças e jovens, mas também para os ‘jovens há mais tempo’), são aspectos culturais significativos desta 'infantilização '. A propaganda de televisão se aproveitou bastante deste processo já que ao assistir ao anúncio em desenho animado, o espectador tende a ficar momentaneamente 'infantilizado', momentaneamente 'desarmado' e passivo; é aí que a propaganda 'dá o bote' e internaliza no espectador a simpatia pelo produto oferecido e a vontade de consumi-lo.
JG e Economia Minissaia e Escovão
Nos governos JK, Jânio, Jango e posteriores, a indústria automobilística se delineava, se enraizava e se consolidava como ponta de lança da economia nacional. Roberto Carlos é um dos arautos desse processo com o seu 'Calhambeque' e com sua Jovem Guarda. Ambos cantavam os carrões, difundindo um fascínio, que se convertia em vontade coletiva, que se convertia em moda e consumo, que se convertia em... lucros.
Calhambeque era também uma marca de roupas para jovens. Lembra que as calças Calhambeque para rapazes e moças eram bem ‘apertadas’? E que as saias Calhambeque eram minissaias? Isto acontecia, em certa medida, porque, em 1961 o governo de Cuba mudou-se de mala e cuia para o lado Soviético da Guerra Fria. Na mala e cuia de Cuba estava sua enorme produção de algodão, que até então abastecia parte significativa da indústria têxtil ocidental. Resultado: quase faltou algodão para todos os do lado da OTAN, principalmente para o parque têxtil inglês. Além de redesenhar e redimensionar as áreas de produção de algodão pelo mundo, (onde até o Nordeste brasileiro tirou uma casquinha revitalizando velhos e moribundos algodoais), outras duas linhas de urgência foram adotadas para superar a crise: intensificar pesquisas e produção de fios sintéticos, e, além dos cintos, apertar as calças e diminuir o tamanho das saias. Lembra da camisa Volta ao Mundo? Da camisa Banlon? Das calças de Tergal? Eram todas marcas de fios sintéticos que foram moda no mundo.
É nesse contexto que surge a minissaia. E embora ela tenha promovido uma grande revolução pelo mundo afora, em certa medida, nasceu de uma reação, nasceu da necessidade imposta por uma conjuntura de mercado.
Logo depois, já no segundo tempo e na etapa de prorrogação da Jovem Guarda a indústria têxtil, abastecida e recuperada, vai à forra e aumenta o tamanho das saias e calças do mundo. Quando RC veio ao Acre em 73, já estava desvestido das apertadas Calhambeque. Usava calças bem mais largas de enormes bocas-de-sino e de tipo toureiro, que iam até o umbigo. Ou seja, muito pano pras mangas (umbigos e canelas) para compensar as perdas recentes de segmentos da indústria têxtil ocidental capitalista.
Ao seu tempo, a JG cumpriu muito bem com uma de suas funções, que era a de estimular o fluxo de novidades, instilar novas idéias e sentimentos nos interiores do Brasil, preparando-os para as novidades do consumo. É que 'pari passu' com a JG se movimentavam pacotes de vontades de consumo que incluíam desde vestuário até eletrodomésticos; desde disco de vinil até poltronas e sofás; desde bonecos Mug até automóvel Aero Willis. Foi aí que a geladeira - ainda com seu fiel pinguim, instalou-se definitivamente nas cozinhas brasileiras; foi aí que a enceradeira elétrica substituiu o escovão colonial; foi aí que o fogão a gás substituiu o pré-histórico fogão a lenha. O imaginário que a JG trazia e suscitava, impulsionava esse tipo de modernização, promovendo flexibilidade nas mentalidades normalmente mais resistentes e conservadoras do Brasil rural, do Brasil do interior e suburbano.
O Acre na Jovem Guarda
O Acre fazia-se Estado, havia debates intensos, muito calor na vida política, com direito a golpe militar, cassações políticas e tudo o mais. Voltavam para sua terra os primeiros acreanos médicos (Mário Maia, Amorim), advogados (Lourival Marques, Jersey Nunes), engenheiros, arquitetos (Fernando Castro), sociólogos (Helio Koury)... O próprio primeiro governador do Estado, José Augusto estudara Filosofia no RJ. Estas pessoas teriam importância grande na construção da fisionomia do espírito coletivo acreano. Além destas, chegavam outras que seriam relevantes naqueles anos e em posteriores, como Aderbal Maximiniano, Abrantes Guedes, Laélia Alcântara, Dom Giocondo, Antônio Anelli e muitas outras que traziam, idéias, livros, discos, novidades enfim, que interagindo com o que aqui existia, alimentavam e realimentavam o panorama de mudanças.
Esta fermentação de idéias e cristalização de possibilidades foi o combustível que produziu tanto a Faculdade de Direito do Acre (FADA), como o Juventus (Atlético Clube Juventus). A FADA veio a ser a UFAC, centro de difusão, pesquisa e produção de conhecimento. O Juventus se constituiu desde logo em pólo irradiador de intensas atividades de desporto, cultura e... políticas. Ambas as instituições têm marcado enormemente a vida política e administrativa do Estado. Vale lembrar que os quatro últimos reitores da UFAC, Jonas, Carlitinho, Lauro e Sansão, ou foram atletas ou são membros da família juventina. Dos últimos governadores, Arnóbio, Jorge, Flaviano, Tião, todos juventinos. Não é sem motivos que os nomes das fundações de cultura administradas pelo Estado e Município, homenageiam dois proeminentes da família juventina, Garibaldi Brasil e Elias Mansour.
Elias Mansour talvez seja o nome síntese do período da JG no Acre. Fundador do Juventus fundou simultaneamente, desafiadora e enigmaticamente - como um bom cassado político deveria fazer, e como bom filho de seringalista/comerciante deveria ser – algumas das bases espirituais da administração futura do Estado. Ao som da JG entoado por seus irmãos e primos de Os Bárbaros, Lilias embalava um futuro invisível que talvez intuísse com a precisão de sua abstração matemática. Ao som da JG, num Juventus onde embalava a juventude, Elias antevia um futuro onde seus ‘jovens primos’... bom ...onde seus ‘jovens primos’ ...bom ...onde seus ‘jovens primos’ comandariam um grupo de poder político de tamanha força como nunca acontecera na História do Acre. Elias não viu, anteviu.
PARALIPÔMENOS
Existe certo maniqueísmo que nos diz que o comportamento da direita é assim e o da esquerda (inevitavelmente) assado. Este maniqueísmo nos impede de compreender coisas simples já que nos impede de ver as coisas com naturalidade. Muitas das mudanças que o mundo precisava fazer à época da JG eram pontuais, não eram necessariamente as mesmas em todos os lugares. Para as mulheres de certos pontos do mundo, o uso de sutiãs poderia ser tão revolucionário como atirá-los em fogueiras em outros. Para os homens, usar de cabelos compridos e roupas coloridas no nordeste brasileiro ou no sul da Itália poderia ter a mesma importância ou promover mais mudanças que muitas passeatas comunistas em Paris. O mundo estava de mudanças, e mudava sua fisionomia de acordo com a fisionomia que mudava em cada ponto seu. Assumindo diversos rostos, diversas formas, diversas expressões de si próprio... A JG era uma tênue e escura; densa e clara expressão dos rostos do Brasil.
Tanto à esquerda quanto à direita, ora contraditória, ora incoerente, a JG se movimentou nos espaços reais e imaginários, culturais, políticos e econômicos com extensão e frequência que só os grandes movimentos têm. Há momentos em que músicos se inspiram e compõe canções. Canções iluminam pessoas nas suas vidas cotidianas. Pessoas animam grupos... que inflamam movimentos... que inspiram a História... Quando a História se inspira acontecem as revoluções. A Jovem Guarda era clarão do fogo que, num momento de inspiração da humanidade, ardia com as revoluções de sua época. A Jovem Guarda era uma brasa, mora!
* Luiz Felipe Jardim – Leciona História
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DOM HÉLDER CÂMARA
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