sábado, 4 de agosto de 2012

BRASILEIRO POR OPÇÃO - XI

José Augusto de Castro e Costa



As denúncias propagadas em folhetos, por José Carvalho e periódicos amazonenses, atreladas à prepotência, autoritarismo e desrespeito procedidos pelo Ministro José Paravicini no rio Acre, teria repercussão desastrosa para a Bolívia, em Manaus, Belém e no Rio de Janeiro – Distrito Federal.

A propagação referia-se ao decreto expedido pelo autoridário boliviano, como delegado de seu governo, abrindo os rios brasileiros à navegação dos países amigos da Bolívia, em detrimento do Brasil, incitando navios estrangeiros a violarem a soberania territorial brasileira.

Funcionários brasileiros, como o Chanceler Olinto de Magalhães, posicionaram-se contra as medidas bolivianas, argumentando que o Brasil jamais permitiria que navios estrangeiros navegassem pelas suas águas para Puerto Alonso.

Os precedentes relacionados à história acreana são recheados de perplexidades, com fatos ligados e entrelaçados como teias de aranhas.

Enquanto os ânimos nortistas manifestavam-se em pública e notória ebulição, eis que surge, no Cais de Belém, como num passe de mágica, sem ninguém esperar, uma canhoneira americana, denominada “Wilmington”.  Até aí corre tudo com certa naturalidade de aparente visita turística.

Em Manaus, porém, transgredindo normas, o comandante da canhoneira tomara a decisão de, sem autorização do governo brasileiro, partir do cais a noite, de maneira evasiva, com os faróis apagados e dirigir-se ao rio Solimões, subindo até ao município amazonense de Tabatinga e, posteriormente, a Iquitos, no Perú.

Ao retornar, o comandante da canhoneira teria sido alvo de severas críticas relativas à sua conduta, provocando comícios públicos e condenação geral pelo atrevido procedimento.

Única fotografia conservada de
Luis Galvez antes de 1900.
Encontrara-se em Belém, quando da chegada da belonave americana ao porto paraense, um “freelance” espanhol, interessado em produzir reportagens acerca da instalação da alfândega em Puerto Alonso. Trata-se de Dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria.

Nascido em Cádiz, Espanha, a 20 de fevereiro de 1859, filho do Almirante da Marinha Real, Fernando Luiz Galvez Concepcion de Aria e de Rosaura Rodrigues de Aria, de prendas domésticas, Dom Luiz Galvez, talvez seduzido pela imensidão da baía de Cádiz, vista do mirante de sua residência, cedo começara a viajar pelo mundo.

Aos vinte anos de idade fazia o curso de Ciências Jurídicas e Sociais  e complementava os estudos  aprendendo conversação em inglês, francês e português, o que viria dominar com desenvoltura e imperceptível sotaque.  Passou a juventude boêmia, andando com os guitarristas pelas bodegas do Alcazar, uma mocidade de modo tradicional, entre vinhos, mulheres, feiras, danças flamengas, porém  sem descuidar-se dos estudos.

Em 1889 estava servindo na diplomacia espanhola em Roma, seguindo daí, três anos depois, para Paris, a cidade Luz, que encontrara-se sacudida por atentados anarquistas. Posteriormente fora designado para servir em Buenos Aires, onde, em 1896, viria envolver-se em um assassinato, quando, por questão passional, fora  levado  a um duelo, ocasião em que tirara a vida do duelista adversário, que por sinal seria  irmão de sua namorada.

Demitido do corpo diplomático espanhol, Dom Luiz Galvez fora obrigado a abandonar a Argentina em quarenta e oito horas.  Em 1897 chegara a Belém, onde permanecera até 1898.  A passagem de ano de 1898 para 1899 fora comemorada num vapor, em frente à cidade de Parintins, no Amazonas, depois de Dom Luiz Galvez envolver-se em flagrante   com uma freira, numa  efetiva  copulação, quando viajava como  clandestino, em um barco fretado por religiosos, fazendo o mesmo trajeto Pará-Amazonas.  Escandalizados, os superiores sacerdotais desembarcaram os dois em Santarém, de onde prosseguiriam em outro vapor para Manaus.

O retorno de Dom Luiz Galvez a Belém prendia-se, em princípio, em obter uma entrevista substanciosa com Dom José Paravicini, que ainda encontrara-se na capital paraense com destino ao Rio de Janeiro, sobre suas atividades em Puerto Alonso e a consequente instalação do posto alfandegário para fiscalizar e cobrar tributos nos rios brasileiros.

As repercussões da questão do Acre condimentadas com a afronta  gerada pelo comandante da canhoneira americana, “Wilmington”, já constituíam ótimos ingredientes para aguçar o espírito agitado  e de  controvérsias, bem ao agrado do aventureiro.

Envolvido nos dois assuntos, que por sinal eram os que propalavam-se nos quatro cantos das duas capitais amazônicas, a vida de Dom Luiz Galvez era  bem ao seu gosto, de cabarés a refinados  salões, de humildes cafés a  requintados banquetes.

Colhendo informações, umas aqui outras ali, o irrequieto espanhol vai exercendo sua atividade de “freelance”, sempre relacionando seus contatos aos seus objetivos. Entre seus interlocutores, Dom Luiz Galvez cultivara maior aproximação a um patrício seu que prestava serviços ao Consulado boliviano.  Trata-se de Guilherme Uhtholf, que exercera a função de Comandante-Geral da fronteira em Puerto Alonso, e acompanhante do Ministro Paravicini.

Dom Luiz Galvez, além de atuar como “freelance” para jornais paraenses também logrou espaço para prestar assessoria no Consulado da Bolivia, graças ao seu preparo intelectual e a irmandade do idioma. Dada a intimidade dos dois espanhóis, Dom Galvez ficou sabendo que o Ministro José Paravicini estaria tratando, secretamente, de celebrar um acordo com os Estados Unidos, tendo encarregado a Guilherme Uhthoff de estabelecer as bases e apresentá-las ao cônsul americano. Tal documento deveria seguir para Washington pela canhoneira “Wilmington”, ancorada no porto de Belém, de regresso de sua clandestina e acintosa viagem por águas brasileiras até a fronteira com o Perú, sem permissão do governo brasileiro.

Em Manaus haviam-se iniciado as manifestações de rua, levadas a efeito por estudantes e populares, refletindo um sentimento generalizado de defesa do patrimônio ameaçado por bolivianos intrusos, usurpadores, considerados nocivos e perigosos para a integridade nacional.

O governo do Amazonas fez chegar às mãos do Presidente Campos Sales uma longa exposição dos fatos que se passavam no Acre, assim como as visíveis consequências da perda da região para a Bolívia. No citado documento enviado ao Presidente da República, o governo amazonense insinuara a possibilidade de eclodir, a qualquer instante, um movimento armado.

O Presidente Campos Sales não tomou a mínima providência, muito menos deu conhecimento a seu “staf” do conteúdo do documento.

Já introduzido no mundo social e jornalístico de Belém, inclusive participando da assessoria do consulado boliviano, Dom Luiz Galvez interessara-se em obter acesso ao teor do plano, cujas bases consistiriam em que os Estados Unidos auxiliariam a Bolívia para conservar sua soberania ao longo dos rios Purus, Acre e Iaco, mediante concessões aduaneiras e territoriais, com o agravante do fiel compromisso americano em fornecer  amparo financeiro e pesado armamento como precaução, à vista eclodir uma guerra entre Brasil e  Bolívia.

Na qualidade de detentor de fluente conhecimento da língua inglesa, Dom Luiz Galvez oferecera-se para preparar a devida versão do aludido documento para o inglês, no que foi aceito.

Durante o transcurso da versão o espanhol percebeu que estava diante de um assunto que contrariava bastante os interesses brasileiros. Denunciar aos quatro cantos um trágico plano, digno de uma condenação pública é, de certa forma compreensível. Entretanto, assumir atitudes ao ponto de trair seus atuais patrões, detentores de seus próprios princípios, inclusive a fraternidade da língua e postar-se, não só na defesa de uma pátria que acabara de conhecer, mas promover e comandar a expulsão dos invasores, é um procedimento de difícil compreensão. Pois ocorrera desta forma: Dom Luiz Galvez exonerara-se da assessoria ao consulado da Bolívia e regressara a Manaus, onde publicara reportagens sobre a ocupação intempestiva dos bolivianos, enquanto era revisto e estudado, para uma perfeita interpretação o texto do Tratado de Ayacucho. Adicionara às denúncias, o caso da canhoneira americana e, sobretudo, o plano da intervenção diplomática e armada americana ao longo dos rios acreanos, em favor da Bolívia.

A fronteira não estava ainda determinada e somente em 1895 os governos do Brasil e da Bolivia deram início à negociação neste sentido. Há quase trinta anos os brasileiros ocupavam, de maneira efetiva, os rios Purus, Alto Acre e Iaco. Fundado nesta ocupação, possuía o Brasil, independente de qualquer outro título, o ‘UTI POSSIDETIS’, um princípio do Direito Internacional.

Seria esse princípio jurídico internacional o argumento a justificar o posicionamento de um espanhol, residente há apenas dois anos, de  defender a soberania  de um país totalmente estranho, no que concerne  às estações climáticas, aos costumes, à língua e gírias diversificadas, a tudo afinal?    Quando da apressada fuga de Buenos Aires, o espanhol pensara em seguir para a India, estabelecer-se em Macau ou viver na Indonésia. No Rio de Janeiro, porém, um compatriota seu, de Bilbao, convencera Dom Luiz Galvez a vir para a Amazônia, pois houvera ficado milionário no Amazonas.


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* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.

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