Cheiro de roupa suja
é um pouco demais. Claro, se o tucupi é fermentado, não exala odor de rosas, e
seu cheiro próprio sabe a levedo... Mas roupa suja?
- A cidade toda é só
roupa suja, dizia-me o paulista, referindo-se a Belém.
- Belém é uma cidade
bordada de mangueiras, sombra digestiva, limpa, clara, bonita, lavada quase
todos os dias pela chuva da hora do almoço, tem o rio, e a brisa que dele nos
traz o cheiro de água limpa (água limpa tem cheiro, sim senhor!).
- Cheiro de roupa
suja? Só muita insensibilidade.
Adiantava meus
argumentos? E vinham outros. Então era pôr ponto final naquela discussão
estéril: tacacá, só para os iniciados.
É como lhes digo.
Pensar em tomar aquela beberagem, branco da goma não se misturando com o tucupi
amarelo-urina, concentrado, folhas boiando, e mais camarão seco laureando a
composição bizarra, tudo numa cuia que compõe o paladar (iniciado que se preze
não toma tacacá em tigela), tome coragem.
O ditado que corre
Brasis – “chegou ao Pará, parou; tomou açaí ficou”, devia ser “tomou tacacá,
ficou”. Não há meio-termo. Que nem o Brasil da “gloriosa” c de 64: ame-o ou
deixe-o. Gostar ou não gostar é ali no primeiro gole – ou cusparada.
Como é, mesmo? Assim:
numa cuia (geralmente pintada por fora com motivos regionais, cores fortes)
deita-se primeiro o tucupi bem quente, fervendo. Depois a goma (procure abaixo
como se prepara). Mais um bom punhado de jambu, bastante camarão seco, e molho
de pimenta de cheiro a gosto.
Gosto de quê? Meio
ácido o tucupi, gosmenta a goma, um tico adocicada. Jambu, a flor dá um
pinicado na língua. Camarão seco dando o toque final.
No Acre se toma
tacacá. Aliás, o Norte inteiro. Em cada cidade, nas esquinas ou num canto de
calçada, a tacacazeira monta seu ponto: fogareiro a carvão, uma bacia e
provisão de água para lavar as cuias, mesa, e sobre toalha limpíssima, as
cuias, colheres, sal, e molho de pimenta. Mais um ou dois bancos coletivos. É
só se abancar. Os fregueses são assíduos e fiéis à “sua” tacacazeira. Lá pelas
duas ou três da tarde começam a chegar: prosa em banho-maria, nenhuma pressa.
Quando estava no
Ginásio, dona Lídia era minha tacacazeira preferida. Do pátio à sua banca,
bastava atravessar a rua. Última aula antes do recreio, cheiro de tacacá invadindo
a sala, correria só, ao toque da sineta. E a meninada, em fila, vamos logo dona
Lídia, que o recreio acaba! Eu esperava, paciente. Acho que por isso ela me
protegia. E ria quando eu lhe pedia não tem ai um jambu com florzinha? –
Viciou, mesmo, não? – é que ela havia lido que a florzinha do jambu – parente
próximo da maconha – viciava. Sei não. Só sei que na hora do tacacá vinha
aquela vontade que não adiantava pôr em infusão. E toda tarde (fomos morar
perto do ponto do tacacá da Donana), o cheiro ia me buscar, depois da sesta.
Donana, preta velha, gorda, morava no térreo do “Pombal”. Chão de terra batida,
escuro e... fedia. Um dia correu a cidade que Donana punha as calcinhas de
molho (ou...) no tucupi, para atrair a freguesia. Fiquei um tempo sem tomar
tacacá da Donana. Quem disse que aguentei?
É, cheiro de roupa
suja, não, mas...
* FLORENTINA ESTEVES é da Academia Acreana de Letras. A crônica Receita para "brabo" está publicada em ESTEVES, Florentina. Enredos da memória. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1990.
Que delícia de conta, Florentina.
ResponderExcluirAdorei essa acrianidade em suas letras trazendo gostos, cheiros e lembranças. Em "Rio que menino nada raia não ferra" publiquei um conto onde também falo do manjar dos nortista - o tacacá.
Parabéns e um abraço.