domingo, 23 de setembro de 2012

REAIS FICÇÕES DE LEILA JALUL

Isaac Melo


“Luzinete: um angu de caroço?” é o insólito título do mais novo livro de Leila Jalul. Trata-se de uma série de crônicas concatenadas que fizeram vir à tona um romance. Jalul não se utiliza de um hermetismo literário, nem de um eruditismo para tecer o seu fazer literário. Ela vai à vida, bruta como é. Para então recolher as pérolas jogadas aos porcos.

Sou do parecer de uma literatura acreana desacreanizada, para se tornar creditada e acreditada. Entenda por desacreanizar, o afastar-se de um mero regionalismo que espelha apenas os aspectos histórico-sociológicos do Acre, aspectos estes que podem ser trampolins para se chegar à literatura, não um fim em si. Clodomir Monteiro, em “A sinuca da Olaria”, e Florentina Esteves, em o “Empate”, são claros exemplos de como a literatura acreana progride. Embora se utilizem de elementos locais, o que fazem assume dimensão universal, entre outros, por contemplarem em seus enredos elementos comuns a qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer tempo. Assim também penso em relação à Leila Jalul.

Nota-se, nos escritos de Jalul, a facilidade com que transita por caminhos e temas diversos, em sintonia com o ambiente dos enredos. Assim ela vai do norte da Itália a um seringal da Amazônia ou a uma fazenda no interior da Bahia, e traduz, com precisão literária, a realidade de cada um, com suas peculiaridades. O tecido de tramas, no entanto, não se afasta da vida humana, com toda a teia de complexidade que a envolve. Jalul é uma escritora de seu tempo, com as glórias e os horrores de seu tempo. Suas personagens não são andróides ou seres de um mundo desconhecido, mas homens e mulheres que se assemelham a qualquer um de nós. É assim com Luzinete.

Dante cantou Beatriz, Jorge Amado imortalizou Gabriela, Bandeira poetou às moças do sabonete Araxá, e Leila Jalul nos legou a baiana Luzinete. Conforme Nicinha Padilha, Luzinete nos “transporta para o universo de mulheres com as quais convivemos diariamente”. Ela é a realidade que emerge da ficção ou seria a ficção que emerge da realidade? Como faz saber Luiz Felipe Jardim, a “Ficção é uma realidade que se diferencia da pura realidade somente por não ter acontecido como a Realidade gostaria que tivesse acontecido”.

Ao longo do viver, deparamo-nos com pessoas que não se encaixam nos padrões convencionais a que estamos habituados a conviver. Fogem e fazem fugir da mesmice de uma vida em constante linha reta de insignificâncias. Provocam-nos, concomitantemente, os mais distintos sentimentos, ao passo que incitam raiva, inspiram ternura. Pois, como revela a autora, “não são todos os dias e nem sempre que ela entra macio nas goelas estreitas e entupidas da grande maioria das pessoas”. A relação entre as duas, Leila e Luzinete, a iniciar em aparente desacordo, solidificou-se com o passar do tempo numa relação quase maternal, de mãe e filha. A discrepância de idade e de cultura não fez com que uma precisasse “descer para baixo” e nem a outra “subir para cima”. Talvez poder-se-ia utilizar, em analogia às duas, os célebres personagens de Cervantes, Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, em que um se apresenta necessário ao outro.

Luzinete, por sua vez, não pode ser reduzida a um mero estereótipo, a de mulher sem papas na língua, grosseira, mexeriqueira, nociva até. Embora pareça andar na contramão de certas convenções, como fazer tatuagem nas sobrancelhas e arrancar o próprio dente com o alicate de mecânico do marido, revela-se uma mulher sensível, capaz de se enternecer com as flores, atenta aos acontecimentos a sua volta, honesta e destemida, não se curva às injustiças, uma mulher que ama, mesmo não recebendo a mesma medida de amor com que amou, e que sempre tem um sorriso a partilhar, em sua vivacidade arguta e sofrida. Tem certo quê de ingenuidade, com suas deduções literais, como a que faz usar Cândida (ácido muriático) para curar candidíase. Porém, é uma ingenuidade de quem desde cedo foi privada das asas da educação, que, deduz-se, um dia a faria alçar voos mais profundos, altaneiros. Portanto não se trata de uma ingenuidade à la Macabéa clariciana, como alguém fizera recordar acertadamente. Quiça, a lembrar vagamente o espírito atormentado de uma Emma Bovary.

Segundo as palavras de André Alexandre, “Luzinete é forte, é presente, é real. Sua espirituosidade, esperteza, brejeirice, malemolência, são maiores que as de Leila Jalul”. Cabe assim perguntar-nos: o que há de Leila em Luzinete e o que há de Luzinete em Leila? A diacronia de ambas parece formar única sinfonia. Seria caso de afirmar então que Leila e Luzinete são duas verdades, duas ficções intercaladas pelo real.

Um autor consegue superar-se quando seus personagens ou criações o superam. Milan Kundera recomendava mudar de profissão os autores que fossem maiores que seus romances. Como recorda-nos André Alexandre, Luzinete já tem vida própria. Isso demonstra o amadurecimento literário de Leila Jalul no próprio amadurecer de seu viver. Cresce a literatura brasileira. Agiganta-se, a acreana.

Aprendi de Kundera, sob a influência de Richard Rorty, que romance não pode reduzir-se apenas a um divertimento literário. Sua função também é possibilitar o desvelamamento de nosso ser. Kundera ainda afirmava que romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. Porém ressalta, a única moral do romance é o conhecimento. Por isso, os romances que não estendem a conquista do ser, a nada se prestam, pois não descobrem nenhuma parcela nova da existência, apenas confirmam o que já se disse. Leila recolheu pedra bruta e transformou-a em formosa obra de arte. Sua originalidade não está no tema, vulgar, por sinal, mas naquilo que desperta em nós, seja alegria ou insatisfação. Pois, ao modo de Drummond, ela só tem duas mãos e o sentimento do mundo.


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