sexta-feira, 30 de novembro de 2012

PROFUNDAMENTE NOS TEUS SONHOS

Luiz Felipe Jardim


Queria ir ao teu inconsciente,
consciente de estar onde estaria.
Ao sopro denso do inquieto querer,
vagar nos ninhos do teu ser... 
Nas paisagens dos teus sonhos. 
Mergulhar no teu delírio natural.

N'algum lugar das tuas lembranças, 
das que mais profundamente tens dentro de ti, 
deixar-me íntimo, fluido, inteiro.

                            E,

nos vôos ágeis dos pensamentos, 
voar nas asas dos sentimentos. 
Ir aos teus olhos e 
ver (-te-r-me) 
leve e terno
passageiro
        .

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

BRASILEIRO POR OPÇÃO - XXIV

José Augusto de Castro e Costa


O Tratado de Petrópolis, em princípio, constituíra-se na primeira solução de uma contenda diplomática, a qual ainda requereria efetuar outros ajustes em relação ao Acre, que envolviam também o Peru, além da Bolívia.

Tratava-se de desarmonia havida entre os dois países, tendo justamente o Alto-Purus e o Alto-Juruá na pauta das discussões da área acreana, o que levara o Barão do Rio Branco a aprofundar-se nas negociações, objetivando dispositivos harmoniosos que chegassem aos completos entendimentos entre Bolívia, Peru e Brasil. Da Comissão de Limites do Brasil, prestara grande contribuição para solidificar os conhecimentos do Barão do Rio Branco sobre a região litigiosa e a consequente elaboração dos seus fundamentos, ao assinalar que, “...partindo da foz do Purus e percorrendo uma distância de 1.417 milhas ou cerca de 400 léguas, tem-se a prova tangível de que quatro quintos do majestoso rio estão completamente povoados de brasileiros, sem um hiato, sem a menor falha de uma área em abandono, ligados as extremas de todos os seringais -, estirando-se unida por toda aquela lonjura, que lhe define geometricamente a grandeza, uma sociedade rude porventura ainda, mas vigorosa e triunfante”.

Seis anos após a elaboração do documento de Petrópolis, com a data de 08.9.1909 seria finalmente assinado o “Tratado entre o Brasil e o Peru, completando a determinação das fronteiras entre os dois países e estabelecendo princípios gerais sobre o seu comércio e navegação na bacia do Amazonas”.

Estando o Acre, no princípio de 1904, legalmente integrado na Federação brasileira, Plácido de Castro sentindo-se no dever de prestar contas de sua atuação na campanha, ao chanceler Barão do Rio Branco, dirigira-se à capital da República.

No dia 23 de abril, ao aportar o navio ao Cais Pharoux, no Rio de Janeiro, o Caudilho fora recebido e passara a ser alvo de homenagens de todos os ministros de Estado, dos membros das Comissões do Senado e da Câmara Federal, do presidente da Associação Comercial, da imprensa, dos estudantes e do próprio Barão do Rio Branco, por sinal, o primeiro a apertar-lhe as mãos, salientando que sua bravura cimentara os alicerces do Tratado de Petrópolis. Segundo jornais da época, os brados de exaltação a Plácido ressoaram por toda a Praça XV, sem interrupção, à medida em que o cortejo movimentava-se lentamente, sob a ovação popular.

O Território do Acre, após o Tratado de Petrópolis, ficara dividido em três Departamentos administrativos: O Departamento do Alto Acre, o Departamento do Alto Purus e o Departamento do Alto Juruá, criando-se, posteriormente, o Departamento do Tarauacá. Os Departamentos eram administrados por Prefeitos de livre escolha e nomeação do Presidente da República. Suas administrações eram amplas e abrangentes, destacando-se as relacionadas à administração rotineira e a segurança pública. As questões atribuídas à Justiça cível e criminal ficavam ao encargo dos juízes de Direito, juiz de Comarca e ao júri.

Em junho de 1904, Plácido de Castro fora empossado Prefeito do Alto Acre, vindo a ser substituído, posteriormente, em razão de intrigas e disputas políticas com as oligarquias locais, figurando como principais adversários o prefeito substituto, coronel Gabino Bezouro e o delegado de polícia, seu ex-companheiro revolucionário, Alexandrino José da Silva.

Plácido de Castro, depois de viajar ao sul do país, em visita aos seus familiares, adquirira novo ânimo e decidira retornar ao Acre, desta vez, porém, em busca de fortuna.

Por sua própria deliberação integrara-se o Caudilho, na atividade industrial do extrativismo da borracha, na terra que aprendera a amar e a elegera como seu lar.

Contrato de constituição da firma J. Plácido & Cia.,
objeto de acervo pessoal do autor.
O Caudilho adquirira legalmente, a crédito de uma firma de Belém, no valor de cento e vinte contos de réis, pagáveis a longo prazo, o seringal “Capatará”, localizado a algumas milhas acima da “Volta da Empresa”, que passara a denominar-se “Vila Rio Branco”.

Durante uma viagem ao Rio de Janeiro, Plácido tivera por companheiro o escritor Euclides da Cunha, o qual o incentivara a escrever e publicar seus apontamentos sobre a Revolução Acreana.

Aquele escritor tinha a pretensão de ocupar-se dos sucessos que trouxeram o Acre para o Brasil, e Plácido, a título de contribuição, forneceu seus apontamentos que estenderam-se desde junho de 1902, quando achava-se no “Território de Colônias, da Bolívia, demarcando o seringal “Victória”, de José Galdino, até quando publicou a ordem do dia, dissolvendo o Exército acreano, em vista do general brasileiro ter invadido o Acre Meridional e assumido clandestinamente o seu governo, que não estava acéfalo.

Ao retornar, Plácido de Castro encontrara o Acre em ebulição, com as autoridades federais do exército temendo as ideias políticas dos que pleiteavam perante o Congresso Nacional a criação do Estado do Acre. Eram distribuídas sentinelas, postadas nas curvas do rio e na boca dos varadouros. A instabilidade dessas turbulências políticas eram sentidas nos três Departamentos.

O temor de oposição ou de deposição, que em referência aos chefes acreanos manifestavam os prefeitos para ali enviados, constituía uma verdadeira psicose, proveniente talvez de ambiciosos planos acariciados, agravada de certo pela estranheza do ambiente e pelo pavor de adoecer e sabidamente alimentada e usufruída pela corja de intrigantes e exploradores que os seguia ou os cercava.

Confirmando a regra que se vinha estabelecendo, ao assumir a Prefeitura do Alto Acre, o coronel Gabino Bezouro tomara-se de receios da influência política do coronel José Plácido de Castro, que outra coisa não desejava senão, na companhia de seu irmão Genesco Castro, a tranquila exploração de seu seringal Capatará e dos campos de criação de Esperança, mas que se tornara, naturalmente, por sua bravura e lealdade, o intérprete das queixas do povo acreano contra lesivos abusos praticados pelas autoridades arbitrárias, que iam desfrutar o degradado território.

O novo Prefeito fora, assim, fatalmente induzido a hostilizar o libertador do Acre, envolto em intrigas e prevenções, estabelecendo-se logo as primeiras escaramuças.


Leia aqui a série


* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Série A POESIA ACREANA > MARIA MAIA

                                 Letras Palavras Versos Poemas 
                                 Descem do céu do entendimento
                                 Até minha pena

Poeta, roteirista e diretora de documentários, Maria Maia é uma das melhores expressões poéticas que tenho me deparado na poesia recente de cepa acreana. Voz límpida, concisa e bem elaborada, trabalha, com maestria, a palavra, explorando as suas multifárias faces. Faz um despedarçamento da palavra para daí retirar ou suscitar novos significados. É uma poesia que diz muito com pouco. Mas, como faz lembrar Arnaldo Antunes: “Um objeto concentrado não é um objeto qualquer”, pois “quando olhamos ouvimos pegamos cheiramos provamos é como se nunca houvéssemos olhado ouvido pegado cheirado provado daquela forma e quando olhamos ouvimos pegamos cheiramos provamos de novo é como se nunca houvéssemos olhado ouvido pegado cheirado provado daquela outra vez”. Um jeito de fazer poético que caminha na direção dois grandes vultos da poesia contemporânea brasileira: Mário Chamie, um dos poetas que melhor articulou a palavra dentro do poema, libertando-o de qualquer teoria prévia; e Alice Ruiz, que se utiliza com “maestria do peso e do tom de cada sílaba, da hesitação do som e do sentido, sem pesar a mão no excesso de intenções e nem cair na facilitação dos efeitos”. Porém, Maria Maia tem expressão própria, não é poeta da imitação, mas poeta para ser imitada naquilo que faz eximiamente, o ter(ser poesia.

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HABITAÇÃO: POESIA DO DESPEDAÇAMENTO
Maria Maia

Poesia do despedaçamento, feita sob a herança de dioniso – o deus duplamente nascido – e da dualidade fundamental que tal deus promove: sátiro e bacante, masculino e feminino, beleza e fealdade, crueldade e leveza, regaço e perdição. Esta é uma tragédia dos tempos pré, modernos e pós. 

O ato amoroso é a habitação do humano. É dali que ele parte, sobrevive e se oferece em sacrifício para apaziguar os deuses, numa época em que milhares de humanos matam um deus a cada dia. O corpo despedaçado pelos dentes das bacantes em mãos, dorso, cabelo, peito, pulso e alma procura se restaurar no amor. 

"Sempre o mesmo acerca do mesmo", advertia o grande Eudoro de Sousa, quando se tratava da tragédia. Gestada em tempos imemoriais para purificar o homem da hamartia (pecado original forjado no deicídio original – morte da divindade representada pela subida do homem do estado de natureza para o estado de cultura). E SF canta com sua pena-dentada a tragédia desta busca do desejo que não objeta em nenhum lugar. Que passeia pelos fragmentos do corpo da palavra com horror e amor. Que despreza a distinção masculino x feminino – porque sabe que no ato amoroso esta dualidade se desfaz. 

Os olhos se detêm na complementariedade deste horizonte que encandeia. "Pelo ouvido porém" se apresenta o canto e SF se faz sereia. O homem ainda tem pelo menos a possibilidade de se deixar atravessar pelo canto da sereia. Canto que o desvia da ferocidade do narcisimo e o conduz para o mar do amor. Mar onde o eu, este tirano, "como corpo morto, cai". Mar onde o eu se desfaz no outro, reinaugurando eternamente a vida. Mar que se confunde com o sertão, onde habitam as deusas mães, generosas nutrizes, que, vigilantes, sempre tomam conta da aurora da criação.

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às vezes a chuva cai
outras a terra  seca 
o  homem aquece o mar

a terra, coitada, estremece
risca o raio arisco: chove, por enquanto
arrisco no ar um rabisco

às vezes a poesia vem e nem noto
outras, ao se mostrar, anoto
muitas, simplesmente nem vem!


VERSOS LENTOS
Maria Maia

Versos lentos entram pelos poros
vêm quando querem
Não os imploro


SIMPLESMENTE
Maria Maia

Procura o simples, direto, conciso
Por exemplo: amar é preciso


VERSOS ANTIGOS ME ABRIGAM
Maria Maia

Versos antigos me abrigam
São um mistério:
Vêm quando querem
E quando não vêm
Mandam o fastio
A aridez, o frio...


INTENTO
Maria Maia

Chove, chove, chove
A folha branca me chama
No chão, uma poça de lama
Por dentro algo se move
É tão vivo e me comove
Por fora separo a ganga
Palavras vão outras ficam
Me enchem de vida
Miçangas que são coloridas
Unindo o dito e o não dito
Tudo existe pra ser palavra
Cá dentro suporto um calvário
sem uma lágrima
Se sofro, rio, calo ou canto
Pro poema pouco importa
Só dizem que não estou morta
Realizam meu intento
Palavras descem ao vento por linhas tortas


PURIFICAÇÃO
Maria Maia

Vi a dor seca
sem lágrimas
a pior delas
a vida em brasa
queimava no peito
a chuva lavou
o vento levou
o tempo maduro
purificou


ABSOLUTO
Maria Maia

incriados  Deus e seus atributos

em tudo  está presente
absoluto
chega ao coração do homem
que a chaga aberta consome


PORONGA
Maria Maia

poronga é a cartilha que alumia
em cada colocação da mata escura
a estrada até o centro
de mais saber de mais fartura

chico mendes o mestre guia
criou escolas nos varadouros
pro seringueiro na mata adentro
fez-se fermento da utopia


JARDIM DE DEUS
Maria Maia

deve haver um jardim lá pelo céu
onde nenhuma semente se perde
todas dão árvores todas dão frutos
jardim suspenso do absoluto


PÉS
Maria Maia

pés tão distantes
tocam o chão do novo
caminhar só junto


ESTRELA CADENTE
Maria Maia

des
cerra
o limi
ar
da terra


NADA AOS TANTOS
Maria Maia

ah que sou nada
aos tantos
(despedaços de quebrantos)
fracionada
vitrificanto


UM LANCE DE DADOS DOS DEDOS DE DEUS
Maria Maia

homenagem aos 100 anos da morte de Mallarmé

A
Fundar
Da(na)do
Do Nada, mudo:
Mundo, acaso, fado, fardo
Homem, Mulher, fome e Tudo...


bRASIL
Maria Maia

na margem do país findo que acho
a fome fátua reina


Barro Oco
Maria Maia

carregada de gregório,
góngora, quevedo,
ando de mim
desde cedo


NADA RESTA
Maria Maia

não me resta nem a flor
nem a flor
esta


PEDRAGUA
Maria Maia

Água ardo
Eos lento que me arraste
Ao cume tenso de onde escorro pedra

Fui Fedra
Hoje só Sísifo
Fardo inútil me carrego

Vertedouro
Me despejo
Caio cálida sob o limo

Subo farta
Inconsútil: do abismo
Antevejo o despojo do desejo


ECO
Maria Maia

Meu coração novamente sente
Como quando era chuva
E tudo que é gente
Corria pras biqueiras
E ele desandado e fascinado
Desabava nas ladeiras
Com as batidas respondendo
Ao barulho do ventre
dos trovões...


ESTRANHA SIMETRIA
Maria Maia

insólita solicito gritos
soletro-te em sons de sim maduros
(qual queres)

mais sólida reconheço-me
em pura alegria

grifo em ti
o que num artifício crias:
o ponto em que sorrindo me desatas

submerges em desmedido gozo
- tu deveras não recatas

a letra tamanha
não acata
nossa estranha simetria


EM PLENO VILLA
Maria Maia

Tropeço na Floresta
Mais que menos tua.
Pernoito nu'a música
(morada de sem anos,
passarinhos, sustenidos)
Sorvendo em dose doce o teu Ri
Acho.
Não ouço a noite azul de metileno.
Baixo o açoite do som que me
Encandeia.
Sezão:
Esta maleita aquinda dormita
Um pobre coração
– botijas de pepitas soterradas no
futuro –
Golpeia a terra prenha de frutos
Maduros:
Em pleno Villa, violoncelos,
Contrapontos,
Regurgitam tons encharcados de Veneno.


PÓ DE ESTRELA
Maria Maia

pó de estrela,
restos que somos
brilhamos, no entanto

canto tanto
e recebo em minha trova
asteróides, supernovas

pela dobra da
obra
só espanto

para o olho desarmado
sobra o pó


CÍRCULO VICIOSO
Maria Maia

homenagem a Emily Dickinson e Heráclito

Circunferência: tua Origem sem fim
ousa ser sempre começo
possuída de Sagrado
pussuindo o Profano
(circularidade da qual assomo)


O AMOR FORMA
O ÓDIO DEFORMA
A DOR TRANSFORMA



Mais sobre a poeta Maria Maia em:

domingo, 25 de novembro de 2012

NOTRE ÉCOLE

Leila Jalul


Notre école [Colégio Acreano] est située a la rue Benjamin Constant... Nous alons a table... Tinha que estar tudo très jolie, na ponta de nossas línguas. E a gente carregava aquela porrada de livros-textos de francês, latim, português e, de lambuja, ainda tinha um tal de Ary Quintela, pequeno e pesado. Era o de matemática. Um terror! Nossos professores, todos gente fina. Dona Luluz, a tradução literal da palavra simpatia. Era meio doidinha, a bem da verdade. Talvez a razão de tanta simpatia. Ela ainda é viva. Caçamba! Tá virando cobra-grande. Ainda toca piano e, para indignação, ainda viaja para a Europa sozinha. Não é doida mesmo?
Colégio Acreano
O professor Rufino, a cara do Aluízio de Azevedo, de "O Cortiço". Um dos negros mais bonitos que os raios do sol já cobriram. Figura bonita e esquisita. Garboso, elegante e, para que se lhe acrescente maior aura, extremamente reservado. Solteiro? Descasado? Assexuado? Come-quieto? Homossexual? Ninguém tinha nada a ver com isso. Ele passava por cima dos mortais com galhardia, como se caminhasse sobre nuvens. Não perdoava erros, não acrescentava décimos nem quartos de décimos, nem de milésimos para que quaisquer de seus discípulos passassem de um ano para o outro sem fazer força.

Sobrava para a gente, que tinha que ficar calada e sem resmungos, acordar às quatro da madrugada e estudar. Pior ainda, tinha que fazer o trajeto declinando: a - æ - æ - am - a - a - æ - arum - is - as - æ - is. Regina, Regina, você me alucina. Regina, Reginae, Reginae, prima da Rosa, Rosae, Rosae, vocês são todas cretinas! Tinha que ler as catilinárias. Doideira. Pra quê tudo isso?

Saía o de latim, o meu Rufino, não sem antes deixar o eco do "personam tragicam forte vulpes viderat", entrava a de francês, minha mimosa Luluz. "J'ai cassé le dó da ma clarinete, j'ai cassé le dó de ma clarinete. Ah! se papa il savait, trá, lá, lá! Il dirait, il chantrait. Opá camarade, opá, opá, opá".

Mas o que me calava fundo, muito fundo, fundo mesmo, e me embargava, dava nó nas tripas e engasgo, era quando a gente se arrumava feito garrafa de coca-cola em prateleiras de supermercado para cantar La Marseillaise: "Aux armes, citoyens/ Formez vos bataillons/ Marchons, marchons/ Qu'um sang impur/ Abreuve nos sillons". Coisa bonita se faz devagar, sem pressa, diz Keilah Diniz.

E a do canto orfeônico? Seria a Dona Selva, por acaso? Não consigo lembrar. 

          "Meus sinos, queridos sinos,
          Ó, sinos de minha aldeia,
          que doces são vossos hinos…"
 

Aquilo parecia harmonia brotando do chão. Juro. Tudo com regência. Compasso binário, compasso quartenário e terciário, se coubesse. Um, dois, três. "Meus sinos, queridos sinos...". E as duas mãos alvas, com os indicadores ligados aos polegares, mais pareciam o bailar de dois pequenos barcos. Os textos de português eram coisa pra maluco nenhum botar defeito. A mulher do sino de ouro... Doem minhas costas só de lembrar o tanto de moedas que a velha doidona escondeu debaixo do colchão para construir seu sonho de consumo.

Os desenhos geométricos, Santo Deus! Aquele montão de gregas pintadas em dégradé, com lápis de cor da Johann Faber, comprados na papelaria do seu Anastácio. A gente sabia ler, escrever e falar. Sabia, através da professora de trabalhos manuais, fazer rendas de Tenerife. A ninguém, a ninguém mesmo, era negado o sagrado e inútil direito de saber que a tangente de um ângulo de quarenta e cinco graus é igual a um.

Valem agora, só de pirraça, alguns parágrafos sobre duas inspetoras da notre école. Elevadas ao cubo, vistas em 3D, nunca vi gentinha mais amarga do que aquelas criaturas. Dona Nair e Dona Vanda. E, de troco, ainda tinha uma filha e neta – a Teresa.

Puta que pariu! Que destino infame. Elas me marcavam de perto. Estava no banheiro, lá vinha uma; estava no corredor, lá vinha a outra. Não tinha um só minuto de trégua. Para minha infelicidade, o caminho das duas (das três, para ser mais exata), necessariamente, tinha que ser pela frente da loja do meu avô. Bastava eu chegar e minha mãe, mais histérica e paranóica do que a Neuzinha Brizola, descia o malho. Eu apanhava, apanhava tanto, tanto, bem mais do que um manequim de sapateiro. Isso tudo acontecia baseado no princípio de que uma laranja podre arrebenta com o pomar. A boa educação das minhas irmãs mais velhas, duas moscas mortas e obedientes, não podia ser contaminada por causa das ações de uma delinquente juvenil.

Ah! tinha volta. Tinha. E como tinha! Todas, todas, sem exceção de nenhuma das pornografias escritas na parte interna das portas dos banheiros da notre école foram de minha própria autoria e lavra. E não me arrependo. Desenhos de piriquitas em forma triangular e frases indecorosas, tudo eu. Tudo eu. Tudo eu. "A Dona Nair é puta". "Dona Vanda é puta". "E a Tereza, se ainda não é, vai ser". E tenho dito. A gente tinha que aprender de tudo, principalmente a se defender. Do que valeria saber que a tangente de um ângulo de 45 graus é igual a um e continuar apanhando? Valeria a pena?


P.S.: Os erros de grafia de quaisquer palavras das línguas estrangeiras aqui expostas são de minha inteira responsabilidade. Não tenho nem mordomo, nem datilógrafo, nem tradutor. Tudo eu, tudo eu, tudo eu. Optei ficar na esfera do coloquial. E tenho dito. 

JALUL, Leila. Suindara. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. p. 62-65

sábado, 24 de novembro de 2012

"DANÇA DO SABRE" – ARAM KHACHATURIAN

"Dança do Sabre", último ato do ballet Gayane do compositor armênio Aram Khachaturian (1903-1978). A interpretação abaixo é de estudantes colegiais japoneses.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

ATÉ QUANDO?

José de Anchieta Batista


Por quanto tempo estes sóis
Estas nuvens, estes mares,
Estes rios, estes ares,
Hão de existir para nós?

Que tempo nos vai restar
Para que o último vivente
Respire avidamente
A última porção de ar?

Quanto tempo ainda resta
Para que esteja caída
A última folha sem vida
Da derradeira floresta?

Que tempo nos sobrará,
Para nos nossos anseios
Ainda ouvir os gorjeios
De um último sabiá?





Aproveito o ensejo para externar meus sentimentos de solidariedade, embora atrasado, ao poeta José de Anchieta Batista, por ocasião da morte do pai, ocorrido em Campina Grande - PB, no último 19/11. Anchieta Batista, atual diretor-presidente do Acreprevidência, é autor de MENINO DA RUA DO BAGAÇO (Rio de Janeiro: Publit, 2009). Sentimos saudades suas por aqui, meu caro amigo, para dar-nos a sua bênção de poeta.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

PARECE NÃO SER

Jairo Nolasco


Enquanto eu deliciava um sorvete, hoje à tarde, uma moça se aproximou e quis saber se eu era o "Jairo Nolasco, que escrevia o blog Jurubeba". Sim, foi o que, ainda surpreso, respondi.

Surpreso, porque jamais poderia imaginar que alguém pudesse me reconhecer pelo o que escrevo no blog, ainda mais alguém de sua faixa etária, hoje fadada a se apaixonar pelas frases feitas do facebook, este fenômeno da comunicação moderna. Escrever em blog já é 'demodê'.

"Foi você quem realmente escreveu aquele soneto sobre a hipocrisia?" (vide a última postagem). Sem graça, balancei positivamente a cabeça. "Não parece", completou depois.

Em frações de segundos minha mente viajou há décadas, ao tempo de estudante secundário no Colégio Estadual Rio Branco em uma aula de literatura. Um professor, que a época para mim, era um esquisitão magrela movido a cafeína, tinha solicitado à classe, na aula anterior, uma redação narrativa/descritiva. A melhor seria premiada.

Passei o dia a imaginar a cena para descrever. Depois de achar a melhor, passei a descrever ao estilo de Aluísio de Azevedo, já que eu acabara de ler o livro "O Cortiço".

Até hoje acho o escritor um injustiçado, deveria ser sempre citado entre os maiores. Para mim, o cara é um monstro de nossa literatura. Aquele livro, li de um só fôlego e me apaixonei pelo estilo. Incrivelmente até hoje sinto o gosto da "fumegante palangana de café com parati", que a Rita serviu ao Jerônimo, não obstante eu nem saber o que é mesmo 'parati'. Povoa minha mente como algo de sabor super tropical.

Inspirado no melhor, fiz correr a pena pelas linhas pré-desenhadas em azul pálido da folha de papel branca. Fiz as personagens ser parte integrante do meio em que estavam. Descrevi tudo nos pormenores, como se um filme fosse, cena a cena.

A redação foi considerada pelo professor como a vencedora. Foi lida em voz alta em sala. Uns colegas me ofereceram os parabéns, outros fizeram som de muxoxo, ignoraram, e teve quem achasse que aquilo de escrever daquele jeito era coisa de boiola, a despeito de eu não ser um baitola.

Entretanto, o que marcou mesmo foi no fim da aula, quando o professor me encontrou no corredor e falou-me à boca curta: "Ficou muito boa, mas foi você mesmo quem escreveu aquilo? Se foi, continue que você tem um certo talento, se não, pare agora mesmo, o futuro dos falsários é a cadeia..."

Por motivos vários, mandei meu suposto promissor talento de escritor, enxergado pelo preconceituoso professor, às calendas gregas. Persistiu, entretanto, um certo orgulho de ter causado estranheza em quem jamais acreditaria em minha figura:  quem diria este paspalho que senta no fundão não é o marginal que eu pensava...

Agora, aquela mesma sensação novamente. Minha figura não inspira mesmo confiança: Foi você quem escreveu aquilo? Não parece....

Realmente não pareço. Em verdade, eu sequer consigo ser em emblema o que sou em letras. Sou pólos opostos a causar estranheza. Às vezes sinto vergonha do que escrevo. Já quis até parar, me afastar, não me expor ao ridículo. Mas não me mando. Virou vício.

O que consigo ainda fazer é não publicar tudo que escrevo, tenho mais de 200 rascunhos a espera de coragem para liberar... escrevo todo dia a qualquer folga no tempo.

O melhor mesmo foi o que ela disse ter entendido do soneto. E querem saber, bem melhor do que realmente eu quis dizer. A interpretação dela foi sensacional, eu só pude concordar. Talvez se eu tivesse visto por aquele ângulo teria escrito algo mais decente.

Espero ter feito mais uma amizade para meu parco circulo, não necessariamente um leitora fiel. Torço, que ela, ainda muito jovem, mas com gosto pela leitura, também escreva e seja infinitamente melhor do que eu.

Como é bonita e muito espontânea não correrá o risco de alguém perguntar : Mas foi você mesma quem escreveu? não parece...

Post Scriptum: A não ser que ela escreva sobre Economia, aí ninguém vai acreditar...

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SONETO DA FRIA HIPOCRISIA
Jairo Nolasco


E a vela, trêmula, a mão meio segura
que já te lançou pétreos impropérios
à boca que não mais roga deletérios
ao corpo livre da material amargura.

Crispadas, as mãos frias postadas
a separar por outrora vital unida
ao cessado pulsar sem mais guarida
das quentes (ex-recentes) forças separadas

Cara, vai, leva contigo a verdade cruel e fria
que a vistosa de bronze encerrada
não ver a torpeza mordaz incontida

Agora, com nada, és neo camarada
quem, sem tudo, inflamava a ferida
a dias viver - barato é - a bondosa hipocrisia

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A POLÊMICA SOBRE A FRASE "DEUS SEJA LOUVADO" NAS CÉDULAS DO REAL

Profª. Inês Lacerda Araújo


Ninguém mais reparava na frase "Deus seja louvado" nas cédulas de nosso dinheiro, até que um procurador resolve criar polêmica (sim, pois não passa disso!) e manda retirar dita frase das notas. Argumento: há outros deuses de outras religiões que devem ser respeitados e que não são mencionados.

Evidentemente que o argumento não procede. Não se trata de Deus específico, e sim do Criador na fé do cristianismo. Além disso, a própria concepção de um Ser Superior está presente em todas as religiões. Não faz sentido algum haver ritos e doutrinas, crenças e deveres religiosos sem Deus, isto é, sem um ser transcendente, pelo qual se tem respeito, fé, obrigações morais, e, especialmente, devoção.

Outros condenam o uso da louvação a Deus com o argumento da ingerência do poder público na fé privada, pois na constituição nosso Estado é laico e as crenças são de foro íntimo. Nisso o procurador de certa forma segue uma tendência. Começou com a proibição do véu para a muçulmanas na França, e vem até a retirada de crucifixos de gabinetes de juízes no Brasil.

A questão de fundo, nesses casos é uma questão cultural. Há símbolos valorizados, cujo significado está presente não só nos espaços públicos, mas também nas manifestações pessoais. Uma procissão é manifestação de fé pública ou de foro íntimo e privado? Adesivos nos carros (terços, mensagens, figuras), cartazes com frases da Bíblia, significam que a pessoa declara aos outros sua fé? Ou quer com isso adesão à sua fé? Como se vê, a pretensa separação entre público e laico de um lado, e privado de outro, em matéria de crença religiosa é relativa. A quê? À cultura, aos costumes, à aceitação social ou à rejeição social; outras vezes se deve à moral dos grupos sociais. A própria moeda já foi chamada de "cruzeiro", as pessoas esquecem que é um termo derivado de cruz, símbolo máximo da cristandade.

Há um outro fator, esse sim, importante: a liberdade de crença, de opinião, de manifestação em democracias ocidentais é imprescindível. A convivência com o outro, com o diverso, com adversários políticos e mesmo de times esportivos antagônicos, é própria de sociedades modernas. Por tudo isso não se deve impor o uso de símbolos que constrangem a liberdade de expressão, que menosprezem ou ridicularizem outras religiões, crenças ou modos de ver e de viver.

Há quem argumente contra a proposta do procurador por razões filosóficas e teológicas. A necessidade da crença em Deus é incontestável e necessária, sem Deus nada somos, não pode nem passar pela cabeça de ninguém negar Deus. Rejeição do ateísmo como sendo absurdo, perigoso.

E o oposto, não há tal ser superior, o ateísmo deve ser cultuado, Deus não passa de uma invenção.

Ambos radicalizam, o primeiro pelo dogmatismo, o segundo além de radicalizar, acaba em uma redução ao absurdo: o ateísmo passa a ser um tipo de crença, o que é contraditório.

A vida em sociedade institui normas, significados, símbolos. Se eles forem vazios acabam esquecidos ou perdem sentido. Se forem impostos, como foi o caso da frase na moeda do real (por Sarney, em uma atitude hipócrita e nada original), causam desconforto em um primeiro momento, depois são também ignorados.

De qualquer forma, algo não soa bem, pois a crença em Deus pressupõe coração aberto, desprendimento, confiança. O dinheiro simboliza o oposto: luxúria, ganância, e falta. Falta no sentido financeiro para a grande maioria e falta no sentido psicanalítico. Talvez para todos...



* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.