domingo, 13 de janeiro de 2013

ACABOU?

LEILA JALUL

 
Foi uma espera de três anos. Dia após dia, além do sofrimento, Fiona tecia o enxoval imaginado desde mocinha e pintava os belos quadros que comercializava em Santa Tereza. Contentava-se, nas horas vagas, em reler as cartas trocadas que bem cabiam em uma caixa de chocolate. Reli-as e, a depender do tamanho da saudade, chorava.

Ao chegar de Portugal, lembrava-se bem, Tácito foi a primeira pessoa em que deitou o olhar, ainda no saguão do aeroporto do Galeão. Era bonito o gajo!

As primeiras palavras que trocaram foram para um pedido de informação. Onde ficava o Largo do Machado, queria e precisava ela saber. Era ali que morava a prima Stela Maris, a quem não via desde os treze anos, ainda em Guimarães, onde moravam as famílias. Já não era possível reconhecê-la, assim pensou. Sentia-se insegura na cidade grande. E, por assim ser, aceitou a proposta de Tácito em levá-la até o endereço da prima Stela.

No trajeto, impossível negar, já percebeu os olhares melosos do seu educado guia. Não correspondeu de imediato, mas, em determinado momento, sentiu-se atraída e disposta a aceitar o convite para que jantassem juntos no Restaurante Lamas, ali bem perto, no bairro do Flamengo.

E foi então que começou o namoro. Começou com desejos claros de continuidade. Eram maduros e sabiam estar na hora de avançar na vida a dois. Assim parecia. Para ela, parecia...

Pensaram e planejaram casar no Outeiro da Glória, com honras, pompas e na presença das duas famílias. Antes que isso acontecesse, como bons moços, apenas namoraram.

Até que, em dezembro de 2000, surge uma grande oportunidade de trabalho para Tácito. Dizia ele tratar-se de uma multinacional que há muito o convidava e onde teria chances de grandes investimentos. O casamento foi, então, deixado para depois. O emprego na Europa, mais precisamente em Madri, tinha urgência e importância. E lá se foi o amado, deixando Fiona em lento e demorado compasso de espera. A promessa firmada era a de que logo se reencontrariam em Portugal, ou na Espanha, conforme decidissem e fosse melhor. E só então, na volta ao Brasil, realizariam o casamento, como planejado.

Ao fim do primeiro ano as cartas rarearam drasticamente. No segundo, então, desapareceram de vez, para o desespero de Fiona. Nada a fazer senão buscar o consulado, pedir ajuda ao rei e ao papa. Da família dele, embora tivesse insistido conhecer, nada sabia. As tentativas de ter notícias foram vãs. Tácito foi como que engolido por um buraco ou abduzido por um ser estranho. Diante disso, com certeza, Fiona viveu o pior momento de sua vida. Abatida, continuou seu trabalho de artista plástica e morando com a prima Stela, de quem nunca se separou.

No carnaval de 2003, andando no comércio popular, Fiona e Stela Maris tiveram a nítida impressão de que avistaram Tácito. Correram no meio da multidão em direção a ele, chamaram-no pelo nome, mas, como um raio, o rapaz entrou num carro e acelerou. Meio que em choque, ficaram as duas a duvidar se seria ele mesmo, ou se alguém muito parecido. A dúvida permaneceu por todo o ano, mais precisamente até novembro. Fiona, no fundo, no fundo, não tinha tantas dúvidas assim.

No feriado da Proclamação da República, caída a noite, chega a surpresa no Largo do Machado. Ao abrir a porta, por pouco, Stela Maris não desmaiou. Tácito estava diferente. Bronzeado, vestia uma regata branca e uma calça jeans. No pescoço, com ares de bicheiro rico, ostentava uma grossa corrente de ouro e, no pulso esquerdo, uma ostensiva pulseira do mesmo trançado. Parecia mais moço, embora um tanto grisalho.

Para Fiona, a surpresa não foi tão grande. A formiga sempre sabe a folha que corta. Ainda que seja por intuição. O homem que havia visto no comércio do Saara, não tão acidentalmente, usava as mesmas joias. Entretanto, controlada, fingiu estar feliz. Queria ver até quando a farsa seria mantida. Deixou que pegasse em suas mãos e a beijasse no rosto. Sentia asco, mas...

As desculpas contadas por ele foram, uma a uma, se dissolvendo. Contradições de datas, em relação ao tal trabalho da multinacional na Espanha e outras mais, não sustentavam a conversa. Ainda assim, com cara de estar dando crédito, Fiona não se deixou alterar. Em determinado momento, após Stela Maris ter ido dormir, veio a tacada final.

O malandro chamou-a para o quarto, como se a última vez em que se tivessem visto teria sido na noite anterior. Fiona fez que nada ouviu. Uma, duas, três vezes, o insistente pedido, até que, em determinado momento, disse ele:

- Vamos, cachorra, vamos? Vem pro teu homem, vem?

- Tácito, se é esse mesmo o seu nome, retire-se de minha casa. Esse vocabulário não cabe para minha pessoa. Retire-se, por favor! Agora!

E lá se foi o Tácito. Com cara de assustado e parecendo temer algo que não revelou na conversa com Fiona. Enquanto ali esteve, a cada meia hora atendia o celular e apenas dizia ao interlocutor: - “Ok, ok, positivo!” Antes de sair, na maior da cara de pau, ainda perguntou:

- E então, Fiona, acabou?

- Não, Tácito! Nem começou!!!

Fiona, demonstrando calma e sentindo-se plenamente aliviada, fechou a porta, rumou para o quarto e dormiu como não havia dormido nos últimos três anos.

Não foi surpresa nenhuma quando, dias depois,leu no Jornal A Tarde a notícia de sua prisão. Tácito, que jamais foi Tácito, era o nome de guerra de Elpídio Moreira da Rocha, traficante de fama internacional e assassino de repugnante maldade. O ano em que esteve fora do Brasil, entocado na Espanha, não passou de um projeto de “esfriamento” na perseguição policial que era ferrenha e, também, servindo como braço do tráfico de drogas no exterior.


Nota da autora: este conto foi baseado num fato real.

Um comentário:

"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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