Altino Machado
Blog do Altino
A tese de doutorado "Os "Kaxinawá de Felizardo": "correrias", trabalho e "civilização" no Alto Juruá", do antropólogo Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias, é o documento mais instigante que li nos últimos anos sobre o Acre. Foi apresentada em fevereiro ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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A tese de doutorado "Os "Kaxinawá de Felizardo": "correrias", trabalho e "civilização" no Alto Juruá", do antropólogo Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias, é o documento mais instigante que li nos últimos anos sobre o Acre. Foi apresentada em fevereiro ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Destacado colaborador deste blog, Marcelo Piedrafita teve seu trabalho
aprovado com louvor ao obter o título de doutor em antropologia social.
Trata-se de uma alentada pesquisa, que se torna imprescindível para
quem queira conhecer a verdadeira história do Acre. O texto da tese,
com 481 páginas, é ilustrado por mapas e fotos inéditas.
A foto acima, por exemplo, é de
Felizardo Avelino de Cerqueira, aos 40 anos de idade. Foi obtida pelo
antropólogo do álbum da familia Cerqueira. No verso da foto, lê-se:
"Offereço à Irmã e Amiga Gersina. Cruzeiro do Sul, 30-10-1926.
Felizardo Cerqueira".
Ele nasceu em Vila Pedra Branca,
no Ceará, a 29 de outubro de 1886. Com pouco mais de 17 anos, em março
de 1904, acompanhado de uma turma de conterrâneos, deixou a cidade
natal com destino ao Amazonas, passou por Belém e Manaus e desembarcou
na confluência dos rios Envira e Juruá.
Naquele ano, trabalhou como
seringueiro no rio Acuraua e na safra seguinte, de 1905, já como freguês
de Ângelo Ferreira da Silva, começou a cortar seringa numa colocação
de margem próximo ao sítio Lupuna, dividindo sua barraca com o
seringueiro Francisco Gomes.
Em agosto de 1905, o ataque de
cinco índios à sua colocação - seu companheiro em fuga foi alvejado por
uma flecha, seus pertences foram roubados e sua casa incendiada -
desencadearia uma seqüência de eventos que daria início, segundo
Felizardo, à sua carreira como "catequista de índios".
No barracão, para onde Francisco
foi trazido e salvo pelo tratamento prestado por Ângelo Ferreira, a
imediata reação dos demais fregueses foi planejar uma "correria" -
matança organizada de índios. Após refletir, dado o "risco de ser
responsabilizado pela defesa que constitui dos índios", Felizardo
proporia experimentar se era capaz de "entrar em contato" com os
"selvagens". Sua reação, culminando com a ousada proposta, é assim
justificada num relatório inédito que deixou sobre os anos vividos no
Acre.
- Eu, que por diversas vezes,
vi chegarem grupos de peruanos e brasileiros, trazendo consigo índias e
meninos e contarem que lá ficaram inúmeros índios mortos, não me
sentia bem com tremenda cena desumana. Sentia dentro de mim, não sei o
que, uma compaixão pelos pobres dos prisioneiros das selvas que foram
criados com tanta liberdade e em dado momento fugir de súbito da sua
felicidade que outrora gozavam, para se ver prisioneiros e cativos de
seus algozes, que sem compaixão jogavam-lhes nos mais brutais
trabalhos.
Felizardo tinha por hábito
marcar suas iniciais (FC) no braço de homens, mulheres e crianças por
ele "amansados". Assim aconteceu com parte dos Kaxinawá e com outros
índios que, enquanto Felizardo esteve em Revisão, ali chegaram, "pegos"
em rondas da "polícia de fronteira" ou por circunstâncias de suas
trajetórias pessoais.
Nesta foto, captada pelo
antropólogo Terri Vale de Aquino na Terra Indígena Kaxinawá, aparece o
braço do velho Regino Pereira, com a marca FC, de Felizardo Cerqueira.
Uma única menção a essa prática é feita por Felizardo em seu relatório:
- Eu tinha o hábito de marcar todos os índios com as letras FC e o número de ordem que fosse amansando.
Marcelo Piedrafita revela que
Felizardo dá indicações em seu relatório de que os Kaxinawá foram o
grupo junto ao qual suas ações de "catequese" obtiveram resultados mais
consolidados - apesar de reconhecer que "em caso algum me foi tão
difícil a catequese quanto esta tribu". Ao contabilizar os resultados de
seu trabalho como "catequista de índios", Felizardo diria:
- Todos os índios que foram
mansos por mim, que são superior a três mil, deixei-os na mais perfeita
"Liberdade". Não há prova concludente que desminta esta verdade".
Mas o antropólogo Marcelo Piedrafita observa:
- Na carta enviada ao deputado federal José Guiomard Santos em 1955, em
que solicitava seu apoio junto ao governo federal para a obtenção de
uma pensão, Felizardo, diferentemente, especifica ter "catequizado"
"para mais de trezentos índios". Este número, cabe ressaltar, coincide
com o total aproximado dos Kaxinawá que com ele permanecera após a
diáspora no rio Envira, o acompanhara na mudança ao alto rio Tarauacá e
com ele se estabeleceu e trabalhou no seringal Revisão.
Leia um trecho da tese de Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá acreditavam
que Felizardo era possuidor de "poderes mágicos", que permitiam-lhe
esconder-se sem deixar rastro, passar sem ser notado e não ser alvejado
por armas de fogo, atributos que davam confiança aos Kaxinawá ao se
engajarem com ele nas atividades da "polícia de fronteira". Clique em Um homem de "oração forte".
CLIQUE NAS FOTOS ABAIXO
Alto Rio Juruá - índios da tribo Poyanáwas, localizados na Vila Rondon, no rio Môa, em 1913. |
Alto Rio Juruá - índios da tribo Poyanáwa, localizados na Vila Rondon, no rio Môa, depois receber roupas, chapéus e brindes - 1913. |
Alto Rio Juruá - índios da tribo arara reunidos em Cruzeiro do Sul - 1913. |
Alto Rio Juruá - índios das tribos jamináwa e amuáca, no rio Amoáca - 1913. |
Felizardo vivia com os índios kaxinawá em Revisão, no alto rio Jordão. |
O capitão-tenente Sadock e índios kaxinawá. |
Índios kaxinawá em Transwaal, no rio Jordão, afluente do rio Tarauacá, 1924. |
Índias no seringal Revisão. |
P.S. agradecemos gentilmente o ilustre autor Marcelo Piedrafita Iglesias pela retificação do sítio original da publicação do presente texto, no blog de nosso competentíssimo Altino Machado (25 abril 2008). No mais, só temos a agradecer um dos trabalhos mais sólidos que já se escreveu sobre os indígenas dessa nossa região.
Prezado Isaac,
ResponderExcluirParabéns pelo seu blog.
Quem escreve aqui é Marcelo Piedrafita, autor da tese citada acima, publicada em livro em 2011 pela Paralelo 15.
O post acima foi originalmente publicado no site de Altino Machado em 25 de abril de 2008, pouco após a defesa.
Ver http://altino.blogspot.com.br/search?q=kaxinaw%C3%A1+de+felizardo.
Picaretagem total desse Netuno Borun Guarani, do Blog do Netuno, que reproduziu o post em 14 de março de 2010, sem fazer qualquer alusão ao post original.
Agradeço pela divulgação da tese. Solicito, por favor, que dê o crédito ao post original e ao seu verdadeiro autor.
Agradecido desde já. Parabéns novamente pelo seu valiosíssimo blog.
Atenciosamente,
Marcelo Piedrafita Iglesias