A aeronave já iniciava o taxiamento em preparação para proceder a
decolagem quando sentou-se ao lado do velho Alberto um homem de meia idade e, depois de
cumprimentá-lo vaticinou, com certa naturalidade que “Deus é a força do mundo,
que dá luz e brilho às estrelas e tem o poder mais profundo de dar forma às
coisas mais belas”. E prosseguiu falando que há também, no mundo, quem tenha
bastante força e grande poder, porém, de dar forma às coisas mais assustadoras,
mais dolorosas, mais absurdas, mais horripilantes.
Quem? Provavelmente aquele
da Força Negativa!
Enquanto o homem falava, velho Alberto
imaginava o fato de encontrar-se dentro de um avião, em voo diurno ou noturno,
cercado de CBs, em terrível e tenebrosa tempestade, experimentando o tresloucado
efeito de descontroladas e alucinadas turbulências indomáveis, constituir-se
numa situação que, indubitavelmente, leva qualquer ser animado às mais
desesperadas atitudes, próprias de sua insignificante pequenez, em busca
encolerizada de livrar-se do que, em verdade, não é bom. Em tal circunstância,
o apelo por socorro é desesperadamente gritante. Muitos vão ao nível do
falecimento, passando antes pela sudoração.
A humanidade tem assistido muitas situações
desesperadoras, por completo. Para muitos protagonistas dessas situações não
foi concedido condição para contar a história sofrida. Suas almas não
resistiram e retiraram-se.
Já estando a aeronave posicionada em situação
de voo cruzeiro, aquele companheiro de viagem passa a transmitir ao velho
Alberto curiosa apologia cristã, com referência à natureza humana, tomando por
base a numerologia, esclarecendo-lhe o profundo simbolismo que o número três
exerce na história da humanidade.
É interessante saber-se que o ser humano,
diferentemente dos demais animais, é composto de três substâncias, a saber:
corpo, alma e espírito. Quem dá vida ao corpo é a alma, sendo esta a promotora
dos nossos estímulos, dos nossos anseios, dos nossos ânimos e desânimos e até
dos nossos sentidos.
Ao retirar-se, o corpo morre.
A natureza espiritual do ser humano é formada
pela alma e pelo espírito, os quais, enquanto estiverem no corpo humano são
entrosados e inseparáveis, proporcionando-lhe a vida. Portanto, o ser humano é corpo,
é alma e é espírito. Neste aspecto, o diferencial do ser humano é o espírito, o
qual não é encontrado nos irracionais.
Velho Alberto sentia-se como que se
abastecendo com o que absorvia daquele companheiro de viagem, o qual lhe dizia
que, sendo o ser humano “espírito”, tem capacidade de conhecer Deus e ter
comunhão com Ele, enquanto sendo “alma” tem conhecimento de si próprio e sendo
“corpo”, é capaz de conhecer o mundo, através dos sentidos.
Dizia-lhe o desconhecido que o espírito pode
conhecer o que a alma não conhece. Entretanto esta, através da razão, pode
conhecer coisas, ao passo que o espírito pode discerni-las por intermédio da
intuição.
Dando prosseguimento ao argumento da
tripartição, dizia aquele passageiro que cada parte do ser humano ainda divide-se
em outras três, a saber:
1º- Ao
espírito pertencem: a consciência, a comunhão e a intuição.
2º- A
alma é constituída de: mente emoção e vontade.
3º- O corpo é formado pelo que vemos: cabeça,
tronco e membros.
Simplesmente “todo ouvidos”, velho Alberto,
quase em modorra, porém entregue às surpreendentes sugestões, nem se dava conta
de questionar qualquer ponto do colóquio, muito menos conhecer informações
daquele palestrante.
Apesar do envolvimento, percebe que a viagem
está chegando ao seu destino, dado o início dos procedimentos característicos
de diminuição de altitude que a aeronave passa a apresentar.
Velho Alberto ainda capta os últimos
esclarecimentos acerca da influência do número três na natureza humana e seus
respectivos significados.
Quando reconhecidas paisagens começam a ser
visualizadas, velho Alberto, instintivamente, é levado a identificar possíveis
pontos de seu torrão, mesmo diante do visível desmatamento. Observa um vasto
campo aqui, uma pequena porção de floresta ali, raras lagoas tipo açudes
adiante, até distinguir, quase no horizonte, a sinuosidade do estreito rio de
água barrenta.
Quando
vê surgir a silhueta da cidade, velho Alberto volta-se para comentar com seu
companheiro de viagem, o qual estava a erguer-se, juntando ao peito um espesso
volume de um livro. Pode ainda perceber a boa aparência física do desconhecido,
num traje de simples “blazer” em tom azul, esboçando um modesto e singelo
sorriso, para em seguida, sumir por completo, apesar de incessantes buscas
empreendidas dali por diante.
Voltou a vista para a paisagem que se
descortinava através da janelinha da aeronave e não reconheceu praticamente
nada. Apenas identificava-se com as recordações vindas da infância, ao
banhar-se nas águas barrentas daquele rio, frequentadas desde a praia da Base
até ao Igarapé da Judia, pontos visitados no bojo de uma catraia alugada ao seu
Eládio, ou ao Hugo, ou Caboré.
Ao preparar-se para o pouso, velho Alberto prende-se,
subitamente, ao teor das palavras ouvidas por quase três horas de voo.
Lembrou-se, então, da natureza tripartite do
ser humano e supôs que em alguma das três partes poderia encontrar-se a fé e
definiu-a como sendo o fundamento das coisas que se espera e a prova das coisas
que não se vê.
E questionou, consigo: por que só os seres e
as coisas têm o privilégio de existir, e logo a Deus isto é negado?!
* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Reside em Brasília, e escreve o Blog FELICIDACRE.
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