segunda-feira, 6 de maio de 2013

LA VORÁGINE / A VORAGEM

Isaac Melo 

“porque a alma é como o tronco da árvore que não guarda a lembrança das florações passadas senão que das feridas que lhe abriram no córtex.”  (fala de Arturo Cova) 


Mavignier de Castro, um cearense, com formação na Europa e depois radicado na Amazônia, como promotor de Justiça, em sua obra Amazônia Panteísta, de 1958, faz a seguinte afirmação: “A selva despojada pela exploração do homem, o homem explorado por despojar a selva!”. Tomo tal assertiva para demonstrar o quão paradoxal sempre fora a relação do homem para com a selva na Amazônia. Adversamente ao que comumente se pensa, selva e homem sempre foram marcados por uma relação de tensão. Se por um lado a selva exercia um fascínio, beirando ao mágico e o maravilhoso; por outro, era “impiedosa” com o elemento estrangeiro, com aqueles que constituíam uma “aberração” ao conjunto de seu corpo perfeito. Equilibrar esses dois pólos tem sido um desafio até hoje. 

A história do homem na Amazônia tem sido a luta por amansar o deserto empantanado. Empresto o termo “amansar” de Euclides da Cunha. Esse “amansar” foi a fresta pela qual a consciência (exploradora/colonizadora) de submeter a selva aos caprichos humanos se instalou. Inicialmente a selva era indômita sobre a pequenez do homem, o absorvia, e mesmo o anulava se este não se ajustasse a ela. O predomínio era da selva, e o homem quase nada podia contra ela. E assim fora por algum tempo. Mas o homem, como o seu mais destacado parasita, foi resistindo e conhecendo as nuances do corpo hospedeiro. Com advento da técnica, e o desenvolvimento de novas tecnologias, o homem ganhou poderes antes inimagináveis. O ronco de máquinas a sobrepujar ao palrear das aves, e o crepitar das chamas sobre o tronco das samaumeiras, marcou uma virada na relação selva e homem. O dominado passou a dominar. Agora a selva conhece a ferocidade humana. 
Uma edição em espanhol

Por falar em ferocidade humana chego à La Vorágine, talvez as mais pujantes páginas que já se escreveu sobre a saga dos exploradores e explorados seringueiros amazônicos, filhos do infortúnio e da cobiça, homens malditos que sequer mereceram o olhar de piedade da Pátria, da Religião e da Política. A Voragem é o grito dos seringueiros para toda a América, para todos os recônditos da terra, onde a dor, causada pelo próprio homem, irmanam esses mesmos homens. 

O colombiano José Eustasio Rivera (1888-1928) começou a escrever La Vorágine em 1922, ano em que fora nomeado secretário advogado da Comissão Limítrofe Colombiano-Venezuelana, e passa a percorrer a selva fronteiriça desses países. Aí entra em contato com a situação de exploração e escravidão a qual vivem seus patrícios sob o regime dos coronéis da borracha. Impactado pelas injustiças e crimes cometidos contra os colombianos, escreve cartas denunciando essa situação ao Ministério de Relações Exteriores de seu país. Mas a sua denúncia só surtirá efeito de fato em 1924, quando irrompe La Vorágine. A partir desse livro o mundo passa a conhecer a terrível realidade que envolve os homens em plena selva amazônica, sob os auspícios da “civilização da borracha”. 
Edição em português, pela Francisco Alves (1982)

A mesma realidade que Rivera se deparou na região fronteiriça de seu país com a Venezuela, pode se aplicar ao Brasil, como demonstrará o português Ferreira de Castro em A Selva, em 1930, depois de sua vivência no seringal Paraíso, no rio Madeira. A tragédia humana não conhece fronteiras, bem como a sede de cobiça. Em qualquer parte a que chegou o regime da borracha, o fastígio econômico peremptório conviveu contiguamente com as mais diversas formas de degradação das relações sociais humanas. Homens rudes, ricos e sanguinários, e que, às vezes, não se tem clareza de quem fora vítima e quem fora algoz, se ambos tantas vezes foram a mesma coisa. 

Mas quero me deter especificamente em La Vorágine, “talvez a matriz ficcional de maior repercussão na literatura latino-americana do século XX”, como assinalou Francisco Foot Hardman, em artigo. O livro se encontra dividido em três partes, e traz como narrador-protagonista Arturo Cova. A primeira se dá em torno da busca de Arturo Cova e Fidel Franco por suas respectivas mulheres, Alícia e a menina Griselda, que haviam fujido com o aliciador de seringueiros, Barrera, para o seringal. A segunda e a última parte da obra gira ao redor da descrição da situação de exploração a qual vive os seringueiros daquela região. Aí surgem outros importantes personagens como Clemente Silva, Balbino Jácome, Pipa, Helí Mesa e Madame Zoraida Ayaram. 

Além dos tipos humanos que La Vorágine encerra, a obra é um interessante repositório de lendas e mitos que envolvem a região amazônica, a mesclar simultaneamente o real ao maravilhoso. Ora, aí a selva assume a imagem da voragem a engolir, a consumir o homem. É como se a todo instante a selva quisesse abocanhar o homem. Ela o fascina, mas, também, o alucina. É a selva do silêncio e da solidão, cárcere para o homem, que rouba o horizonte e lhe dá apenas a monotonia da luz do zênite. E ante a perpetuidade da selva, o homem, que é instável e passageiro, se angustia. Exemplifico com as seguintes palavras de Arturo Cova, já embrenhado na selva:

“– Ó selva, esposa do silêncio, mãe da solidão e da neblina! Que destino maligno me deixou prisioneiro em teu cárcere verde? Os pavilhões das tuas ramagens, como uma imensa abóboda, sempre estão sobre minha cabeça, entre a minha aspiração e o céu claro, que só entrevejo quando tuas copas estremecidas movem o seu marulho, na hora dos teus crepúsculos angustiosos. Onde estará a estrela querida que de tarde passeia nas lombadas? Aquela celagem de ouro e púrpura com que se veste o anjo dos poentes, por que não treme em sua cúpula? Quantas vezes minha alma suspirou advinhando através de teus labirintos o reflexo do astro que empurpura as lonjuras, para os lados do meu país, onde há lhanuras inesquecíveis e cumes de coroa branca, em cujo picos me vi à altura das cordilheiras! Sobre que lugar a lua erguerá seu aprazível farol de prata? Tu me roubaste o sonho do horizonte e só tens para os meus olhos a monotonia de teu zênite, por onde passa o plácido alvorecer, que jamais ilumina as folhagens de teus sonhos úmidos! 
Tu és a catedral do pesadume, onde deuses desconhecidos falam a meia-voz, no idioma dos murmúrios, prometendo longevidade às árvores imponentes, contemporâneas do paraíso, que já eram decanas quando as primeiras tribos apareceram e esperam impassíveis a submersão dos séculos vindouros. Teus vegetais formam sobre a terra poderosa família que não se trai nunca. O abraço que tuas ramalhadas não podem dar-se é levado pelas trepadeiras e cipós, e és solidária até na dor da folha que cai. Tuas vozes multíssonas formam um só eco a chorar pelos troncos que se derrubam, e em cada brecha os novos gérmens apressam suas gestações. Tu tens a austeridade da força cósmica e encarnas um mistério da criação. Não obstante, meu espírito só concorda com o instável, desde que suporta o peso de tua perpetuidade e, mais que ao carvalho de galho robusto, aprendeu a amar a lânguida orquídea, porque é efêmera como o homem e murchável como uma ilusão. 
Deixa-me fugir, ó selva, de tuas penumbras enfermiças, formadas com o hálito dos seres que agonizaram no abandono de tua majestade! Tu mesma pareces um cemitério enorme, onde apodreces e ressuscitas! Quero voltar para as regiões onde o segredo não aterroriza ninguém, onde é impossível a escravidão, onde a vista não tem obstáculos e onde o espírito se exalta na luz livre! Quero o calor dos areais, o reluzir das canículas, a vibração dos pampas abertos! Deixa-se regressar para a terra de onde vim, para desandar essa rota de lágrimas e sangue que percorri num dia nefasto, quando atrás do rastro de uma mulher me arrastei por montes e desertos, em busca da Vingança, deusa implacável que só sorri em cima das sepulturas!” (RIVERA, 1982, p.87-88) 

Outra fala interessante é a que nos propícia Clemente Silva. Aliás, personagem importante no livro, seu nome soa como uma exceção clemente da selva, essa selva que faz aflorar os mais desumanos instintos do homem, que se vinga de seus verdugos:

“Quando desci à fonte (fala Arturo Cova), me enternecir ao ver que Fidel lavava as chagas do afligido. Este, ao perceber os meus passos, envergonhou-se de sua miséria e esticou a calça até o tornozelo. Respondeu-me o bom-dia com um acento de voz pertubado. 
- Essas ulcerações, de onde provêm? 
- Ai, senhor, parece incrível. São picaduras de sanguessugas. Essa maldita praga nos intoxica porque vivemos nos pantanais picando a borracha; enquanto o seringueiro sangra as árvores, as sanguessugas sangram-no. A selva se defende de seus verdugos e no final o homem acaba sendo vencido. 
- Julgando por você, o duelo é a morte. 
- Isso sem contar os pernilongos e as formigas. Tem a vinte e quatro, tem a tambocha, venenosas como escorpiões. Algo pior ainda: A selva transforma o homem, desenvolvendo seus instintos mais desumanos: a crueldade invade a alma como o espinho intrincado e a cobiça queima como febre. A ânsia por riquezas convalesce o corpo já desfalecido e o cheiro da borracha produz a loucura dos milhões. O peão sofre e trabalha com o desejo de ser o empresário que possa um dia sair para as capitais para esbanjar a borracha que está levando, para gozar das mulheres brancas e para embebedar-se meses inteiros, sustentado pela evidência de que nos montes há mil escravos que dão a sua vida em troca da procura desses prazeres, como ele o fez para seu amo anterior. Só que a realidade anda mais devagar que a ambição e o beribéri é mau amigo. No desamparo de veigas e estradas, muitos sucumbem de febras, abraçados à árvore que brota leite, colando suas ávidas bocas ao córtex para na falta de água, acalmar a sede da febre com a borracha líquida; e ali apodrecem como as folhas, roídos por ratos e formigas, únicos milhões que lhe chegaram ao morrer. 
O destino de outros é menos precário: ascendem a capatazes à custa da crueldade e, toda noite, esperam de caderno na mão que os trabalhadores entreguem a goma extraída, para assentar seu preço na conta. Nunca ficam contentes com o trabalho e o chicote mede seu desgosto. Àquele que trouxe dez litros, só lhe abonam a metade e com o resto eles enriquecem o seu contrabando, que vendem ao empresário de outra região, ou que enterram para trocá-lo por licores e mercadorias com o primeiro chuchero (regatão) que visite os seringais. Por sua parte, os peões fazem o mesmo. A selva os arma para destruí-los, e se roubam e se assassinam, mutuamente, amparados pelo segredo e pela impunidade, pois não há notícias de que as árvores falem das tragédias que provocam.” (RIVERA, 1982, p.123-124) 

Helí Mesa é outro personagem pelo qual Rivera faz soar a sua denúncia contras as arbitrariedades cometidas na selva pelos seringalistas contra os seringueiros. No trecho abaixo, Helí Mesa narra uma cena que presenciara enquanto um grupo de aliciados era conduzido a um seringal:

“Os garotinhos vão no bongo das mulheres, expostos ao sol, molhando-lhes as cabecinhas para não morrer carbonizadas. Partem a alma com seus gemidos, tanto quanto a súplica das mães que pedem ramos para tapar-lhes. No dia em que saímos para o Orinoco, um menino de peito chorava de fome. O “Matacano”, ao vê-lo cheio de chagas das picaduras dos pernilongos, disse que se tratava de varíola e, agarrando-o pelos pés, girou-o no ar e o atirou às ondas. No mesmo instante um jacaré atravessou-o nos beiços, e boiando, procurou a margem para tragá-lo. A enlouquecida mãe, lançou-se à água e teve o mesmo destino que a criaturinha. (RIVERA, 1982, p.106) 

Com tudo isso, Rivera parece nos apontar que os crimes mais bárbaros não vêm da selva, senão do próprio homem, semelhante ao que um dia dissera Euclides da Cunha: “verifica-se algumas vezes que não é o clima que é mau; é o homem”. Vejamos o que diz o personagem Balbino Jácome:

“Mas o crime perpétuo não está na selva, mas sim nos livros: no Diário e no Maior. Se Sua Senhoria (o padre Visitador) os conhecesse, encontraria muito mais leitura no Deve que no Haver, já que muitos homens são lesados em conta por simples cálculo, segundo o que informam os capatazes. Contudo, acharia dados iníquos: peões que entregam quilos de borracha por cinco centavos e recebem tecidos de vinte pesos, índios que trabalham há seis anos, e ainda aparecem devendo o mañoco (farinha) do primeiro mês; crianças que herdam dívidas enormes, procedentes do pai que mataram, da mãe que forçaram, até das irmãs que violentaram, dívidas que não saldariam em toda a sua vida, porque, quando conheçam a puberdade, só os gastos de sua infância lhes darão meio século de escravidão.” (RIVERA, 1982, p.146) 

Mas o ponto alto do livro é, a meu ver, o discurso de Clemente Silva, que parece sintetizar todas as angústias, todas as misérias, todas as esperanças daqueles homens irmanados pelo infortúnio. Aí está a denúncia, as tristezas, a revolta, a trapaça, que a própria necessidade de sobrevivência impulsiona. E tanto o seringueiro quanto a seringueira (árvore) aparecem como duas realidades que se atraem e se combatem. Ante a exploração do homem pelo próprio homem, Clemente Silva deixa ecoar o anseio de se deixar sucumbir pela selva, que seria mais digno, a morrer pelas injustiças humanas. É uma das páginas primorosas das letras latino-americanas:

“Eu fui seringueiro, eu sou seringueiro! Vivi em estagnações lamacentas, na solidão das montanhas, com minha quadrilha de homens palúdicos, picando o córtex de umas árvores que têm o sangue branco, como os deuses. 
A mil léguas do lar onde nasci, amaldiçoei as lembranças porque todas são tristes: a dos pais, que envelheceram na pobreza, esperando o apoio do filho ausente; a das irmãs, de beleza núbil, que sorriem às decepções, sem que a sorte mude de expressão, sem que o irmão leve para elas o ouro restaurador! 
Frequentemente, ao descarregar a machadinha contra o tronco vivo, senti desejos de cravá-la na minha própria mão, que tocou as moedas sem agarrá-las; mão desventurada, que não produz, que não rouba, que não redime e que hesitou em libertar-me da vida! E sem pensar que tanta gente nesta selva está suportando uma dor igual! 
Quem estabeleceu o desiquilíbrio entre a realidade e a alma insatisfeita? Para que nos deram asas no vazio? Nossa madrasta foi a pobreza, nosso tirano, a aspiração! Por olhar para o alto, tropeçávamos na terra; por atender o ventre misérrimo, fracassamos no espírito. A mediania nos brindou com sua angústia. Só fomos heróis do medíocre! 
Aquele que conseguiu pressentir a vida feliz, não teve com que comprá-la; aquele que procurou a nova, achou o desdém; aquele que sonhou com esposa encontrou a amante; quem tentou elevar-se caiu vencido, diante dos magnatas indiferentes, tão impassíveis como estas árvores que nos olham languidecer de febres e de fome no meio de sanguessugas e formigas! 
Quis fazer um desconto à ilusão, mas uma força incógnita disparou-me mais além da realidade! Passei por cima da ventura, como uma flecha que erra seu alvo, sem poder corrigir o impulso fatal e sem outro destino que a queda! E a isto chamavam o meu porvir! 
Sonhos irrealizados, triunfos perdidos! Por que sois fantasmas da memória, como se quisésseis envergonhar-me? Veja no que acabou este sonhador: em ferir árvores inermes para enriquecer os que não sonham; em suportar desprezos e vexames em troca de uma migalha ao anoitecer!
Escravo, não te queixes da fadiga; preso, não lastimes tua prisão; ignorais a tortura que é o vagar solto de um cárcere como a selva, cujas abóbodas verdes têm por cova rios imensos. Não sabeis do suplício das penumbras, vendo o sol que ilumina a praia oposta, aonde nunca conseguiremos ir! A corrente que morde vossos tornozelos é mais piedosa que as sanguessugas desses pântanos; o carcereiro que vos atormenta não é tão rígido como estas árvores que nos vigiam sem falar! 
Tenho trezentos troncos nas minhas estradas e para martirizá-los gasto nove dias. Limpei-lhes os cipoais e para cada um deles capinei um caminho. Ao percorrer a taimada tropa de vegetais para derrubar os que não choram, costumo surpreender os castradores roubando a borracha alheia. Brigamos com mordidas e machetadas e o leite disputado se salpica de gotas avermelhadas. Mas o que importa que nossas veias aumentem a seiva do vegetal? O capataz exige dez litros por dia e o coiote é usurário que nunca perdoa! 
E que importância que o meu vizinho, o que trabalha na beiga próxima, morra de febre? Já o vejo estendido nas folhagens, espantando as moscas que não o deixam agonizar. Amanhã terei que ir embora destes lugares, derrotado pela fedentina; mas lhe roubarei a borracha que tenha extraído e o meu trabalho será menor. Outro tanto farão comigo quando morra. Eu, que não roubei para os meus pais, roubarei o quanto possa para os meus verdugos! 
Enquanto ajusto no tronco gotejante o talo canalizado do caraná para que o seu pranto trágico corra em direção à taça, a nuvem de mosquitos que o defende, chupa o meu sangue e o vapor dos bosques turva os meus olhos. Assim, a árvore e eu, com tormentos diferentes, somos lacrimejantes diante da morte e nos combateremos até sucumbir! 
Mas eu não me compadeço daquele que não protesta. Um tremor de galhos não é rebeldia que me inspire afeto. Por que não ruge toda a selva e não nos aniquila como répteis para castigar a exploração vil? Aqui não sinto tristeza, senão desespero. Quisera ter com quem conspirar! Quisera livrar a batalha das espécies, morrer nos cataclismos, ver as forças cósmicas invertidas! Se o demônio dirigisse essa rebelião... 
- Eu fui seringueiro, eu sou seringueiro! E o que a minha mão fez contra as árvores, pode fazer contra os homens! (RIVERA, 1982, p.155-157) 

La Vorágine revela ao mesmo tempo tanto a complexidade que envolve a selva quanto a complexidade que envolve a própria natureza humana. Ao pintar sua selva fantasmagórica, Rivera também pinta os fantasmas que povoam a própria realidade humana: 

“Aqui, de noite, vozes desconhecidas, luzes fantasmagóricas, silêncios fúnebres. É a morte, que passa dando a vida. Ouve-se o golpe da fruta, que ao abater-se faz a promessa de sua semente; o cair da folha, que enche o monte com um vago suspiro, oferecendo-se como adubo para as raízes da árvore materna; o estalido da mandíbula que devora com medo de ser devorada; o assobio de alerta, os ais agonizantes, o barulho do arroto. E quando a alvorada rega sobre os montes sua trágica glória, inicia-se o clamor sobrevivente: o zumbido da perua chiadora, os retumbos do porco selvagem, as risadas do macaco ridículo. Tudo pelo júbilo breve de viver algumas horas mais!
(...)
Não obstante, o homem civilizado é o paladino da destruição. Há um valor magnífico na epopeia desses piratas que escravizam os seus peões, exploram o índio e se debatem contra a selva. Atropelados pela infelicidade, do anonimato das cidades, lançaram-se aos desertos procurando um fim qualquer para sua vida estéril. Delirantes de impaludismo, despojaram-se de consciência...” (RIVERA, 1982, p.162) 

E o que parece expressar bem o que Rivera entendia da selva como voragem é a cena em que Clemente Silva está perdido na selva com outros três companheiros. Aí a selva se lhes apresenta quase como uma entidade, que se mexe, acena e assobia. Neste sentido, a selva é um ‘álcool’ que inebria, os absorve, e faz perder a noção de real:

“Pela mente de quem as escuta, passa a visão de um abismo antropófago, a própria selva, aberta ante a alma como uma boca que engole os homens que a fome e o desalento lhe vão colocando nas mandíbulas.” (RIVERA, 1982, p.169) 

Por fim, é interessante notar a mudança que se processa em Arturo Cova. No início o que o move é o desejo de vingança por aquele que lhe roubou a mulher. Mas quando se depara com a relidade dos seringueiros, tal é seu impacto, que ele passa a lutar não mais só pela sua dor, senão pela dor dos seringueiros, que passa a ser a sua dor. O anseio de vingança por um homem, no caso, Barrera, passa a ser por um sistema: 

“E não penses que ao dizer “Funes” dei nome a uma única pessoa. Funes é um sistema, um estado de espírito, é a sede de ouro, é a inveja sórdida. Muitos são Funes, mesmo com um só levando o nome fatídico.” (RIVERA, 1982, p.199) 



RIVERA, José Eustasio. A VORAGEM (La Vorágine). [trad. Reinaldo Guarany]. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

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