CHICO BRASIL
José Augusto de Castro e Costa
Tudo que se escrever sobre o Acre, seja
referente às pessoas, ou simplesmente à sua história, tem nascente enraizada no
nordeste brasileiro.
A seca nordestina de 1877 não durou apenas
três anos, ao contrário, prolonga-se até aos dias atuais, de maneira cada vez
mais agravada.
A situação desesperada dos suplicados daquela
época, forçaram milhares de nordestinos, sobretudo do interior cearense, a migrarem
para outras localidades. Há relatos de episódios carregados de verdadeiro
sofrimento, como o caso do naufrágio do navio Laura, ocorrido nas costas do
Pará e dos flagelados recebidos com vaias e pedradas ao chegarem ao Maranhão.
.
Após o Tratado de Petrópolis, quando a área
em conflito, de aproximadamente 189.000 km², ficou, finalmente, sob a soberania
nacional, muitos brasileiros embrenharam-se pela Amazônia, em busca, não apenas
do látex encontrado no paraíso econômico, mas, também, por inexplicável
atrativo, num ambiente estranho, em meio a culturas diversas, cediam aos seus
espíritos aventureiros.
Mais ou menos na mesma época, vários jovens,
após vencerem naturais oposições familiares, embarcaram rumo à imensidão
amazônica, navegando num “céu d’água brutalmente enorme”, com destino ao Acre.
Dessa forma, a região acreana, em razão do crescente aumento da produção da
borracha, tornava-se a sina de muitos nordestinos.
Dentre eles, destacava-se Francisco Brasil,
que ao chegar ao destino, procurou familiarizar-se ao cotidiano do lugar, ao
modo de vida e aos costumes de seus habitantes para, em seguida, determinar-se
a investir em um seringal.
Para tanto, refletira bem sobre sua condição
de nordestino, acossado pela agressividade da seca e ainda levado pela ilusão
do enriquecimento rápido com o extrativismo no Acre, não querida desperdiçar a
oportunidade de trabalhar em terras da qual se dizia que “lá se juntava
dinheiro até com ciscador”.
Seu Chico Brasil, natural do seu adorado
Quixadá, então adquirira, por compra, o seringal Vila Nova e dedicara-se a esperar
uma nova fase da borracha, o que de fato ocorreu nos anos da Segunda Guerra
Mundial.
Naquela época o alto rio Acre contabilizava
cerca de mais de um milhão de árvores de seringueira, das quais, 555.000
achavam-se em Xapuri.
O sensível e contínuo aumento da produção
gomífera na região ampliava cada vez mais as estruturas de transporte de
mercadorias, de passageiros e de escoamento dos produtos dos seringais que
iam-se proliferando para outras localidades.
Assim, como seu Chico Brasil, muitos
investiram no Acre, sempre observando um regulamento, onde lia-se:
“b)
Trabalhar para se manter decentemente, porque, sendo os seringais um núcleo de
trabalho, para onde se vai com a vontade exclusiva de ganhar dinheiro e
consequentemente melhorar as condições de vida, só se pode adquirir o desejado
com um trabalho firme e honroso”.
Seu Chico Brasil, como homem informado, era
sabedor que os seringais rendiam muito e possuíam estrutura para tal, como o
seringal Bom Destino, abaixo de Rio Branco, que possuía 1.500 estradas e o Iracema,
que além de suas 1.605 estradas, produzira 549.384 quilos de borracha, anuais,
segundo as estatísticas.
Lidar com a natureza dos seringais era um
tanto quanto complicado, razão pela qual fazia-se necessário tino administrativo e noções de atividades comerciais e contábeis,
trato com pessoal e mercadorias, elementos
de destaque na estrutura de um seringal,
estrutura esta observada pela existência de dois grupos unidos pelo objetivo do
ganho industrial e comercial, nas figuras do patrão e do seringueiro.
Submetido a várias agruras, o seringueiro
ainda era alvo de várias doenças, como impaludismo, beribéri, polinevrites e
infecções intestinais, causadores de grande mortalidade.
Possuidor dos dotes referenciados, seu Chico
Brasil estabeleceu-se em seu empreendimento e passou a enfrentar o cotidiano da
vida ribeirinha, do amanhecer ao final do dia, da primeira refeição ao
anoitecer, entre fiscalizações e contagens das pélas de borracha, anotações de
sua produção e devido estoque, assim como a movimentação dos diversos artigos
mercantis e das questões particulares.
Como proprietário, seu Chico Brasil sentiu,
de saída, o impacto das dificuldades dos seringueiros envolvidos em débitos contínuos
e praticamente insanáveis, numa verdadeira progressão geométrica.
A convivência com esse descompasso
estabelecera, no espírito do jovem seringalista, humanista que era, uma crescente
expectativa, em busca de uma solução bilateral, estendendo-se, por muitos anos,
num misto de conforto e desconforto, de satisfação e desagrado, de alegria e
mal-estar.
A forte intuição de seu Chico Brasil era
tamanha que, ao examinar a progressão e queda do ciclo anterior e a sua rápida ascensão
30 anos depois, deduzira, pela lógica, que seria de bom alvitre passar adiante
o Vila Nova, investir financeiramente em aplicações menos comprometedoras e
empregar o tempo na atividade gerencial de outros seringais.
Casualmente, o primeiro seringal a gerenciar
foi o Capatará, que teve Plácido de Castro como proprietário, passando daí a outros
que ofereciam melhores propostas de gerenciamento, atividade que considerava proporcionar-lhe
melhor proveito, em todos os sentidos.
Particularmente seu Chico Brasil era uma
figura notável, simpática e acolhedora. Foi genitor, na companhia de dona
Preta, de uma prole de onze filhos. Com a utilização de três letras pôs nome
nos quatro primeiros filhos homens: Ruy,
Ury, Yru e Ryu. Em seguida não se preocupou mais com essa particularidade,
e vieram Roberto, Antonia, May, Ivo, Iso,
Ila e Isa.
Sua residência, em Rio Branco, à rua Marechal
Deodoro, além de ampla e aprazível, era
cercada por um verdadeiro pomar, com espécimes de goiabeiras, cajueiros,
mangueiras, laranjeiras, pitangueiras, jaqueiras, cajazeiras, ingazeiras,
limoeiros, tangerineiras e outros pés de frutas, objetos de costumeiros sucos e
doces, preparados por dona Preta e saboreados, inclusive, pelos peladeiros de
rua, companheiros de seus filhos, nos finaizinhos de tarde.
Gerenciando algum seringal, seu Chico Brasil vinha
periodicamente a Rio Branco e, muito comunicativo, sempre tinha alguma história
a contar, como a de que, certa tarde, ao verificar as plantas do jardim ao lado
da horta, ouvira um leve chiado, que o fez voltar a cabeça, mas como nada viu,
continuara a observação às roseiras. Chegou então, ao seu lado, um empregado do
barracão, que, lentamente, arreou as duas latas d’água trazidas do rio,
exclamando:
-- Uma cobra!
Bem às costas de seu Chico Brasil, achava-se
uma enorme surucucu-pico-de-jaca, de mais de dois metros de comprimento. Ao ver
a cobra enrodilhando-se e curvando o pescoço para trás, armando o bote, com a
língua bífida a sair-lhe da boca, num desafio em linguagem muda e terrível, seu
Chico pediu seu revólver e visou o fino pescoço erguido e, além, uma grossa
volta do corpo da serpente, transpassando-os com a mesma bala, partindo-lhe em
dois pontos a espinha dorsal. A cabeça pendeu inerte, com um filete de sangue a
escorrer-lhe da boca, enquanto se entorcía o corpo nas convulsões da morte.
Aquele cearense já estava inteiramente
adaptado à vida do seringal, porém, tempos depois a produção gomífera, que
chegara a 94,4%, foi caindo para 10,98%, a seguir 2,3% e, em 1960, chegou a
0,43%.
Seu Chico
Brasil resolveu, então aposentar-se e transferir-se com toda a família para São
Paulo, onde viveu por mais alguns anos, cercado do carinho de dona Preta, filhos, netos e bisnetos.
Por considerá-lo mais
um intrépido brasileiro a regar com suor em solo acreano, frutos da dedicação
do seu trabalho, perspicácia e inteligência, a vida de seu Chico Brasil é, por
certo, uma história que o Acre escreveu.
* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, está escrevendo sua nova série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.
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