Luiz Felipe Jardim
Você se lembra da
Capitu? Aquela do 'olhar de ressaca', esposa do Bentinho, nascida dos fios
macios das penas suaves e anavalhadas do Machado, lembra? Pois acho que
encontrei, por acaso, algo curioso sobre ela e o seu Dom Casmurro.
É que por esses
dias andei lendo o livro, vendo o filme - de 1928- e vendo em quadrinhos (tudo
em boliviano) O Homem que ri, do Victor Hugo e...
No tempo em que
vigorava a força da língua francesa na cultura do mundo, o cumpade Machado,
aquele de Assis sem ser de verdade de lá - mas mesmo assim sendo o de Assis que
ele era – ainda rapazinho, andou se agatanhando com o vernáculo francês, isto
é, teve certo enamoramento pela língua dos galos. Eternamente enfebrecido pela
paixão da curiosidade e sem dormir na pontaria, ele estudou, com um padeiro que
veio da França, e aprendeu o francês bem aprendidinho. Sem ensoberbecências, aprendeu
a tirar os pensamentos do juízo na língua francesa, e a mostrá-los falando, com
direito a sotaque e tudo o mais.
Talqualzinho sapo
dissimulado, de uma qualidade de raça que não mostra a língua que tem, mas astucioso
que só, ele foi, devagarinho, devagarinho, se assapientando com as leituras que
fazia, botando dentro do juízo mioludo dele as sapientices, as sabenças que
colhia quando lia e que com os livros aprendia.
Depois, já bem
assapientadinho, mas sempre magriçola, com aquela esguiês que o caracterizava,
e sempre olhando para os lados e para tudo com os olhos mágicos da imaginação,
ele resolveu fazer algumas misturâncias com o vernáculo de lá e o de cá, e
danou a fazer tradução do francês para o português (atenção revisão: não é 'por
tu, guei'), ou seja: ele fez a língua de cá a 'alvo' e a de lá a 'fonte'. Por
isso, muita vez, enquanto escrevinhava os seus livros, sempre com as radiâncias
que de suas penas emanavam, ele traduzia algumas obras do cumpade Victor Hugo
para o português.
Do cumpade Victor
Hugo você se lembra, né? Pois é aquele mesmo... Caboclo galo da gema, que
faiscava luminâncias; sanhudo e opiniúdo que só (se assanhou com Napoleão III,
foi exilado e depois recusou a anistia que este ofereceu); que tinha o órgão de
pensação permanentemente grávido de imagens românticas e impressionantes que
ele só conseguia dar vença de trazer à luz através das letras que reunia. E que
letras! Mostravam as realidades tão dentro delas mesmas que, mirando e
acertando o seu carnegão, nem pareciam ficção. O cumpade galo tinha o tutano com
o lume e a luminescência do tutano de um Machado...
Não sei se Machado
de Assis traduziu o "O homem que ri", mas com certeza ele leu, acho
que até mais de uma vez, essa obra que Victor Hugo considerava o seu melhor
trabalho de literatura.
No final da primeira
parte da obra, o Homem que ri, ainda ‘menino na escuridão’, abandonado no
inverno gelado dos seus dez anos, tinindo de tiririca e de frio, encontra a cabana
de um homem chamado Ursus, que o acolhe. Ursus, o Philosofo, vive numa floresta
e tem um lobo de companhia que se chama Homo (atenção revisão, o lobo é homo
mesmo, viu? nada de hétero, por favor).
Bem, resumindo a
ópera, na descrição que o galo Victor faz do lobo Homo, o amigo de Ursus que
acolheu o Homem que ri ainda menino, ele diz que o lobo tinha 'um olhar
oblíquo'...
Machado diz algo semelhante
sobre Capitolina. Lembra?
Ele diz que Capitu
tem os olhos "de
cigana oblíqua e dissimulada"; “olhos de ressaca”.
Olhos de ressaca, à primeira vista, pode
sugerir um olhar mortiço, semicerrado, causado pelo peso das pálpebras de quem
está padecendo de um pesado ‘pós-pileque’; numa ‘segunda vista’ pode-se pensar
que seja uma referência a ‘fúria’ do mar revolto, em ressaca, o que sugere ‘olhos
agitados, travessos’; à ‘terceira vista’, olhos de ressaca pode insinuar inconstância,
volubilidade, mutabilidade, portanto, olhos de olhar ‘indefinido, vago,
misterioso’. Todas estas ‘sugestões’ combinam com a ideia de ‘cigana oblíqua e
dissimulada’: inclinada, tortuosa, indireta, maliciosa, ardilosa. Todas estas
‘sugestões’ combinam com as impressões de ambiguidade, de ambivalência que
temos do caráter e da personalidade que dão vida a Capitu, ao mesmo tempo em
que alimentam as ambivalências, ambiguidades, incertezas que nos resultam da
apreciação do seu comportamento.
Todas essas ‘sugestões’ também combinam com o
‘olhar oblíquo’ que tem o lobo, tanto o lobo Homo de Victor Hugo, quanto
qualquer lobo real. Basta olhar para qualquer retrato de um lobo para se fazer
esta constatação: semicerrado, ardiloso, ambíguo, incerto, misterioso.
Capitu tem ‘olhos de cigana oblíqua e
dissimulada’. Tem ‘olhos de ressaca’. Tem ‘olhar oblíquo’. Tem olhar de lobo.
O lobo tem o ‘olhar oblíquo’ ‘de cigana oblíqua e dissimulada’. Tem ‘olhos de ressaca’.
Tem olhar de Capitu.
Luiz
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