quarta-feira, 24 de julho de 2013

Série HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU

A SAGA DE PAULO E DONZINHA

José Augusto de Castro e Costa


As cicatrizes decorrentes  da  perda irreparável da esposa ainda  incomodavam  o jovem,  nos seus,  incompletos, vinte e cinco anos, de tal modo que ele a nada conseguia adaptar-se. O casal havia experimentado uma breve convivência, tumultuada, em vista  da forte objeção dos familiares da moça, mesmo após o nascimento do único filho. Logo a seguir, uma enfermidade incurável, desestabilizara  o que já vinha  se desgastando.

Em busca de melhores  recursos para o tratamento médico da esposa, Paulo desfizera-se  de sua única propriedade e deslocara-se para  a capital paraense. Ao aproximar-se da cidade de Breves, aquela enfermidade da esposa consumara-se  em  tragédia  para o jovem, que, sozinho, tivera  de tomar todas as providências relativas ao funeral de seu ente querido, em terra estranha, por completo, cujo jazigo  dificilmente poderia  vir a ser visitado  por ele ou  por algum outro familiar, dado ao isolamento de sua localização.  Após as devidas soluções ante o impasse, em menos de  vinte e quatro horas, Paulo seguira  no mesmo barco para Belém, onde permanecera  por curto período, tentando colocar  suas ideias em ordem, hospedando-se  em república para  rapazes.

Ao retornar a Manaus, o jovem, no alambrado do navio, ia observando a travessia serena da Baía de Guajará e o estuário do rio Tocantins, aproximando-se da Ilha de Marajó, seguindo pelos braços de rio, os populares  paranás, que a separam do continente, formando um verdadeiro  labirinto  de águas e de matas, que se fecham num curto círculo, sem horizontes. Navegavam no Estreito de Breves.

O vapor, rompendo velozmente por dentro da enorme floresta, quase a roçar-lhe os galhos, não poderia  evitar  que o pensamento do jovem voltasse para sua esposa, cujo corpo ficara para sempre naquele município paraense. Depois de muitas horas dessa extravagante navegação silvestre, após passar por Óbidos, o navio atingira  o Rio-Mar, que se expandia e se bifurcava por entre grandes ilhas, onde até hoje  se destaca a de Parintins, já  em águas amazonenses.

Ao encontrar-se em Manaus, por uma razão ou por outra,  Paulo não conseguira estímulo para  fixar-se  em nenhuma atividade que se lhe apresentara, motivo pelo qual entrara  em sério conflito com seu  tio Custódio, que o havia criado desde os dez anos de idade, por haver ficado órfão de  dona  Adalgiza,  sua genitora.

Corria o mês de janeiro de 1928, quando  Paulino de Brito, o esposo de uma prima sua,  fora nomeado Juiz de Direito em Rio Branco  e, ao tomar conhecimento da  situação por qual passava  o jovem Paulo,  não só o convidara  como  o  persuadira  a acompanhá-lo. Em termos de distração, a  viagem à capital acreana  contava  um bom número de rapazes, seus conhecidos, tanto amazonenses quanto paraenses, destacando-se o advogado, jornalista e caricaturista Garibaldi Brasil, que com  o jovem  dividira hospedagem na pensão paraense, Aníbal Paiva, e outros, entre os quais, o poeta cearense Quintino Cunha, que ia para Lábrea, e  ao chegar à foz do caudaloso Rio  Negro, de águas límpidas porém escuras, que não se misturam  às águas  amarelas e turvas do Solimões, compôs a célebre poesia Encontro das Águas:

“Vê bem, Maria, aqui se cruzam:  este
 È o Rio Negro, aquele  é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como a saudade com as recordações.
Olha esta água – é negra   como tinta
Posta na mão é alva que faz gosto.
Dar por visto o nanquim com que se pinta
Nos olhas  a paisagem de um desgosto”.
Que profundeza extraordinária, imensa.
Que profundeza mais que desconforme!
Este navio é uma estrela suspensa
Neste céu d’água, brutalmente enorme.
O barco Guanabara, com seus largos corredores, para onde abriam os camarotes, que se estendiam em dupla fila central até um vasto  refeitório, tomara o rumo do rio Solimões e subira-o até à segunda foz, entrando à esquerda no  não menos lendário rio Purus, cujo canal era assinalado por uma linha de espuma e de paus que desciam de bubuia, formando  um rebojo de troncos, o que constituía um  perigo fatal, que requeria  grande atenção do prático.


Todo aquele cenário era, de certo modo, novidade para muitos passageiros. O vapor  aportara  brevemente, para carga e descarga, à vila Floriano Peixoto, antiga Antimarí, na foz do rio do mesmo nome, ainda no estado do Amazonas, para, logo a seguir, alcançar as águas do rio Acre, chegando, algum tempo  depois,  a Porto Acre.

Numa bela manhã de fevereiro de 1928, um  domingo de carnaval, o navio Guanabara, saudando  o  povo acreano, fazia soar apitos  característicos e contínuos, anunciando sua  aproximação  festiva  ao porto de Rio Branco.

Governava o Acre, por essa época, o advogado Hugo Ribeiro Carneiro, que vinha-se notabilizando pela modernização que impusera àquele Território, proporcionando novo visual  urbanístico a Rio Branco  e estampando  alegria fulgurante em seu povo, que procurava  manter sempre ativa  a sua vida social, cultural e esportiva.

Logo à chegada, os visitantes foram convidados para abrilhantarem o Baile Carnavalesco da Sociedade Recreativa TENTAMEN, clube elite da cidade, que seria levado a efeito à noite daquele mesmo domingo, abrindo os festejos de Momo.

Conforme programado, à hora marcada  os rapazes compareceram  ao clube, onde foram  calorosamente  recepcionados pela diretoria e acomodados  em local de destaque, de onde  puderam  apreciar, encantados,  o ambiente do hig-life da cidade, as elegantes fantasias femininas e masculinas, as mimosas senhorinhas em suas poses encantadoras, seus sorrisos fascinantes, suas jovialidades e meiguices.

Não demorou muito para Paulo e Donzinha descobrirem-se, acenderem a fogueira de seus olhares, chegarem-se o mais próximo possível e, estimulados pelo embalo do maxixe e  da marchinha, estabelecerem um certo diálogo que perduraria  por cinquenta e nove anos. Para o desenvolvimento desse princípio dominante e sua concretização, porém, fizera-se necessário algumas providências ao encargo da moça. Por cultivar estreito relacionamento com a família do governador e dotar-se de espírito diligente, Donzinha  condicionou  seu futuro casamento à oferta de um emprego para seu noivo, o qual, em decorrência, fora nomeado, em abril de 1928, Comissário Interino da Delegacia  Auxiliar de Polícia do Território.

Três meses depois, o jovem fora transferido para o gabinete do governador, sendo, em março de 1929, convidado a preencher uma vaga no quadro de pessoal do Ministério da Fazenda, no qual  se estabilizaria, fazendo carreira até  aposentar-se, desenvolvendo suas atividades no Acre e no Amazonas. Tal posto estava vago por conta da peculiaridade de seu exercício, que deveria ser desenvolvido  em locais de difícil acesso e aguda insalubridade. Consta que o primeiro encargo que lhe fora  atribuído, logo após o casamento, teria sido o de responsável pelo Posto de Registro Fiscal Federal do Amônea, na foz do rio Breu, na fronteira do  Peru, distante mais de duzentos quilômetros de Cruzeiro do Sul, em linha reta.

A viagem constituíra-se numa verdadeira odisseia, pelo fato de somente poder ser efetuada por via fluvial, de Rio Branco a Manaus, onde, em data incerta, seria tomado um outro navio para subir o  Solimões, daí entrando no rio Juruá, para  alcançar  Cruzeiro do Sul. Dessa cidade ao  Amônea,  Paulo e Donzinha, em vista da vazante do rio, serviram-se de uma  canoa, tripulada por um elemento a utilizar um varejão, próprio para impulsionar  a condução  rio acima, o que contribuíra  para alongar  a viagem em mais de três  meses, da origem ao destino.

Em 1931, Paulo fora  autorizado a transferir o Posto Fiscal do Amônea para Feijó, então município de Tarauacá, de onde suas atividades passaram a abranger as áreas dos rios Juruá, Jordão e Envira, compreendendo Cruzeiro do Sul, Tarauacá (ex-Vila  Seabra) e Feijó.

Anos e anos naquele interior amazônico, enquanto Paulo  ocupava-se em fiscalizar a circulação dos produtos extrativistas  e outras tarefas aduaneiras, Donzinha tratava da educação das crianças, lecionando letras e canto orfeônico, formando coral de várias vozes, com quem ensaiava, já que possuía conhecimentos musicais de violão, bandolim e órgão harmônico (quando alguma capela o possuía). Nasce daí o forte vínculo com várias famílias tradicionais da região, tais como a de Zeca Rabelo, dona Maria Mesquita, Dr. Gualther Batista, Dr. José Potiguara da Frota e Silva, Dr. Dedé, Cambeiro, Roque, Cunha, Angelo Silveira, Manuel Lino, Quirino Nobre,  Mâncio Lima, e outros e outros.

Vinte anos depois estavam os dois de retorno a Rio Branco, após terem feito histórias no Juruá, Envira,  Purus,  Antimarí  e em Porto Acre.

Na capital acreana, além dos serviços alfandegários, Paulo  dedicara-se ao esporte, tendo colaborado para a fundação da Sociedade Desportiva Vasco da Gama, chegando a ser um de seus primeiros presidentes, quando Donzinha, sempre no afã de educadora, depois de lecionar no Grupo Escolar 7 de Setembro, oferecera todo seu empenho na direção do Educandário Santa Margarida, por um longo período de onze anos, até a partida definitiva para Manaus, acompanhando Paulo, que para aquela cidade  havia sido transferido.

Na capital amazonense Donzinha  passara a exercer atividades na direção do Educandário Gustavo Capanema, paralelamente ao seu trabalho no IPASE, enquanto Paulo, além de Fiscal da Alfândega, desempenhava funções no Lions Clube de Manaus-Centro, o que, por destacar-se no desenvolvimento  de  projetos de bem-estar social, fora homenageado  post mortem, pela Prefeitura Municipal de Manaus, emprestando seu nome  a  uma  rua no bairro Japiim.

Por essas e outras é que Paulo sempre buscava os versos de Quintino Cunha:

“Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim,  de ti,  de nós que nos amamos”!...


De salientar que Donzinha, ou melhor, Maria Barbosa  e Paulo de Castro e Costa eram amazonenses de nascimento, porém, por acentuado amor, tinham  historicamente, e com muito orgulho, os corações acreanos.


* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, está escrevendo sua nova série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
 
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.

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