terça-feira, 15 de outubro de 2013

OCÉLIO E A ACADEMIA ACREANA

Trecho de A REPRESA (1942), de Océlio de Medeiros, em que narra, com todo aquele seu estilo irreverente e recheado de humor, os primórdios da Academia Acreana de Letras.


Muita coisa houve em Rio Branco durante os últimos meses. Preto Limão, o velho Preto Limão, que andava cambaleando bêbado pelas ruas e que as mães chamavam para que levasse num saco os filhos malouvidos, morreu num banco de Praça. Morreu feliz, sem saber porque tinha nascido, sob o frio da madrugada e a mortalha da noite estrelada. A lua ria-se dele lá de cima, no seu arco de luz, como na bandeira turca. O Eliezer e o Armando Braga, os únicos boêmios, foram fazer uma serenata na madrugada do outro dia, bebendo e cantando modinhas, diante da cova do Preto Limão. Quem passasse a essa hora, haveria de ouvir, como a voz do luar, aquela canção de saudade, acordando a alma do Preto Limão.

Preto Limão morreu. Casou-se a Osvaldina, filha do seu Ângelo, com o Joca, filho do Pereira, o par mais falado de Rio Branco. Suicidou-se o Pedro Morais num domingo. Nessa tarde não tocou a retreta. Nasceu na segunda quinzena a filha do sírio Fecuri. A Marina foi deflorada. A Lindalva arranjou um novo amante. Mas o acontecimento principal foi a ideia de o Felipinho fundar a Academia Acreana de Letras. Só a existência do poeta Juvêncio justificava a existência da Academia.

Felipinho rsolveu ir pedir o apoio do Juvêncio. O poeta já namora as glórias acadêmicas. O Felipinho botou a roupa que usava sempre quando ia empreender alguma coisa. Era um fato amarelo, de linho barato comprado no Safa, que harmonizava perfeitamente com a pele palustre. O Pai Irineu, chefe da uascar, disse a Felipinho que o amarelo era a cor que lhe daria êxito em tudo.

O “Hotel Madri”, parte integrante das tradições de Rio Branco, fica do lado da Perdição. Um anúncio novo, afixado numa das prateleiras, melhor o define: hotel familiar... Outro, escrito em letras vermelhas, o completa: “Só é permitida a entrada de mulheres depois das dez horas...” E ainda há um na parede do mictório, com esses caracteres reservados: “Por favor, não jogue o algodão na bacia...”

O Felipinho, sacudindo com a costa das mãos o pó das ruas que sujava o seu fato canário, entrou por uma ala de bilhares, cumprimentando academicamente um antigo contrabandista de cocaína. No quarto, o último do corredor, o poeta, sentado numa rede de varandas vermelhas, continuava o primeiro e o único pifão de sua vida, começado aos 18 anos, quando aluno faltoso da Faculdade de Direito do Recife, onde se bacharelou, vindo daí para o Acre afim de ser promotor público de Abunã. A sua voz arrastada recitava:

– Bendita seja, preguiça amada,
tu que não queres que eu me ocupe em nada!
– Teu filho é belo, é forte, é louro?
Mais uma rês votada ao matadouro!...

O ambiente do cubículo, que Amadeu Aguiar nos seus artigos chamava de Tebaida, causou um asco secreto em Felipinho. Uma cama de casal, velha e imunda, mostrava à guisa de lençol uma riquíssima pele de vicunha, que tinha sido presente de rico ganadeiro da Bolívia. Uma cômoda tosca, com coluna de tripé, servia de pedestal ao busto do cantor das Acreanas, feito em barro bruto pelo seu colega de letras e de farras Amanajós Santiago. No chão, como cuspidelas de mulher grávida, várias pilhas de livros se espalhavam. Em cima de uma mesinha, o retrato da colação de grau, de borla e capelo, caindo a cabeça e o bigode sobre o punho da mão direita fechad, numa atitude de pensador profundo. Dispostos sobre um pano de rendas que nunca tinha sido lavado, viam-se inúmeros postais de mulheres nuas. Na parede, repousando sobre dois pregos, o espadim com que Juvêncio namorava a futura Academia Acreana de Letras: uma lâmina de pau lavrado, feita talvez de caixão de cebolas, com uma copa de couro de boi...

Felipinho tornou-se íntimo, puxando uma cadeira furada. Olhou para um dos travesseiros da cama. Viu lá a boneca de pano, dessas que, de passagem para o Rio, se compram em Fortaleza.

– Que história é essa, Juvêncio? Então depois de velho você deu para brincar com boneca?

– Que nada, rapaz! Essa boneca é a presença, é a saudade de Laura! – suspirou o Juvêncio, num sorriso safado em que exibia as suas gengivas desdentadas.

– Mas quem é essa Laura de que você tanto fala? perguntou o Felipinho.

– É essa monstruosidade que está aí! respondeu o poeta, apontando para um retrato em que se via uma cara de quitandeira, gorda como um balaio. Ela hoje está velha, – desculpou-se o Juvêncio – está acabada, está como eu... Mas debaixo de toda essa gordura, de toda essa feiura e de toda essa velhice, eu sinto a Laura de ontem, aquela Laura que era três vezes mulher!...

Felipinho ainda deu uma prosinha. Juvêncio mostrou-lhe as últimas produções. Versos em que o álcool trabalhava tanto como o talento. Os nomes mais imorais, como pinceladas de piche, cortavam a conversa. Felipinho aproveitou a oportunidade:

– A propósito, Juvêncio. Venho pedir o seu apoio para a fundação da nossa “Ad immortalitatemzinha”... Você já está para morrer e precisa entrar na Academia...

– Eu, morrer?! Engana-se quem pensa que eu depois de morrer queira entrar na Academia ou no céu! Jamais suportaria o ambiente chato do Céu, com S. Pedro fazendo rabujices e doze mil virgens entoando cânticos sacros. Jamais!... Quando morrer, quero ir é para o Inferno! Isto sim! Aí encontrarei todas as almas devassas, todas as pecadoras, todas as mulheres perdidas, todas as prostitutas do mundo! E é aí que eu vou gozar de verdade!...

A figura de Juvêncio fez o Felipinho experimentar a emoção do romancista que encontra um tipo. Baixo e magrelo, desdentado e franzino, talvez não fosse capaz de resistir ao discurso do Prof. Cazuza, se esse fosse o escolhido para saudá-lo... Sardas e pinguinhos azuis salpicavam-lhe o rosto encarquilhado. E, pelo canto dos lábios sórdidos, escorriam, como um arco de ferro incandescente, as pontas ruivas do bigode...

Amadeu Aguiar escreveu nesse dia na primeira página do “O Acre” um esboço crítico biográfico, onde dizia que o poeta Juvêncio se deixara levar pela sedução dos barrancos do Acre. “Remanescente de maior talento de uma geração, – afirmou ele – plagiou a glória das cigarras, sempre cantando, e viveu o destino dos copos de botequim, sempre se enchendo de álcool, numa bebedeira que só terminará com a morte. Admiravelmente filósofo no seu lirismo, inspirado sempre no ceticismo de uma região onde nem a própria terra inda se fixou, anda agora no refúgio do seu passado e na degradação do seu talento... Só teve, na vida, dois amigos: um rato branco, que conserva com o maior carinho numa gaiola de arame, e o Coronel Epaminondas Martins. Seu maior desejo é, quando essas duas criaturas morrerem, enterrá-las lado a lado. E haverá de escrever, na lápide da sepultura do rato, o seguinte epitáfio: aqui jaz o homem que não me furtou...”

O Juvêncio recitou alguns dos últimos sonetos de sua lavra. As palavras, ao sairem da bocarra desdentada, adquiriam uma tonalidade cava, como se viessem do fundo de uma montanha. No fecho de outro colocava toda a sua emoção de ébrio. E, depois da última rima, se exaltava:

– Que tal Felipinho?! Formidável, não! Sim, formidável! Então este último versp abafa! Poesia é isso, meu amigo! É filosofia, é calor de gênio!...

O Felipinho sacudia a cabeça, como um papavento. Talvez estivesse com o pensamento longe, numa carne seca do jantar, quando o poeta recitava. Jamais deixava de elogiar, com a sua vozinha fanhosa e inspiradora de eterna piedade:

– É só você quem pode fazer essas belezas, meu grande Juvêncio. Só você e nem mais ninguém. O Mário fica longe, muito longe com os “Painéis da Nossa Terra”...

O Juvêncio foi remexer uma gaveta velha. De dentro tirou uma folha amassada de papel de carta, com alguns borrões de tinta e duas manchas de vômito.

– Sabe que estou me dedicando ao teatro-charada? É uma nova invenção literária! Ouve só esta peça-síntese, conforme a batizou o Mário. O cenário é uma sacristia. Os personagens são Deus Nosso Senhor, o Professor Pangloss e Jesus Cristo. É antes de cair o pano.

Deus Nosso Senhor: – Como vai a terra, Pangloss? Que me conta o teu espírito?

Pangloss, coçando a careca: – Quem afirma que tudo vai bem diz apenas uma asneira, Senhor! É preciso afirmar que tudo vai pelo melhor!

Deus Nosso Senhor a Jesus Cristo: – Então, Meu Filho! Prepare-se para voltar novamente à terra! O planeta está abandonado até agora!

Jesus Cristo, de joelhos: – Sim, Meu Pai! Irei novamente! Mas, por piedade, não me deixe nascer no Acre!...

O Felipinho estourou na gargalhada da sua vida.

– Está formidável, simplesmente formidável! Está até genial! Ser gênio é dizer coisas que só um entende! Está formidável...

Felipinho entrou no assunto. O Juvêncio achou ótimo a ideia. Olhou para o espadim de pau. Apresentou uma condição:

– Pode contar comigo. Mas na condição de eu não ser apontado como o responsável pela fundação do que o Mário chamará de sodalício... E nem que eu seja escolhido para fazer o discurso de instalação...


MEDEIROS, Océlio de. A Represa (romance da Amazônia). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1942. p.165-174

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