quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Série História que o Acre Escreveu

TAL PAI, TAL FILHA
José Augusto de Castro e Costa


parecença entre pais e filhos é, em verdade, bastante comum, assim como é de impressionar a dessemelhança saltitante aos olhos, entre algumas dessas pessoas.

Conhece-se pais e filhos que não têm nada a ver uns com os outros, seja nos traços físicos, seja no porte, seja na tonalidade da voz, enquanto somos sabedores de outros relacionamentos que, independente do gênero, são incrivelmente parecidos.

No Acre, tenente Gesner e Rosa Maria exemplificam bem as leis da transmissão dos caracteres hereditários dos indivíduos.

Se existe graus de precocidade, a Rosa Maria, desde tenra idade, já se destacava como prematura de elevadíssimo nível.

De personalidade bem realçada, Rosa Maria era uma criança vivaz, desembaraçada e de respostas prontas para quaisquer eventualidades.

Estando ela presente, não era raro o enrubescimento de pessoas ao vê-la apontar o dedo médio, com o indicador e o anular recolhidos a alguém que ela julgasse tê-la diminuído, ou subestimado-a, ou dela caçoado: o popular “cotoco”.

Entretanto, irradiava uma simpatia contagiante, o que a mantinha sempre rodeada de amiguinhas, apesar de arteira.

Na vizinhança sempre era vista entre os coleguinhas e, de vez em quando era posta em prática alguma peraltice.

Fora assim que, juntamente com DAN-DAN, amiguinho vizinho, arquitetara  pregar uma peça a uma das figuras mais sérias, mais impolutas e mais respeitáveis de todo o Acre: nada mais nada menos que o Diretor do Instituto de Geografia e Estatística.

Residente próximo, no trajeto do seu Meira estava, necessariamente, a casa da Rosa Maria, na principal esquina do então conhecido Conjunto do IPASE, guarnecida por uma compacta cerca de fícus, arbusto de mais ou menos 80 cm de altura.

Sabedora da rotina do conceituado cidadão e  de que seu retorno se daria ao final da tarde, na chamada “boca da noite”, Rosa Maria servira-se de um grosso cinto preto de seu pai, amarrara um cordão escuro nas extremidades e passara às mãos do DAN-DAN, que ficaria no outro lado da rua, aguardando suas ordens.

No momento esperado, logo após uma rápida pancada de chuva, eis que surgira o elegante e esbelto seu Meira, dentro do habitual e impecável terno branco, com o guarda chuva posto ao braço, caminhando cabisbaixo, certamente meditando no transcorrido cotidiano.

Quando Rosa Maria percebeu a exatidão do momento, sinalizara ao DAN-DAN e começara a puxar o cinto que o colega iria desprendendo compassadamente. Ao notar a aproximação do que supusera tratar-se de uma pequena cobra, seu Meira passara a tentar espetá-la insistentemente com o guarda chuva. Prosseguindo na tentativa, sem atentar ao obstáculo, seu Meira  projetara-se desastradamente sobre a cerca de fícus molhada e, por consequência, sobre a Rosa Maria que ali encontrara-se escondida.

Indignado, o intranquilo senhor esbravejara:

– É você, desgramada !!!  Tinha que ser você, filha da mãe, peste desalmada!

E adentrou a residência da garota, super nervoso:

– Rosita! Olha o que a desgraçada da tua filha me fez !!!

O tal episódio teria sido apenas um a mais na existência daquela menina espirituosa, admiravelmente inteligente.

Rosa Maria cresceu, estudou, e tornou-se brilhante advogada, aposentando-se como bem sucedida defensora pública, sempre cercada da estima de quem com ela, até hoje, se relaciona.

Rosa Maria tem a quem puxar!


Seu pai fora uma figura marcante, em vários sentidos. Na juventude, ao servir, engajado, no 27° Batalhão de Caçadores do Exército, em Manaus, já despertava as atenções por sua tenacidade, conduta destemida, intrépida, arrojada e despachada, não obstante sua estatura mediana. Seus caracteres espartanos talvez tenham justificado sua convocação para incorporar o grupo de heróis da Força Expedicionária Brasileira, durante a Segunda Guerra, tendo inclusive participado, empunhando arma, da tomada de Monte Castelo, na Itália, nos últimos meses do conflito mundial.

No acampamento militar, reunidos em uma mesa, aguardando ordens para partir para as trincheiras, surgira,  repente, um caça solitário, do eixo (RO-BER-TO) e lançara uma pequena bomba de uns 20 kl, num projétil de 45 cm, mais ou menos, que, perfurando o teto do alojamento, fora cravar-se no pé esquerdo de um cabo sentado à frente do sargento Gesner, ficando aquele militar com o coturno pregado à tábua do assoalho, havendo daí, necessidade de serrar o pedaço da madeira, que fora extraído mediante emergente cirurgia.

Em imediata ordem unida, o coronel, comandante do grupamento, tentara levantar o moral da tropa, com palavras negativas, justamente defronte ao Gesner, e praticamente, face a face, bradava:

– Inaptos! Estúpidos! Beócios!

Respondera o Gesner, bem baixinho, para o coronel:

– Quem sou eu,  coronel!  É sua mãe!

– Sargento!! Um passo a frente! Cinquenta apoios, sargento!

Ao regressar ao Brasil, em meados de 1945, o então sargento Gesner, depois de receber justas honrarias, fora reformado, no posto de Tenente da Artilharia do Exército.

A título de passeio, viajara  para o Acre, onde, a convite do governador José Guiomard dos Santos, que, anos após, viera a ser seu padrinho de casamento, e posteriormente apadrinhado o batismo  de Rosa Maria, o jovem tenente viera a fixar residência e ingressar no Corpo de Oficialato da Guarda Territorial.

Pessoa de fácil relacionamento, de pronta disponibilidade incondicional e de relativo conhecimento, prático e teórico sobre assuntos civis e militares, tenente Gesner tornara-se, no Acre, uma figura bastante requisitada.

Quando, a 23 de junho de 1959, exercendo, por decreto governamental, o cargo de prefeito municipal de Sena Madureira, Gesner viera a protagonizar o exemplo de memorável eficiência administrativa e de  elevada benevolência de socorro, auxílio e proteção às vítimas de uma tragédia.

Naquela data fatídica, em Sena Madureira, ocorrera um pavoroso incêndio, que devorara, literalmente, cerca de vinte casas comerciais e duas residenciais, vindo a tomar dois quarteirões, em formato de “L”, compreendendo as ruas Padre  Egídio e Siqueira Campos.

Os prejuízos foram, naturalmente, astronômicos, o que levara os vitimados ao limite do desespero, como ocorrera com o senhor Tufic Assef, que, sentado a um banquinho, resistia em retirar-se do interior de sua loja, que estava sendo vorazmente consumida pelo fogo.

Fora a presença de espírito, a impetuosidade e a providência enérgica de Gesner que  desprendera aquele sofrido senhor, com assento e tudo para o exterior de sua propriedade, prometendo-lhe  que seu estabelecimento seria o primeiro a ser reedificado. E continuara, incansavelmente, Gesner a comandar voluntários e  a prestar amparo  e socorro, no combate ao pavoroso desastre, de ignorada origem.

Com relação a esse episódio, Gesner cativou admiração, não apenas por  envidar rodos os esforços para debelar as labaredas que devastaram as casas, mas pelo seu empenho em comandar e participar, literalmente, da reconstrução de todos os imóveis que foram demolidos naquele incêndio, começando pela loja de seu Tufic Assef, conforme prometido por aquele jovem administrador de 39 anos de idade, que dedicou grande parte de sua vida ao Acre.

Essa história ficou indelével na memória do povo de Sena Madureira e de quantos dela tomaram conhecimento, vindo a reforçar a tese de que, por estranho que pareça, é fato real que a vida no Acre absorve e empolga o espírito dos fortes, que ali demoram, apagando-lhes as saudades da terra distante e dando-lhes ânimo de permanência e fixação.


* José Augusto de Castro e Costa é autor de Brasileiro Por Opção (CEUMA, 2013). É acreano de Rio Branco, e reside em Brasília.

> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.

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